quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Um arrependido eleitor de Bolsonaro

Por Esther Solano, na revista CartaCapital:

Don João mora na Zona Leste de São Paulo. Demoro quase duas horas para chegar à casa dele, pois vivo no Centro e ele na periferia. Ou talvez ele more no Centro e eu na periferia. Don João me recebe: “Sinta-se à vontade, professora, aqui a gente é pobre, mas é arrumado”. Don João sempre votou no PT. Votou no Lula duas vezes, escolheu Dilma Rousseff mais duas. Aliás, poderíamos dizer que votou quatro vezes no Lula porque “teria votado em qualquer um que o homem indicasse, gostava demais dele”. Mas em 2018 Don João votou em Bolsonaro. Por que, Don João? “Ah, porque eu achei que o PT se meteu em roubalheira e não dava para votar nesse Alckmin aí, que só representa os ricos. Eu queria alguém novo, então dei uma chance para o Bolsonaro.”

Don João arrepende-se demais desse voto. “Nossa, se eu tivesse sabido… retirava meu voto agora. Ele é agressivo demais, pensava que era coisa só de campanha, mas ele é violento contra as mulheres, contra tudo, e outra, essas reformas aí são contra o trabalhador. Eu sou contra a reforma da Previdência e essa coisa de trabalhar aos domingos. A gente que é trabalhador está na pior e ela vai piorar ainda mais.”

Don João trabalha de zelador num hospital. Conta que o serviço foi terceirizado e durante esse tempo não fez mais do que perder direitos. Ultimamente, a empresa está na fase de demitir pessoal. Don João diz que vai trabalhar todo dia com medo, pois não sabe quando será dispensado. “Ah, professora, é muita tristeza, é muita angústia você não saber quando vai ser seu último dia no serviço. E, se me mandarem embora, o que faço? Eu estou com 45 anos, minha mulher está desempregada e a gente tem as coisas para pagar.” Eu, que não sei que o significa diariamente ir trabalhar com medo, não sei o que responder.

“A gente se sente muito mal, como sem valor, sabe?” A frase de Don João talvez seja a que melhor resume a lógica neoliberal, muito melhor do que livros, enciclopédias ou tratados. O produto mais sinistro do neoliberalismo, os sem-valor, os descartáveis, os derrotados, os humilhados, os inúteis para alimentar a roda monstruosa da produção e do lucro. Não acho que nenhuma alternativa de esquerda possa ser chamada realmente de esquerda se não entender que este é o coração do problema, da dor social, da angústia coletiva atual. Nenhuma esquerda pode ser chamada de esquerda se não entender que a sua obrigação principal é dar resposta a essa angústia.

Nossa conversa dura quase três horas. Num determinado momento, pergunto a Don João pelo PT. Ele é muito duro, mas não pensa duas vezes: “O PT não é o Partido dos Trabalhadores? Então o que está fazendo agora para defender o trabalhador? A gente sabe que o PSDB e o PMDB não vão defender o pobre, mas o PT deveria, não deveria? E então?” Conversa vai, conversa vem, pergunto pelo Lula. Don João diz que Lula sabia de muita coisa, aliás “sabia de tudo”, mas que a prisão dele foi injusta e ele iria ganhar as eleições. “Eu não digo que seja inocente, acho que o PT se corrompeu mesmo, mas olha aí outros políticos que ficaram ricos e estão soltos.”

Don João não entende muito bem o conteúdo da Vaza Jato, não sabe explicar o que é o site Intercept ou qual deveria ser a relação entre juízes e procuradores, mas leu bastante coisa, porque ele gosta de se manter informado, e sentencia: “A gente sabe agora que esse Moro fez coisa errada”.

Don João, e se Lula fosse solto? A reação dele me pega de surpresa, não esperava por essa. Don João emociona-se e me diz: “Ah, a gente sabe que o PT fez muita coisa errada, mas eu com Lula estava melhor, comprei essa casinha, a gente que é pobre melhorou de vida e, neste País, poucas vezes a gente pobre melhora de vida. Este é um país para os ricos. Pela primeira vez, ele nos deu uma chance”.

Voltei a falar com Don João pouco tempo atrás. Ele ainda vai todo dia com medo para o trabalho.

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