segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Marx e ecossocialismo

Por Michael Löwy, no site A terra é redonda:

Ecologistas tradicionais frequentemente rejeitam Marx por considerá-lo “produtivista” e cego para problemas ecológicos. Um corpo crescente de escritos eco-marxistas tem sido desenvolvido recentemente nos Estados Unidos, o que contradiz agudamente esse senso comum. Os pioneiros desta nova linha de pesquisa foram John Bellamy Foster e Paul Burkett, seguidos por Ian Angus, Fred Magdoff e outros; eles contribuíram para transformar a Monthly Review em uma revista eco-marxista. Seu principal argumento é que Marx estava completamente ciente das consequências destrutivas da acumulação capitalista para o meio-ambiente, um processo que ele descreveu por meio do conceito de ruptura metabólica. Alguém pode discordar de algumas das interpretações feitas sobre os escritos de Marx, mas essas pesquisas foram decisivas para um novo entendimento da contribuição dele para a crítica ecológica do capitalismo.

Kohei Saito é um jovem acadêmico marxista japonês que pertence a essa importante escola eco-marxista. Seu livro, publicado pela Monthly Review Press, é uma contribuição muito valiosa para a reavaliação da herança Marxista, de uma perspectiva ecossocialista.

Uma das ótimas qualidades de sua obra é que – ao contrário de muitos outros acadêmicos – ele não trata os escritos de Marx como um conjunto sistemático de escritos, definidos, do início ao fim, por um forte compromisso ecológico (conforme alguns), ou por uma forte tendência não-ecológica (conforme outros). Como Saito muito persuasivamente argumenta, há elementos de continuidade na reflexão de Marx sobre a natureza, mas há também algumas mudanças muito significativas, e reorientações. Além disso, como o subtítulo do livro sugere, suas reflexões críticas sobre a relação entre economia política e meio ambiente estão “inacabadas”.

Dentre as continuidades, uma das mais importantes é a questão da “separação” capitalista entre os homens e a terra, isto é, a natureza. Marx acreditava que em sociedades pré-capitalistas existia uma forma de unidade entre os produtores e a terra, e ele viu como uma das tarefas chave do socialismo restabelecer a unidade original entre homens e natureza, destruída pelo capitalismo – mas em um patamar superior (negação da negação). Isso explica o interesse de Marx por comunidades pré-capitalistas, tanto em sua discussão ecológica (por exemplo, de Carl Fraas) ou em sua pesquisa antropológica (Franz Maurer): ambos os autores foram percebidos como “socialistas inconscientes”. E, é claro, em seu último documento importante, a carta para Vera Zassoulitsch (1881), Marx afirma que, com o fim do capitalismo, sociedades modernas poderiam retornar para uma forma elevada de um tipo “arcaico” de propriedade e produção coletivas. Eu argumentaria que isso pertence ao momento “anti-capitalista romântico” nas reflexões de Marx… Em todo caso, essa interessante percepção de Saito é muito relevante hoje, quando comunidades indígenas nas Américas, do Canadá à Patagônia, estão na linha de frente da resistência à destruição capitalista do meio-ambiente.

Não obstante, a principal contribuição de Saito é mostrar o movimento, a evolução das reflexões de Marx sobre a natureza, num processo de aprendizado, repensando e remodelando seus pensamentos. Antes d’O Capital (1867), alguém poderia achar na obra de Marx uma avaliação um tanto acrítica do “progresso” capitalista – uma atitude frequentemente descrita pelo termo mitológico vago “Prometeanismo”. Isso é óbvio no Manifesto Comunista, o qual celebra a capitalista “sujeição das forças da natureza ao homem” e a “limpeza de continentes inteiros para o cultivo”; mas isso também se aplica aos Cadernos de Londres (1851), aos Manuscritos econômicos de 1861-63, e a outros escritos daqueles anos. Curiosamente, Saito parece excluir o Grundrisse (1857-58) de seu criticismo, uma exceção que, em minha visão, não se justifica, considerando o quanto Marx admira, nesse manuscrito, “a grande missão civilizatória do capitalismo” em relação à natureza e às comunidades pré-capitalistas, prisioneiras de seu localismo e de sua “idolatria da natureza”!.

A mudança vem em 1865-66, quando Marx descobre, pela leitura dos escritos do químico agrícola Justus Von Liebig, os problemas da exaustão do solo e a ruptura metabólica entre sociedades humanas e ambiente natural. Isso levará, n’O Capital vol. 1 (1867) – mas também nos demais volumes interminados – à uma avaliação muito mais crítica da natureza destrutiva do “progresso” capitalista, particularmente na agricultura. Após 1868, pela leitura de outro cientista alemão, Carl Fraas, Marx vai descobrir também outras questões ecológicas importantes, tais quais desmatamento e alteração do clima local. De acordo com Saito, caso Marx tivesse sido capaz de terminar os volumes 2 e 3 d’O Capital, ele teria enfatizado com mais veemência a crise ecológica – o que também implica, ao menos implicitamente, que em seu estado inacabado atual não há ênfase forte o bastante sobre tais questões…

Isso leva-me ao meu principal desacordo com Saito: em diversas passagens do livro ele afirma que, para Marx, “a insustentabilidade ambiental do capitalismo é a contradição do sistema” (p. 142, ênfase do autor) – ou que em seus anos tardios ele chegou a ver as rupturas metabólicas como “o mais sério problema do capitalismo”, ou que o conflito com limites naturais é, para Marx, “a principal contradição do modo capitalista de produção”.

Eu me pergunto onde Saito encontrou, nos escritos, livros publicados, manuscritos ou cadernos de Marx, quaisquer dessas declarações… Elas não podem ser encontradas, e por uma boa razão: a insustentabilidade do sistema capitalista não era uma questão decisiva no século XIX, como se tornou hoje; ou melhor, desde 1945, quando o planeta entrou em uma nova era geológica, o Antropoceno. Aliás, eu acredito que a ruptura metabólica, ou o conflito com limites naturais, não é um “problema do capitalismo” ou uma “contradição do sistema”; é muito mais que isso! É uma contradição entre o sistema e “as eternas condições naturais” (Marx), e, por isso mesmo, com as condições naturais da vida humana no planeta. De fato, como Paul Burkett (citado por Saito) argumenta, o capital pode continuar sua acumulação sob quaisquer condições naturais, ainda que degradadas, desde que não haja uma completa extinção da vida humana: a civilização pode desaparecer antes da acumulação de capital tornar-se impossível…

Saito conclui seu livro com uma avaliação sóbria que me parece sumarizar de forma muito apta do problema: O Capital (o livro) continua um projeto inacabado. Marx não solucionou todas as questões, nem previu o mundo de hoje. Contudo, sua crítica do capitalismo fornece uma base teórica extremamente útil para a compreensão da crise ecológica atual. Portanto, eu acrescentaria, o ecossocialismo pode se inspirar nas reflexões de Marx, mas deve, com as mudanças da era Antropocena no século XXI, desenvolver por completo um novo, eco-marxista, modo de enfrentamento.

* Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique. Tradução por Marina Bueno.
* Kohei Saito. Karl Marx’s Ecosocialism. Capitalism, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy. New York: Monthly Review Press, 2017.

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