Quilombo do Campinho em Paraty (RJ). Foto: Ricardo Stuckert
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Não há dúvida de que há uma crise mais ou menos generalizada dos sistemas democráticos no mundo.
A causa última e fundamental dessa crise tange à crescente desigualdade social, à erosão do Estado de Bem-Estar e à falta de geração de empregos de qualidade, ocasionadas pelas políticas neoliberais e de austeridade, combinadas com uma crise econômica que não dá mostras de ser efetivamente superada.
A eleição de Trump e de outros líderes do chamado “populismo de direita”, o Brexit, a ascensão de forças de extrema direita e uma insatisfação generalizada com os partidos e as instituições democráticas são sintomas claros dessa crise política e democrática.
Na América Latina, os principais sintomas dessa crise são uma extrema instabilidade política, a eclosão de revoltas populares de grande magnitude, como as que ocorreram e ocorrem no Chile, no Equador e na Colômbia, e, sobretudo, o retorno do golpismo.
Desde 2009, ocorreram golpes de Estado, “brancos” ou não tão brancos, em Honduras, no Paraguai, no Brasil e, recentemente, na Bolívia. Nesse último caso, a deposição do presidente eleito deu-se pela ação violenta de milícias paramilitares e religiosas.
Assim, a nossa região voltou a ser sinônimo de democracias frágeis ou de fachada e de republiquetas de bananas.
Por conseguinte, aqui a crise democrática é bem mais grave.
Há dois fatores básicos que explicam essa gravidade maior. O primeiro e mais óbvio deles tange à fragilidade dos sistemas democráticos da região e à falta de enraizamento histórico e social das democracias.
Conforme já observei em outro artigo, a característica principal das oligarquias brasileiras e latino-americanas de um modo geral é sua falta de compromisso real com a democracia e sua incapacidade de conviver com processos significativos de distribuição de renda, de combate à pobreza, e de ascensão social e política das camadas da população historicamente excluídas dos benefícios do desenvolvimento.
Sempre houve aqui uma espécie de demofobia, o medo à perda de controle político das grandes massas pauperizadas.
Perón, Getúlio (em seu segundo governo), João Goulart, Chávez, Correa, Lugo, Kirchner, Lula, Evo Morales etc. provocaram esse medo e esse ódio, sem nunca terem chegado sequer a se aproximar do socialismo, muito menos do comunismo.
Mas há outro fator, menos óbvio, que também acarretou instabilidade política à região e comprometeu o desenvolvimento e o enraizamento de suas democracias.
Trata-se da constante ingerência política dos EUA, que sempre apoiaram o golpismo na região e sempre combateram os regimes progressistas que aqui se instalaram.
Segundo estudo publicado na Harvard Review of Latin America, em 2005, menciona-se que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA conseguiram êxito em mudar governos da região 41 vezes, o que dá uma média de uma mudança de governo a cada 28 meses.
Ressalte-se que, nesse estudo publicado na Universidade de Harvard, não se analisa as possíveis intervenções recentes, como as ocorridas em Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016) e na Bolívia (2019).
As evidências históricas dessa constante intervenção são, portanto, avassaladoras.
Mas, para quem ainda tinha alguma dúvida, as últimas declarações de Mike Pompeo, Secretário de Estado dos EUA, nos parecem definidoras.
Pompeo fez um discurso, nesta última segunda-feira, na Universidade de Louisville, Kentucky, no qual afirmou que os EUA ajudarão os “governos legítimos” da América Latina a impedir que os protestos em seus países se tornem “revoltas”, isto é, resultem em mudanças de regime.
Pompeo também aproveitou para negar que essas manifestações, que ocorrem sobretudo no Chile, no Equador, na Colômbia e na Bolívia contra governos neoliberais ou contra governos golpistas reflitam "a vontade democrática do povo".
Segundo ele, tais manifestações foram “sequestradas” por governos como os de Cuba e o da Venezuela e, portanto, não seriam “legítimas”.
Em seu tocante discurso, Pompeo se refere à América Latina como o quintal (backyard) dos EUA.
A ameaça é evidente.
Os EUA intervirão ativamente para reprimir ou coibir manifestações contra governos conservadores da região, que se comprometeram com a implantação de políticas ultraneoliberais, as quais são do interesse daquele país, e que se aliaram geoestrategicamente ao grande irmão do Norte, em sua luta pelo poder mundial contra China e Rússia.
Impossível não relacionar esse discurso público de Mike Pompeo às recentes declarações do clã Bolsonaro e do próprio ministro da Economia em prol do retorno do AI-5 e de um fechamento ainda maior do regime político brasileiro.
Também não dá para não relacionar o pronunciamento de Pompeo com a proposta de exclusão de ilicitude, ou da licença para matar, em linguagem clara, em casos de processos de GLO.
Parece-nos também impossível não estabelecer uma relação entre a recente visita do conselheiro para Assuntos Políticos da Embaixada dos EUA em Brasília, Willard Smith, com larga atuação na região, inclusive na Venezuela, ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), alinhado à Lava Jato, e o desejo compartilhado entre os governos de Trump e o de Bolsonaro de voltar a neutralizar Lula.
Como se sabe, e como comprovado pela Vaza Jato, a Lava Jato foi uma operação inspirada e conduzida, em sua estratégia básica, pelo Departamento de Justiça do EUA.
Dada à assimetria das relações Brasil/EUA, a cooperação judiciária estabelecida entre os dois países serviu de instrumento político para o golpe de Estado de 2016 e para a implantação de uma lawfare contra o ex-presidente Lula.
Assim, o combate aparentemente neutro à corrupção em nível internacional pôde ser facilmente desvirtuado para beneficiar apenas interesses geopolíticos específicos.
Entretanto, a libertação de Lula, após um ano e sete meses de uma prisão totalmente injusta, motivada por óbvia perseguição política, solidamente confirmada pelas não desmentidas revelações da Vaza Jato, têm levado compreensível paura às hostes da ultradireita e da direita do Brasil.
Afinal, Lula é a grande liderança popular do Brasil. Uma liderança que, ao contrário de algumas, não foi construída pela mídia ou por enxurradas de fake news. A liderança de Lula foi construída em muitas décadas de lutas democráticas e populares, que se iniciaram na resistência à ditadura militar.
Lula é, portanto, um perigo real para os que querem iludir a população com a reimplantação de modelos fracassados e com políticas antipopulares travestidas de inevitáveis escolhas técnicas.
Sobretudo, Lula solto é um perigo para os que querem manter o Brasil em alinhamento sabujo aos EUA.
O próprio Steve Bannon, o líder da ultradireita mundial afirmou que Lula é a grande liderança da “esquerda globalista” e provocará “grande perturbação”.
Pois bem, o conjunto de sinais emitidos, coordenadamente, aqui e nos EUA, aponta inequivocamente para uma direção:
- os EUA apoiarão a repressão de Bolsonaro contra eventuais manifestações, atuarão, com seus amplos meios informáticos, para coibi-las e controlá-las, darão suporte a um eventual fechamento de regime e, sobretudo, trabalharão para prender Lula de novo.
Em 1971, Nixon disse para Médici: “para onde o Brasil for, irá o resto da América Latina”.
Os EUA sabem que o Brasil é vital para o controle de toda a região. Agora, que conseguiram colocar Bolsonaro, um aliado amoroso e incondicional, não vão a ele renunciar sem resistência.
A pressão virá, até mesmo sobre o Senado e o STF.
O quintal arderá.
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