Por João Teixeira Lopes, no site Carta Maior:
Ao contrário do que a ciência - incluindo a História e as ciências sociais - vem ensinando, gera-se a ideia de que nada há de conclusivo na evidência factual. Na verdade, deveria ser o inverso: “algumas coisas são verdadeiras independentemente de como sentimos ou pensamos a seu respeito” (Mcintyre, 2018: 11). Contudo, ganha a ideologia do irredutível pluralismo opinativo, uma vez que há sempre outras “versões” e que todo o conflito se resumiria, antes de mais, a uma questão de narrativa e de pontos de vistas, como de resto o desconstrucionismo ensina, qual idealismo textual: nada há fora do texto e as práticas discursivas estão de tal maneira imbuídas de signos e códigos culturais autorreferenciais que se fecha, inatingível desígnio, o acesso à realidade. Os mais ingênuos dos pós-modernos esquecem, ainda, que, quem mais força tem (e como seria crucial perceber a produção social desigual de discursos no capitalismo avançado!), com maior vigor propaga e impõe a sua verdade, universalizando-a. Em questão fica não só a possibilidade de acumular conhecimento sobre a realidade como a própria ideia de realidade.
A propagação de uma ideologia de “fatos alternativos” baseados na exaltação do ódio, do ressentimento e da frustração social tem hoje particular relevância por estar a tornar- -se um dispositivo sistêmico que explora, com centralização de vastos recursos (políticos, econômicos e simbólicos), condições de recepção altamente favoráveis para cimentar regimes autoritários, espécie de braço semiótico da acumulação flexível de capital: o crescimento das desigualdades sociais e da sua percepção, a par de uma opacidade gigantesca sobre quem programa os programadores e se encontra no cume da cadeia de comando, dado o funcionamento rizomático da transmissão simbólica; a crescente dissociação entre capital escolar e capital informacional (prolongam-se estudos, mas sem que tal constitua uma condição suficiente para apropriar as lavas torrenciais de informação e contra informação); a instabilidade dos percursos biográficos e sociais, permanentemente assaltados pelo pânico da desclassificação, da precaridade, e da vulnerabilidade e, finalmente, a multiplicação desse novo imperativo categórico, a ilusão soberana de sermos indivíduos autossuficientes na relação com a política e a informação.
Assim, geram-se as condições para a generalizada crença na incomensurabilidade das experiências, como se cada um tivesse o poder de escolher a sua realidade e de a impor aos outros, prescindindo dos protocolos de garantia implícita do contrato social da vida quotidiana e, ao mesmo tempo, abdicando da verificabilidade e da adesão aos factos da experiência científica. Ambas as recusas – do horizonte comum e sensível da anódina vida quotidiana e das verdades testadas, abertas e provisórias do conhecimento científico – fazem parte de um gigantesco empreendimento de redefinição do mundo.
Tal empreitada cavalga e ativa a predisposição biológica, hoje amplamente comprovada, de que o nosso cérebro tende a replicar as ideias e sentimentos gratificantes, solidificando-os em atitudes fixas e altamente resistentes à mudança, que se torna física e cognitivamente desconfortável (D’Ancona, 2017). As neurociências têm demonstrado como é difícil ajustar as nossas mentes e emoções às mudanças. Tendemos, na verdade, a replicar os sentimentos de recompensa que advêm de nos sentirmos bem com o mundo e assim fixamos, contra ventos e marés, as ideias que nos conferem um sentido de compreensão, organização e estabilidade. É conhecida a contribuição de Festinguer (1957) sobre a dissonância cognitiva e a propensão para eliminarmos descoincidências entre o nosso sistema de crenças e as atitudes comportamentais. De igual modo, reforçamos respostas “irracionais” quando estamos rodeados por outros que seguem o mesmo padrão de opiniões e gostos, potenciando o conformismo social. Finalmente, ativamos com frequência um viés de confirmação que nos leva a procurar preferencialmente informação que confirme os nossos pontos de vista pré-existentes.
Todavia, como já mencionamos, o processo é social e histórico, uma vez que esta base genética é ativada em contextos de grande incerteza e risco, particularmente de desclassificação social e precariedade. Aí, medram as assustadoras e ao mesmo tempo reconfortantes deep stories, conceito cunhado por Arlie Hochschild, que estudou os deserdados da América profunda que votam pelo Tea Party e por Donald Trump (Hochschild, 2016) com base em metáforas que ilustram a sua perda de honra social; alegorias míticas que se bastam a si mesmas e que bebem em alicerces emocionais e não em factos. As trajetórias sociais de perda e desespero são a terra fértil para as sementes de ressentimento e de ódio que colocam sempre as emoções primeiro e que, em seguida, fabricam argumentos que as reforcem, independentemente da sua veracidade, gerando uma ilusória sensação de controle do arbitrário e de organização do caos.
Curiosamente, tanto a interação social como a prática científica, apesar de tão díspares nas suas molduras, assentam no reconhecimento de certas regras do jogo, que atualmente perigam. Nas práticas científicas, o controlo cruzado dos pares, a institucionalização da reflexividade, a acumulação crítica, a verificação, a dúvida metódica e a replicação de rotinas impessoais são a pedra de toque da construção de argumentos, eternos erros à espera de vez.
Por isso, as acutilantes tendências culturais que hoje atacam a base do mundo da vida e do conhecimento menosprezam tanto os compromissos de trabalho que permitem aos agentes sociais prosseguir na sua jornada com o mínimo de segurança, como os discursos periciais que procuram compreender o mundo e as relações entre os seres humanos. Ambas as perspetivas – senso comum e ciência – são, sob crítica e exame constante, uma possibilidade de comunicação, isto é, de dignificação do outro como potencial parceiro.
A crença de que não mais existem factos, ou de que para cada facto há um outro alternativo e concorrente, substituiu a realidade pelo impacto emocional das narrativas e celebra o estado narcótico permanente do espetáculo e da performance. Em suma, tudo se resumiria a uma sentença: nada é verdadeiro e tudo é possível.
Poder-se-á objetar que tudo isto é conhecido. Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro mostram como, desde há várias décadas, governos, especialistas do marketing, da psicologia e das relações públicas e grandes empresas aperfeiçoaram dispositivos de fabricação de factos através do complexo mediático-publicitário, aprimorando artes de persuasão e engenharias de consentimento, nas mãos de um pequeno “governo invisível” de spin doctors e relações públicas. A sua libido consiste em criar o seu próprio conjunto de evidências ou simplesmente lançar a dúvida, disseminando a ideia de que não há causas suficientemente provadas ou ligações conclusivas entre variáveis. Como escreveu um executivo das empresas de tabaco “a dúvida é o nosso produto uma vez que é o melhor meio para competir com o “corpo de factos” que existe na mente do público em geral” (Mcintyre, 2018). Assim, especialistas avençados tornam-se um exército de vanguarda no trabalho de disputa sobre o pensamento da opinião pública reforçando mecanismos profundamente enraizados no cérebro, na psique e nas culturas humanas.
Ainda assim, a intensidade e a aceleração do fenômeno convocam algo de novo. É sabido como a experiência nas redes sociais tem revelado estertores de ódio e perseguição a várias minorias. Cabe perguntar se a cultura da rede das redes exponenciou a vida em bolhas cognitivas. Sem querer resvalar para posturas catastrofistas, diria que sim. O ciberespaço amplia este espírito, frustrando as esperanças emancipatórias da sociedade da informação em rede, que diluiria as distâncias entre emissores e receptores, transformando todos e cada um/a em produtores ativos de conhecimento. Ora, num feixe de indivíduos hiperconectados, os vínculos de pertença parecem enfraquecidos e, no pulsar da individualização expressiva, os espaços coletivos não forjam programas e projetos coerentes e militantes, antes estimulam a narrativa e a apresentação de si, em círculos de pares que preferem a “Universidade do Google” à procura crítica de fontes credíveis. Neste campo minado medra o “raciocínio motivado” que considera a “verdade” como sendo sempre subordinada ao ponto de vista pessoal. Da sociedade em rede chega-se ao fechamento em rede e à produção massiva de subjetividades controladas e socialmente conformes, sem pingo de rebeldia.
A ideia de que “a rede somos nós” e de que “a revolução será tuitada” (Gomes, 2016) convoca-nos para a ilusão subjetivista de uma amnésia: afinal, as redes são sociais por serem relações e essas relações, ainda que em espiral emotiva e instantânea velocidade, criam efeitos e contextos que os indivíduos não conseguem incorporar, conhecer, dominar, controlar. A tirania do aqui e agora, isto é, o domínio do evento sobre o movimento, assenta em vínculos fracos e em identidades fluidas: ora estão, ora não estão; ligam-se e desligam-se; concentram-se e dispersam-se com parco rastro (Lopes, 2016).
Para a maior parte dos agentes, além do mais, estar na rede corresponde a um estado essencialmente receptivo e emotivo, eventualmente até massificado: “o fenômeno do “comentário social” simplesmente representa uma forma de massificação das oportunidades de publicação da própria opinião em arenas com grande potencial de concentração da atenção pública” (Idem: 383). Existe pouca mobilização de recursos que permitam o que Giddens apelida de monitorização reflexiva da ação e a sua tradução em informação nova e credível. O self broadcasting, por exemplo, é ainda apanágio de detentores de elevado capital escolar. Revelando, é certo, qualidades de autonomia e processamento de informação, pretende traduzir, a maior parte das vezes, uma participação numa determinada disputa e não uma cobertura isenta e integral.
As “bolhas” têm as suas leis de funcionamento. Na confirmação de nós mesmos rejeitamos a diversificação de repertórios. Ora, sabemos como a diferença nos motiva à relação, à descoberta de novas linguagens e significados. O empobrecimento da mesmidade cria um efeito de “silo informacional” (Mcintyre, 2018) em que a amnésia das fontes divergentes se alia à repetição das mesmas ideias e a insegurança se resolve com o mergulho no tribalismo protetor da “pureza”. De tal forma se ignora a diversidade de pontos de vista e a sua radicação em factos eventualmente confirmáveis, que os especialistas da comunicação registam a intensidade de um “efeito bumerangue”, neutralizando toda a informação corretiva, por maior que seja a base da sua evidência factual.
Contra estes processos de ativação do ódio e do fechamento relacional importaria pensar, em outros termos (mais mundanos, corporais e populares), a tradição habermasiana da esfera pública. Mas isso será objeto de nova reflexão.
Bibliografia
D’Ancona, Matthew (2017), The New War on Post Truth and how to fight back. London: Ebury Press
Festinger, Leon (1957), A Theory of Cognitive Dissonance. Evanston, IL: Row, Peterson
Giddens, Anthony (2000), Dualidade da estrutura: agência e estrutura. Oeiras: Celta.
Gomes, Wilson (2016), “Nós somos a rede social! O protesto político entre as ruas e as redes” in Mendonça, Ricardo Fabrino et al., Democracia Digital. Publicidade, instituições e confronto político. Belo Horizonte: Editora UFMG, pp 367-391
Hochschild, Arlie (2016) Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning on the American Right. New York: New Press.
Jerónimo, Miguel Bandeira e Monteiro, José Pedro (2018), “SPIN! SPIN! SPIN! As origens dos “factos” plantados e das notícias falsas” in Público, 4 de Março de 2018
Lopes, João Teixeira (2016), “Movimentos ou momentos? Algumas notas sobre “novíssimos movimentos sociais” in Mendonça, Ricardo Fabrino et al., Democracia Digital. Publicidade, instituições e confronto político. Belo Horizonte: Editora UFMG, pp 333-345
McIntyre , Lee (2018), Post-Truth, Cambridge: MIT
* João Teixeira Lopes é sociólogo. Artigo publicado em fevereiro de 2019 na revista Esquerda | Republicado a partir de Esquerda.net.
Ao contrário do que a ciência - incluindo a História e as ciências sociais - vem ensinando, gera-se a ideia de que nada há de conclusivo na evidência factual. Na verdade, deveria ser o inverso: “algumas coisas são verdadeiras independentemente de como sentimos ou pensamos a seu respeito” (Mcintyre, 2018: 11). Contudo, ganha a ideologia do irredutível pluralismo opinativo, uma vez que há sempre outras “versões” e que todo o conflito se resumiria, antes de mais, a uma questão de narrativa e de pontos de vistas, como de resto o desconstrucionismo ensina, qual idealismo textual: nada há fora do texto e as práticas discursivas estão de tal maneira imbuídas de signos e códigos culturais autorreferenciais que se fecha, inatingível desígnio, o acesso à realidade. Os mais ingênuos dos pós-modernos esquecem, ainda, que, quem mais força tem (e como seria crucial perceber a produção social desigual de discursos no capitalismo avançado!), com maior vigor propaga e impõe a sua verdade, universalizando-a. Em questão fica não só a possibilidade de acumular conhecimento sobre a realidade como a própria ideia de realidade.
A propagação de uma ideologia de “fatos alternativos” baseados na exaltação do ódio, do ressentimento e da frustração social tem hoje particular relevância por estar a tornar- -se um dispositivo sistêmico que explora, com centralização de vastos recursos (políticos, econômicos e simbólicos), condições de recepção altamente favoráveis para cimentar regimes autoritários, espécie de braço semiótico da acumulação flexível de capital: o crescimento das desigualdades sociais e da sua percepção, a par de uma opacidade gigantesca sobre quem programa os programadores e se encontra no cume da cadeia de comando, dado o funcionamento rizomático da transmissão simbólica; a crescente dissociação entre capital escolar e capital informacional (prolongam-se estudos, mas sem que tal constitua uma condição suficiente para apropriar as lavas torrenciais de informação e contra informação); a instabilidade dos percursos biográficos e sociais, permanentemente assaltados pelo pânico da desclassificação, da precaridade, e da vulnerabilidade e, finalmente, a multiplicação desse novo imperativo categórico, a ilusão soberana de sermos indivíduos autossuficientes na relação com a política e a informação.
Assim, geram-se as condições para a generalizada crença na incomensurabilidade das experiências, como se cada um tivesse o poder de escolher a sua realidade e de a impor aos outros, prescindindo dos protocolos de garantia implícita do contrato social da vida quotidiana e, ao mesmo tempo, abdicando da verificabilidade e da adesão aos factos da experiência científica. Ambas as recusas – do horizonte comum e sensível da anódina vida quotidiana e das verdades testadas, abertas e provisórias do conhecimento científico – fazem parte de um gigantesco empreendimento de redefinição do mundo.
Tal empreitada cavalga e ativa a predisposição biológica, hoje amplamente comprovada, de que o nosso cérebro tende a replicar as ideias e sentimentos gratificantes, solidificando-os em atitudes fixas e altamente resistentes à mudança, que se torna física e cognitivamente desconfortável (D’Ancona, 2017). As neurociências têm demonstrado como é difícil ajustar as nossas mentes e emoções às mudanças. Tendemos, na verdade, a replicar os sentimentos de recompensa que advêm de nos sentirmos bem com o mundo e assim fixamos, contra ventos e marés, as ideias que nos conferem um sentido de compreensão, organização e estabilidade. É conhecida a contribuição de Festinguer (1957) sobre a dissonância cognitiva e a propensão para eliminarmos descoincidências entre o nosso sistema de crenças e as atitudes comportamentais. De igual modo, reforçamos respostas “irracionais” quando estamos rodeados por outros que seguem o mesmo padrão de opiniões e gostos, potenciando o conformismo social. Finalmente, ativamos com frequência um viés de confirmação que nos leva a procurar preferencialmente informação que confirme os nossos pontos de vista pré-existentes.
Todavia, como já mencionamos, o processo é social e histórico, uma vez que esta base genética é ativada em contextos de grande incerteza e risco, particularmente de desclassificação social e precariedade. Aí, medram as assustadoras e ao mesmo tempo reconfortantes deep stories, conceito cunhado por Arlie Hochschild, que estudou os deserdados da América profunda que votam pelo Tea Party e por Donald Trump (Hochschild, 2016) com base em metáforas que ilustram a sua perda de honra social; alegorias míticas que se bastam a si mesmas e que bebem em alicerces emocionais e não em factos. As trajetórias sociais de perda e desespero são a terra fértil para as sementes de ressentimento e de ódio que colocam sempre as emoções primeiro e que, em seguida, fabricam argumentos que as reforcem, independentemente da sua veracidade, gerando uma ilusória sensação de controle do arbitrário e de organização do caos.
Curiosamente, tanto a interação social como a prática científica, apesar de tão díspares nas suas molduras, assentam no reconhecimento de certas regras do jogo, que atualmente perigam. Nas práticas científicas, o controlo cruzado dos pares, a institucionalização da reflexividade, a acumulação crítica, a verificação, a dúvida metódica e a replicação de rotinas impessoais são a pedra de toque da construção de argumentos, eternos erros à espera de vez.
Por isso, as acutilantes tendências culturais que hoje atacam a base do mundo da vida e do conhecimento menosprezam tanto os compromissos de trabalho que permitem aos agentes sociais prosseguir na sua jornada com o mínimo de segurança, como os discursos periciais que procuram compreender o mundo e as relações entre os seres humanos. Ambas as perspetivas – senso comum e ciência – são, sob crítica e exame constante, uma possibilidade de comunicação, isto é, de dignificação do outro como potencial parceiro.
A crença de que não mais existem factos, ou de que para cada facto há um outro alternativo e concorrente, substituiu a realidade pelo impacto emocional das narrativas e celebra o estado narcótico permanente do espetáculo e da performance. Em suma, tudo se resumiria a uma sentença: nada é verdadeiro e tudo é possível.
Poder-se-á objetar que tudo isto é conhecido. Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro mostram como, desde há várias décadas, governos, especialistas do marketing, da psicologia e das relações públicas e grandes empresas aperfeiçoaram dispositivos de fabricação de factos através do complexo mediático-publicitário, aprimorando artes de persuasão e engenharias de consentimento, nas mãos de um pequeno “governo invisível” de spin doctors e relações públicas. A sua libido consiste em criar o seu próprio conjunto de evidências ou simplesmente lançar a dúvida, disseminando a ideia de que não há causas suficientemente provadas ou ligações conclusivas entre variáveis. Como escreveu um executivo das empresas de tabaco “a dúvida é o nosso produto uma vez que é o melhor meio para competir com o “corpo de factos” que existe na mente do público em geral” (Mcintyre, 2018). Assim, especialistas avençados tornam-se um exército de vanguarda no trabalho de disputa sobre o pensamento da opinião pública reforçando mecanismos profundamente enraizados no cérebro, na psique e nas culturas humanas.
Ainda assim, a intensidade e a aceleração do fenômeno convocam algo de novo. É sabido como a experiência nas redes sociais tem revelado estertores de ódio e perseguição a várias minorias. Cabe perguntar se a cultura da rede das redes exponenciou a vida em bolhas cognitivas. Sem querer resvalar para posturas catastrofistas, diria que sim. O ciberespaço amplia este espírito, frustrando as esperanças emancipatórias da sociedade da informação em rede, que diluiria as distâncias entre emissores e receptores, transformando todos e cada um/a em produtores ativos de conhecimento. Ora, num feixe de indivíduos hiperconectados, os vínculos de pertença parecem enfraquecidos e, no pulsar da individualização expressiva, os espaços coletivos não forjam programas e projetos coerentes e militantes, antes estimulam a narrativa e a apresentação de si, em círculos de pares que preferem a “Universidade do Google” à procura crítica de fontes credíveis. Neste campo minado medra o “raciocínio motivado” que considera a “verdade” como sendo sempre subordinada ao ponto de vista pessoal. Da sociedade em rede chega-se ao fechamento em rede e à produção massiva de subjetividades controladas e socialmente conformes, sem pingo de rebeldia.
A ideia de que “a rede somos nós” e de que “a revolução será tuitada” (Gomes, 2016) convoca-nos para a ilusão subjetivista de uma amnésia: afinal, as redes são sociais por serem relações e essas relações, ainda que em espiral emotiva e instantânea velocidade, criam efeitos e contextos que os indivíduos não conseguem incorporar, conhecer, dominar, controlar. A tirania do aqui e agora, isto é, o domínio do evento sobre o movimento, assenta em vínculos fracos e em identidades fluidas: ora estão, ora não estão; ligam-se e desligam-se; concentram-se e dispersam-se com parco rastro (Lopes, 2016).
Para a maior parte dos agentes, além do mais, estar na rede corresponde a um estado essencialmente receptivo e emotivo, eventualmente até massificado: “o fenômeno do “comentário social” simplesmente representa uma forma de massificação das oportunidades de publicação da própria opinião em arenas com grande potencial de concentração da atenção pública” (Idem: 383). Existe pouca mobilização de recursos que permitam o que Giddens apelida de monitorização reflexiva da ação e a sua tradução em informação nova e credível. O self broadcasting, por exemplo, é ainda apanágio de detentores de elevado capital escolar. Revelando, é certo, qualidades de autonomia e processamento de informação, pretende traduzir, a maior parte das vezes, uma participação numa determinada disputa e não uma cobertura isenta e integral.
As “bolhas” têm as suas leis de funcionamento. Na confirmação de nós mesmos rejeitamos a diversificação de repertórios. Ora, sabemos como a diferença nos motiva à relação, à descoberta de novas linguagens e significados. O empobrecimento da mesmidade cria um efeito de “silo informacional” (Mcintyre, 2018) em que a amnésia das fontes divergentes se alia à repetição das mesmas ideias e a insegurança se resolve com o mergulho no tribalismo protetor da “pureza”. De tal forma se ignora a diversidade de pontos de vista e a sua radicação em factos eventualmente confirmáveis, que os especialistas da comunicação registam a intensidade de um “efeito bumerangue”, neutralizando toda a informação corretiva, por maior que seja a base da sua evidência factual.
Contra estes processos de ativação do ódio e do fechamento relacional importaria pensar, em outros termos (mais mundanos, corporais e populares), a tradição habermasiana da esfera pública. Mas isso será objeto de nova reflexão.
Bibliografia
D’Ancona, Matthew (2017), The New War on Post Truth and how to fight back. London: Ebury Press
Festinger, Leon (1957), A Theory of Cognitive Dissonance. Evanston, IL: Row, Peterson
Giddens, Anthony (2000), Dualidade da estrutura: agência e estrutura. Oeiras: Celta.
Gomes, Wilson (2016), “Nós somos a rede social! O protesto político entre as ruas e as redes” in Mendonça, Ricardo Fabrino et al., Democracia Digital. Publicidade, instituições e confronto político. Belo Horizonte: Editora UFMG, pp 367-391
Hochschild, Arlie (2016) Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning on the American Right. New York: New Press.
Jerónimo, Miguel Bandeira e Monteiro, José Pedro (2018), “SPIN! SPIN! SPIN! As origens dos “factos” plantados e das notícias falsas” in Público, 4 de Março de 2018
Lopes, João Teixeira (2016), “Movimentos ou momentos? Algumas notas sobre “novíssimos movimentos sociais” in Mendonça, Ricardo Fabrino et al., Democracia Digital. Publicidade, instituições e confronto político. Belo Horizonte: Editora UFMG, pp 333-345
McIntyre , Lee (2018), Post-Truth, Cambridge: MIT
* João Teixeira Lopes é sociólogo. Artigo publicado em fevereiro de 2019 na revista Esquerda | Republicado a partir de Esquerda.net.
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