Por Paula Quental, no site Brasil Debate:
Entre as várias frases cristalizadas – quase mantras – que dominam o debate econômico brasileiro há uma particularmente perversa: “A Constituição de 1988 não cabe no orçamento”. Ela costuma ser repetida por defensores das políticas de austeridade, os mesmos que apregoam que “o estado não deve gastar mais do que arrecada”, ou que basta ajustar as contas públicas para a confiança voltar e a economia crescer. Há, porém, uma parte dos economistas que rema contra a maré, desafia essa visão que privilegia os interesses do “Mercado” e propõe que a política fiscal mantenha relação estreita com o orçamento público e os direitos sociais.
Isso significa que, do ponto de vista desse grupo, do qual faz parte Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp, sempre deverá haver recursos para atender ao artigo 6º do Capítulo II da Constituição, que define como direitos sociais os direitos à educação, à saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social e proteção à maternidade e à infância. Ou seja, o orçamento deve se adaptar a essas exigências tanto pelo potencial de arrecadação via uma reforma tributária progressiva como pela reorganização da alocação de recursos tendo como prioridade o bem-estar da população.
“Essa é uma relação que os economistas costumam ignorar. Normalizou-se esse absurdo de que as demandas sociais devem se adequar ao orçamento e não o contrário”, afirmou Rossi.
Pedro Rossi integrou, ao lado das economistas também do IE-Unicamp Grazielle David e Ana Paula Guidolin, uma mesa-redonda na capital paulista, em 5 de dezembro, dentro da série de debates promovidos desde 2016 pela Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) e Brasil Debate para discutir os efeitos das políticas de ajuste fiscal no país. O encontro foi dedicado à discussão sobre o impacto dos cortes de gastos sociais em programas voltados para a garantia dos direitos, em especial os direitos à moradia e à saúde. Participaram o líder do MTST (Movimento de Trabalhadores Sem-Teto) Guilherme Boulos, ex-candidato à Presidência da República pelo PSOL, e outros representantes de movimentos de moradia.
Rossi defendeu que decisões econômicas refletem escolhas políticas, não técnicas, e que, portanto, é uma opção atropelar direitos na busca da eficiência e de equilíbrio fiscal, como vem fazendo o governo federal. Segundo ele, esse debate vai esquentar em 2020, com a tramitação do pacote de três propostas de emenda à Constituição (PEC) que compõem o Plano Mais Brasil, elaborado pela equipe econômica do governo e apresentado no Senado em novembro.
As propostas do Paulo Guedes, ministro da Economia, têm objetivo de reduzir gastos obrigatórios, revisar fundos públicos e alterar as regras do Pacto Federativo. “O Pacote do Guedes consegue ser pior que a emenda 95, do teto de gastos, que vai acabar inviabilizando a máquina pública”, afirmou Rossi. “No fundo é a supremacia fiscal sobre os direitos humanos”. Segundo o economista, uma das armadilhas do Pacote Guedes é incluir no artigo 6º da Constituição um direito social adicional que é o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional. Na prática, isso significa condicionar todos os demais direitos à expectativa de equilíbrio fiscal, o que vai permitir, por exemplo, que se reduzam os recursos de educação e saúde. “Não há precedente histórico em nenhum outro país, é uma inversão de valores”.
Outra medida problemática, segundo ele, é a da chamada PEC Emergencial que cria gatilhos que permitem efetuar cortes de até 25% nos salários e na jornada dos servidores públicos, o que hoje é vetado pela Constituição. “Vai ser uma tragédia”, disse, lembrando que 60% dos servidores públicos são professores, pessoal da saúde e policiais, com salários baixos. “Não se leva em conta que o trabalho do servidor atua para reduzir a desigualdade social. Uma parte importante do funcionalismo é motor do Estado social”, lembrou Rossi. A mesma PEC prevê, como medida temporária, suspensão de promoções, vedação de novas despesas obrigatórias e proibição de concursos, entre outros pontos.
Focalização X universalização
A Constituição de 88 foi construída em cima do princípio do direito universal, de tal forma que os direitos sociais devem ser garantidos a todos. Porém, há uma tendência de políticos e economistas mais à direita de defender a redução da desigualdade social por meio de adoção de medidas focalizadas, que levam em conta particularidades locais ou miram grupos supostamente mais vulneráveis. Focalizar elementos das políticas públicas não é ruim em si, o problema é quando isso é feito reduzindo a universalidade do direito para economizar recursos, explica Grazielle David.
Segundo ela, essa visão está embutida, por exemplo, na agenda social proposta pela deputada Tabata Amaral (PDT-SP), que sugere, entre outras medidas, reduzir o abono salarial de algumas faixas salariais para aumentar outras. “Você tira do médio para dar ao mais pobre, empobrece o médio e deixa o rico intacto”, criticou. Para Grazielle, esse é um exemplo de que é possível reduzir a desigualdade sem fazer justiça social. “Política redistributiva, seja ela fiscal ou social, deve também levar em conta os direitos universais para ser justa”, enfatizou.
Sobre o impacto dos cortes impostos pela política de austeridade às áreas sociais, a economista mostrou dados de que entre 2014 e 2018 três áreas altamente afetadas por cortes foram moradia, com queda de 70% do orçamento; saneamento, com corte de 58%; e transporte, com 46%. Os dados são do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Coincidentemente, três setores particularmente visados pela iniciativa privada. Um dos efeitos mais imediatos foi o fim da “Faixa 1” do programa Minha Casa Minha Vida, justamente a que é voltada às famílias de menor renda.
Já Ana Paula Guidolin se deteve na questão dos prejuízos para a saúde. Segundo ela, a austeridade não está respeitando o fato de o Brasil ser signatário de acordos internacionais que exigem cumprimento de objetivos como combate e prevenção de doenças, atenção primária à saúde etc., e cujo descumprimento é o mesmo que descumprir a Constituição. “A saúde mental foi a primeira a ser atingida pela situação de vulnerabilidade social e ela acaba desencadeando outras doenças”, informou.
Segundo Ana Paula, justamente num momento em que há um número recorde de desempregados, e que aumentam as internações e doenças atreladas à pobreza, como pressão alta e diabetes, o teto de gastos atua para reduzir a verba da saúde. Com a conjuntura de crise agravada pela austeridade, a população fica ainda mais desamparada e sofre dupla penalização. O setor, lembrou ela, não pode ter recursos corrigidos apenas pela inflação, não só porque vem aumentando a demanda pelos serviços públicos de saúde ano a ano, dado o envelhecimento da população, como também por causa dos custos das novas tecnologias. “Costuma-se dizer que com o SUS temos um sistema insuficiente. Mas agora estamos caminhando para ter um sistema inoperante. Inexistência de recursos é uma escolha alocativa”, afirmou.
Voo de galinha e fundo imobiliário
Ao fazer uma análise da conjuntura econômica, Pedro Rossi disse que o pequeno crescimento de 0,6% do PIB observado neste trimestre, muito comemorado pelo governo, embora “pífio”, favorece a retórica de crescimento e pode dificultar as críticas às medidas de austeridade. “Estamos saindo do fundo do poço que entramos em 2015, ano em que a renda brasileira caiu 4% e começou a recessão.”
Esse leve crescimento, segundo ele, se deve ao desempenho do setor de serviços e certa folga de renda e crédito, mas a “fuga de capitais” está batendo recordes e as contas externas se deteriorando a uma velocidade muito alta, com quedas acentuadas nas exportações e importações, afirmou. “Mesmo com a alta do dólar, as exportações não estão sendo favorecidas, os contratos têm valores prefixados e as commodities preços determinados internacionalmente”.
Sobre o “respiro”, de acordo com ele, se deve, em especial, ao mercado imobiliário, que voltou a crescer. “Construção civil teve aumento de 1,2%. Ela foi muito responsável pelo crescimento na era Lula, quando subia 15% ao ano. A diferença é que hoje há aumento da construção para classe média e alta e de imóveis comerciais, o que pode estar associado a fundos imobiliários”. A modalidade de investimento em fundos imobiliários vive uma espécie de boom, e, segundo Rossi, pode apontar para uma “bolha”. É algo a se observar.
Ele notou que houve uma mudança estrutural no comportamento da taxa de juros, que estão muito mais baixas. Mas o motivo não são acertos na política econômica, e sim a crise – “não a pior, mas a de mais longa duração da história” – causada por demanda frágil, desemprego. “A baixa taxa de juros não promove crescimento, não leva as pessoas a consumir”, observou. “O Brasil sempre foi o paraíso do rentismo, com rendimentos a 15% ao ano. Agora os títulos do tesouro rendem 0,3% ao mês, 5% ao ano, o que pode estar direcionando os investimentos a outros destinos, como o fundo imobiliário”, resumiu.
Entre as várias frases cristalizadas – quase mantras – que dominam o debate econômico brasileiro há uma particularmente perversa: “A Constituição de 1988 não cabe no orçamento”. Ela costuma ser repetida por defensores das políticas de austeridade, os mesmos que apregoam que “o estado não deve gastar mais do que arrecada”, ou que basta ajustar as contas públicas para a confiança voltar e a economia crescer. Há, porém, uma parte dos economistas que rema contra a maré, desafia essa visão que privilegia os interesses do “Mercado” e propõe que a política fiscal mantenha relação estreita com o orçamento público e os direitos sociais.
Isso significa que, do ponto de vista desse grupo, do qual faz parte Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp, sempre deverá haver recursos para atender ao artigo 6º do Capítulo II da Constituição, que define como direitos sociais os direitos à educação, à saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social e proteção à maternidade e à infância. Ou seja, o orçamento deve se adaptar a essas exigências tanto pelo potencial de arrecadação via uma reforma tributária progressiva como pela reorganização da alocação de recursos tendo como prioridade o bem-estar da população.
“Essa é uma relação que os economistas costumam ignorar. Normalizou-se esse absurdo de que as demandas sociais devem se adequar ao orçamento e não o contrário”, afirmou Rossi.
Pedro Rossi integrou, ao lado das economistas também do IE-Unicamp Grazielle David e Ana Paula Guidolin, uma mesa-redonda na capital paulista, em 5 de dezembro, dentro da série de debates promovidos desde 2016 pela Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) e Brasil Debate para discutir os efeitos das políticas de ajuste fiscal no país. O encontro foi dedicado à discussão sobre o impacto dos cortes de gastos sociais em programas voltados para a garantia dos direitos, em especial os direitos à moradia e à saúde. Participaram o líder do MTST (Movimento de Trabalhadores Sem-Teto) Guilherme Boulos, ex-candidato à Presidência da República pelo PSOL, e outros representantes de movimentos de moradia.
Rossi defendeu que decisões econômicas refletem escolhas políticas, não técnicas, e que, portanto, é uma opção atropelar direitos na busca da eficiência e de equilíbrio fiscal, como vem fazendo o governo federal. Segundo ele, esse debate vai esquentar em 2020, com a tramitação do pacote de três propostas de emenda à Constituição (PEC) que compõem o Plano Mais Brasil, elaborado pela equipe econômica do governo e apresentado no Senado em novembro.
As propostas do Paulo Guedes, ministro da Economia, têm objetivo de reduzir gastos obrigatórios, revisar fundos públicos e alterar as regras do Pacto Federativo. “O Pacote do Guedes consegue ser pior que a emenda 95, do teto de gastos, que vai acabar inviabilizando a máquina pública”, afirmou Rossi. “No fundo é a supremacia fiscal sobre os direitos humanos”. Segundo o economista, uma das armadilhas do Pacote Guedes é incluir no artigo 6º da Constituição um direito social adicional que é o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional. Na prática, isso significa condicionar todos os demais direitos à expectativa de equilíbrio fiscal, o que vai permitir, por exemplo, que se reduzam os recursos de educação e saúde. “Não há precedente histórico em nenhum outro país, é uma inversão de valores”.
Outra medida problemática, segundo ele, é a da chamada PEC Emergencial que cria gatilhos que permitem efetuar cortes de até 25% nos salários e na jornada dos servidores públicos, o que hoje é vetado pela Constituição. “Vai ser uma tragédia”, disse, lembrando que 60% dos servidores públicos são professores, pessoal da saúde e policiais, com salários baixos. “Não se leva em conta que o trabalho do servidor atua para reduzir a desigualdade social. Uma parte importante do funcionalismo é motor do Estado social”, lembrou Rossi. A mesma PEC prevê, como medida temporária, suspensão de promoções, vedação de novas despesas obrigatórias e proibição de concursos, entre outros pontos.
Focalização X universalização
A Constituição de 88 foi construída em cima do princípio do direito universal, de tal forma que os direitos sociais devem ser garantidos a todos. Porém, há uma tendência de políticos e economistas mais à direita de defender a redução da desigualdade social por meio de adoção de medidas focalizadas, que levam em conta particularidades locais ou miram grupos supostamente mais vulneráveis. Focalizar elementos das políticas públicas não é ruim em si, o problema é quando isso é feito reduzindo a universalidade do direito para economizar recursos, explica Grazielle David.
Segundo ela, essa visão está embutida, por exemplo, na agenda social proposta pela deputada Tabata Amaral (PDT-SP), que sugere, entre outras medidas, reduzir o abono salarial de algumas faixas salariais para aumentar outras. “Você tira do médio para dar ao mais pobre, empobrece o médio e deixa o rico intacto”, criticou. Para Grazielle, esse é um exemplo de que é possível reduzir a desigualdade sem fazer justiça social. “Política redistributiva, seja ela fiscal ou social, deve também levar em conta os direitos universais para ser justa”, enfatizou.
Sobre o impacto dos cortes impostos pela política de austeridade às áreas sociais, a economista mostrou dados de que entre 2014 e 2018 três áreas altamente afetadas por cortes foram moradia, com queda de 70% do orçamento; saneamento, com corte de 58%; e transporte, com 46%. Os dados são do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Coincidentemente, três setores particularmente visados pela iniciativa privada. Um dos efeitos mais imediatos foi o fim da “Faixa 1” do programa Minha Casa Minha Vida, justamente a que é voltada às famílias de menor renda.
Já Ana Paula Guidolin se deteve na questão dos prejuízos para a saúde. Segundo ela, a austeridade não está respeitando o fato de o Brasil ser signatário de acordos internacionais que exigem cumprimento de objetivos como combate e prevenção de doenças, atenção primária à saúde etc., e cujo descumprimento é o mesmo que descumprir a Constituição. “A saúde mental foi a primeira a ser atingida pela situação de vulnerabilidade social e ela acaba desencadeando outras doenças”, informou.
Segundo Ana Paula, justamente num momento em que há um número recorde de desempregados, e que aumentam as internações e doenças atreladas à pobreza, como pressão alta e diabetes, o teto de gastos atua para reduzir a verba da saúde. Com a conjuntura de crise agravada pela austeridade, a população fica ainda mais desamparada e sofre dupla penalização. O setor, lembrou ela, não pode ter recursos corrigidos apenas pela inflação, não só porque vem aumentando a demanda pelos serviços públicos de saúde ano a ano, dado o envelhecimento da população, como também por causa dos custos das novas tecnologias. “Costuma-se dizer que com o SUS temos um sistema insuficiente. Mas agora estamos caminhando para ter um sistema inoperante. Inexistência de recursos é uma escolha alocativa”, afirmou.
Voo de galinha e fundo imobiliário
Ao fazer uma análise da conjuntura econômica, Pedro Rossi disse que o pequeno crescimento de 0,6% do PIB observado neste trimestre, muito comemorado pelo governo, embora “pífio”, favorece a retórica de crescimento e pode dificultar as críticas às medidas de austeridade. “Estamos saindo do fundo do poço que entramos em 2015, ano em que a renda brasileira caiu 4% e começou a recessão.”
Esse leve crescimento, segundo ele, se deve ao desempenho do setor de serviços e certa folga de renda e crédito, mas a “fuga de capitais” está batendo recordes e as contas externas se deteriorando a uma velocidade muito alta, com quedas acentuadas nas exportações e importações, afirmou. “Mesmo com a alta do dólar, as exportações não estão sendo favorecidas, os contratos têm valores prefixados e as commodities preços determinados internacionalmente”.
Sobre o “respiro”, de acordo com ele, se deve, em especial, ao mercado imobiliário, que voltou a crescer. “Construção civil teve aumento de 1,2%. Ela foi muito responsável pelo crescimento na era Lula, quando subia 15% ao ano. A diferença é que hoje há aumento da construção para classe média e alta e de imóveis comerciais, o que pode estar associado a fundos imobiliários”. A modalidade de investimento em fundos imobiliários vive uma espécie de boom, e, segundo Rossi, pode apontar para uma “bolha”. É algo a se observar.
Ele notou que houve uma mudança estrutural no comportamento da taxa de juros, que estão muito mais baixas. Mas o motivo não são acertos na política econômica, e sim a crise – “não a pior, mas a de mais longa duração da história” – causada por demanda frágil, desemprego. “A baixa taxa de juros não promove crescimento, não leva as pessoas a consumir”, observou. “O Brasil sempre foi o paraíso do rentismo, com rendimentos a 15% ao ano. Agora os títulos do tesouro rendem 0,3% ao mês, 5% ao ano, o que pode estar direcionando os investimentos a outros destinos, como o fundo imobiliário”, resumiu.
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