domingo, 22 de dezembro de 2019

A resiliência da direita na América Latina

Por Kjeld Jakobsen, na revista Teoria e Debate:

O segundo semestre foi pródigo na América Latina e Caribe quanto aos resultados eleitorais que demonstraram a vitalidade da esquerda e em mobilizações populares em diversos países contra as políticas neoliberais que em alguns países molestam suas populações por décadas, além de um quadro de aumento da pobreza em quase todo o continente desde 2015, segundo a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). No entanto, também ficou claro que o imperialismo e a direita não estão dispostos a ceder poder e modificar suas políticas econômicas com facilidade. Aliás, há sinais visíveis de que estão dispostos a levar seu projeto adiante, inclusive, por meios autoritários.


As eleições


Um social-democrata do PRD foi eleito no mês de maio como presidente do Panamá após uma década de governos de direita. Nas eleições presidenciais argentinas realizadas em outubro, a esquerda também pode comemorar a eleição da chapa Alberto Fernández e Christina Kirchner já no primeiro turno e da mesma forma a vitória de Axel Kicillof a governador da província de Buenos Aires, a mais importante do país. Na Colômbia houve eleições departamentais e municipais e diversas formações de esquerda e progressistas obtiveram bons resultados, sendo que foi eleita em Bogotá, Claudia Lopez, a primeira mulher e LGBT a governar uma capital federal na América Latina.

As más notícias ficaram por conta da Bolívia e do Uruguai. Embora Evo Morales, candidato à reeleição na Bolívia, chegasse em primeiro lugar e tivesse vencido no primeiro turno das eleições presidenciais em 20 de outubro, o resultado foi questionado e, após algumas semanas de protestos das forças de direita, ele foi pressionado pelo Exército a renunciar, embora se dispusesse a substituir os integrantes do tribunal eleitoral e convocar novas eleições. No Uruguai, o candidato da Frente Ampla, Daniel Martinez, foi o primeiro colocado no primeiro turno da eleição presidencial com 38% dos votos, mas a direita toda se uniu em torno do candidato Luis Lacalle Pou do Partido Nacional (Blanco) no segundo turno, que venceu por uma diferença de apenas 30 mil votos, menos de 1%, contrariando as pesquisas que lhe davam uma diferença bem maior.

O Brasil, depois de amargar quase um ano de governo de extrema-direita, pôde comemorar a recente soltura do presidente Lula, após a decisão do Supremo Tribunal Federal de cumprir a Constituição que diz que um réu somente será considerado culpado após o trânsito em julgado, e não após uma condenação em segunda instância, como foi entendimento anterior, na verdade, para possibilitar a prisão de Lula e sua detenção na Polícia Federal de Curitiba por 580 dias, impedido de fazer campanha eleitoral em 2018. Com essa decisão, outros companheiros do PT, como Delúbio Soares, João Vaccari e José Dirceu também foram libertados.

As mobilizações

As mobilizações populares contra as políticas neoliberais nos diversos países do continente iniciaram-se em Honduras ainda em 2017, contra a reeleição fraudulenta do presidente direitista, Juan Orlando Hernández, e foram retomadas no mês de junho de 2019 pedindo sua renúncia após o anúncio da privatização dos sistemas de educação e saúde. Em setembro, foi a vez da população do Haiti, a mais pobre do continente latino-americano e caribenho, se levantar contra o governo do presidente Jovenel Moise, que firmou um acordo com o FMI que pressupõe a implementação dos ajustes neoliberais clássicos dessa instituição, aumento no preço dos combustíveis e consequentemente do transporte, além de denúncia de corrupção governamental, em que US$ 3,8 bilhões teriam sido desviados do Fundo Petrocaribe. Porém, na opinião das lideranças da mobilização, somente a renúncia de Moise não resolve e por isso propõem a composição de um governo de transição de três anos que possa atender as necessidades mais imediatas da população, como a fome e o desemprego que afetam 70% da população.

Em outubro iniciou-se uma mobilização popular no Equador, principalmente, contra o fim do subsídio aos combustíveis, igualmente incluído num pacote de empréstimo do FMI. Duas semanas de protestos levaram o presidente Lenin Moreno a cancelar a medida.

As mobilizações chilenas datam praticamente desse mesmo momento e ainda continuam. O estopim foi um aumento no preço das passagens do metrô de Santiago e o sentimento de “mal-estar” ou “saco cheio”, com o perdão da expressão, da população com a situação econômica do país que perdura desde o ajuste neoliberal, introduzido durante a ditadura Pinochet e que privatizou os serviços públicos, impedindo seu acesso à maioria da população, espalhou-se rapidamente por todo o Chile. Várias manifestações contaram com milhões de participantes. Vários momentos foram de muito espontaneísmo e só mais recentemente surgiu uma coordenação mais orgânica, a Frente Social, que reúne organizações sociais e sindicais, bem como ONGs e personalidades. Além da repressão envolvendo a polícia e as Forças Armadas, o governo do presidente Piñera tentou responder às reivindicações com medidas paliativas como a substituição de seu ministério, algumas concessões econômicas e sociais de pequena monta e o cancelamento do aumento da passagem do metrô! No entanto, a revolta da sociedade evoluiu para a reivindicação de uma nova Constituição para o Chile em substituição da atual, “pinochetista” e neoliberal.

Nesse sentido, o Parlamento aprovou a realização de um plebiscito para o mês de abril no qual a população poderá optar se quer uma nova Constituição ou não, e, em caso positivo, o resultado mais provável, se ela será elaborada por uma Assembleia Constituinte ou um Congresso Constituinte. Porém, o acordo entre os partidos de direita e alguns de esquerda, entre eles o Partido Socialista, que levou a essa formulação incluiu uma armadilha que determinados itens da nova carta necessitarão de dois terços dos votos dos constituintes, o que possibilitaria que tudo permanecesse como está. Além disso, os deputados e senadores que aprovaram o acordo não consultaram a Frente Social sobre o mesmo e a disputa continua.

Em novembro, foi a vez da Colômbia iniciar protestos contra medidas governamentais neoliberais, em particular a redução do salário mínimo e de direitos de trabalhadores menores de idade – semelhante à MP 905 proposta pelo governo brasileiro –, o não cumprimento dos acordos de paz com as Farc e pelos mais de setecentos assassinatos impunes de dirigentes sociais e sindicais, além de ataques perpetrados contra a população indígena no país. Esses fatores levaram à realização de duas greves gerais em praticamente uma semana e à participação de diversos setores da sociedade, principalmente, os estudantes. Além das greves, os protestos têm sido diários nas principais cidades da Colômbia e inicialmente o presidente Ivan Duque somente se reuniu com os empresários para discutir a situação. Foi apenas após doze dias de manifestações que ele concordou em dialogar com o Comando de Greve que, apesar do nome, não é integrado apenas por organizações sindicais, mas também por outras organizações sociais.

A resiliência

Embora o quadro exposto acima demonstre um potencial de retomada de iniciativas transformadoras e de resistência ao neoliberalismo, não se deve ignorar a resiliência da direita e sua disposição de não entregar nem “os anéis e muito menos os dedos”. Das quatro eleições presidenciais mencionadas, a esquerda assumirá o governo em dois países, Panamá e Argentina. Neste último, o presidente Mauricio Macri, candidato à reeleição obteve 41% dos votos. Não é pouco, considerando seu desgaste devido a sua política econômica neoliberal.

No Uruguai, país governado pela esquerda por doze anos e um dos países da América Latina onde as políticas alternativas, uma economia sustentável e as políticas sociais mais avançaram, a direita assumirá o governo no dia 1° de março. A Frente Ampla é o partido com o maior número de deputados e senadores, mas a soma dos representantes da direita supera os 50% dos assentos no Congresso.

Na Bolívia, apesar da vitória de Evo Morales no primeiro turno, o questionamento da direita desse resultado levou à renúncia do presidente ameaçado por grupos armados da extrema-direita e vítima da omissão da polícia e pressão dos militares. Os confrontos entre os grupos pró e contra Evo paralisaram o país, mas o Congresso onde o MAS–IPSP é majoritário acabou votando uma proposta de acordo para convocar novas eleições em até 120 dias, embora ainda sem data marcada e tampouco se sabe se o resultado será acatado se, por exemplo, um candidato do MAS– IPSP for o vencedor, pois os últimos movimentos já apontam para pelo menos três candidaturas da direita e extrema-direita, o que aumenta as chances da esquerda, apesar do golpe de Estado que interrompeu o mandato de Evo Morales e o levou ao exílio no México, pois os resultados econômicos e sociais ao longo dos últimos anos foram positivos no país.

O ocorrido na Bolívia frente ao processo político e a reação violenta dos governos de direita nos países onde houve ou ainda há mobilizações demonstra que ela não só resiste em entregar o poder ou alterná-lo, como também se dispõe a manter as políticas neoliberais por meios autoritários. O quadro a seguir [aqui] apresenta o número oficial de mortos, feridos e presos em cada um dos países onde ocorreram e ocorrem mobilizações contra o neoliberalismo até o dia 16 de novembro com exceção da Colômbia cujos dados são posteriores. (É provável que todos esses números sejam superiores devido à subnotificação usual deste tipo de informação).

Além desses dados brutais, em países como Equador e Bolívia, quando as mobilizações arrefeceram, os governos de plantão deram início a uma série de prisões e perseguições a integrantes dos partidos que lhe fazem oposição. Na Bolívia, há vários integrantes do governo de Evo Morales refugiados na Embaixada do México sem obter salvo-conduto para saírem do país.

No Brasil, não há mobilizações como nesses países, embora a situação econômica e social esteja se agravando em função da política econômica da dupla Bolsonaro – Paulo Guedes e preventivamente integrantes deste grupo, incluindo o próprio ministro da Economia, têm levantado a hipótese de utilização de instrumentos como o Ato Institucional nº 5, da época da ditadura militar, para enfrentar eventuais protestos. Da mesma forma, as forças de segurança como a polícia militar de vários estados têm atuado com letalidade e violência cada vez maiores, principalmente, contra pobres e negros.

Ou seja, os defensores do neoliberalismo dos anos 1980 e 1990 o implantaram num ambiente de democracia e disputas eleitorais contrapondo suas alternativas de economia de mercado, privatizações e abertura econômica à crise do desenvolvimentismo, o que os levou a várias vitórias num primeiro momento. Porém, hoje, diante de seu fracasso e da impossibilidade de resolver os problemas da maioria da população pela via neoliberal, lançam mão dos golpes e do autoritarismo em contraposição à democracia.

* Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais.

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