terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O AI-5 de Sergio Moro

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

A história nos mostra que a essência do AI-5, que consolidou a ditadura militar em dezembro de 1968, encontrava-se na decisão de suspender o habeas corpus. Esta medida, sabemos todos, abriu caminho para a institucionalização da tortura de presos políticos.

Naquele país que manifestava a vontade de se rebelar contra o regime dos generais, através de protestos estudantis, greves operárias e manifestações culturais vigorosas, a tortura representava uma ação direta contra a resistência.

Já não bastava cassar mandatos de parlamentares eleitos, nem perseguir adversários políticos de diversas formas.

Era preciso sufocar a oposição, garantindo a prisão por tempo indeterminado, sem julgamento, de lideranças, militantes e personalidades de oposição em geral - para obrigá-las a abrir o bico.

Nesse ambiente, a tortura era um instrumento essencial e o fim do habeas corpus removia a última barreira legal ao uso generalizado do pau de arara e choques elétricos.

Com todas as distâncias de tempo e lugar, no Brasil de nossos dias, a eliminação do juiz de garantias - uma das boas propostas que o Legislativo incluiu no nefasto projeto anti-crime de Sérgio Moro - é uma decisão equivalente à supressão do habeas corpus há meio século.

O pacote anti-crime de Moro, aprovado pela Câmara e pelo Senado, contém várias medidas que representam um retrocesso na situação atual.

Para ficar em exemplos graves.

Num país com nossa expectativa de vida, pena máxima subiu de 30 para 40 anos, equivalente a prisão perpétua para a população pobre. Embora o transito em julgado esteja previsto na Constituição, garante-se a prisão imediata após decisão em Tribunal de Juri.

O pacote também reforça a atuação encoberta de policiais, ao validar prova obtida por agente infiltrado.

Num período histórico já marcado pela multiplicação dos instrumentos de acusação a começar pela delação premiada e a lei de organização criminosa, o juiz de garantias um contraponto necessário a medidas cujo único efeito real é enfraquecer o direito de defesa.

A rigor, trata-se de uma proposta tão simples e sensata que lembra aquela regra elementar dos campos de futebol - o jogador que cobra o escanteio não pode correr para a área para cabecear e fazer o gol.

Nos tribunais, a finalidade é evitar a excessiva concentração de poderes em mãos dos magistrados de primeira instância, dos quais a Lava Jato é a expressão e referência, mas está longe de ser o único caso.

Pelas regras atuais, um único juiz tem poderes absolutos sobre o inquérito.

Participa das investigações, autoriza depoimentos e audição de testemunhas.

Embora sua atividade, por lei, seja neutra por definição, no caso de Moro a imprensa fala até em "estratégia de investigação", sugerindo uma influência direta sobre a ação policial.

No fim dos trabalhos, assina a sentença, num monopólio de atribuições que abre um espaço óbvio para decisões enviesadas, para empregar palavras delicadas.

Mesmo deixando de lado casos de engajamento pré-definido ou opções formadas ao longo do processo, é humanamente compreensível que, no fim dos trabalhos, até o mais isento e bem intencionado dos magistrados enfrente uma dificuldade imensa para fazer uma avaliação imparcial de seu próprio desempenho e desfazer um processo inteiro caso descubra uma falha insanável no meio do caminho.

No caso brasileiro, a simples leitura dos diálogos divulgados pelo Intercept, assombrosos pelo conteúdo e pelo tom descontraído de quem tem certeza de que jamais será apanhado, demonstra uma situação de risco permanente ao direito dos réus.

Ao criar o juiz de garantias, cria-se uma autoridade que fica fora do inquérito, não interfere na condução do processo nem na sentença, mas é encarregada de zelar pelo devido respeito os direitos e garantias legais.

Fruto de um amadurecimento trazido pela experiência, neste momento o debate encontra-se num estágio previsível. Incapazes de enfrentar uma discussão real e produtiva, os adversários do juiz de garantia contam com o veto de Jair Bolsonaro para impor uma decisão vertical, de cima para baixo.

Maestro do coro, Sérgio Moro prioriza argumentos rasteiros. Diz que "a Justiça brasileira, com um juiz na maioria das comarcas, não tem condições de ter dois juízes em cada uma, e o trabalho à distância não é factível.”

Com toda delicadeza, basta lembrar o generoso orçamento do Judiciário, e a quantidade de escolas de Direito em atividade no país para reconhecer que estamos diante de um argumento de quem não tem argumento.

Mais uma vez, o que está em jogo são questões inegociáveis, pois envolvem princípios como o direito de defesa e a preservação da inocência.

Alguma dúvida?

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