sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Policiais-milicianos levam terror ao Ceará

Por Ricardo Kotscho, em seu blog:

“O apatifamento de uma nação começa pela degradação do discurso público” (Luiz Fernando Veríssimo, em sua coluna de hoje sob o título “Apatifaram-nos”).

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Fala-se muito em militarização do governo, o que é fato, mas a ameaça maior à democracia vem da milicianização das Polícias Militares fora de controle em todo o país.

O que era um fenômeno carioca, onde as milícias formadas por ex-policiais e ex-militares progressivamente assumiram o papel do Estado, foi se alastrando por toda parte, a ponto de já não se saber quem é quem nesta crescente onda de violência promovida por agentes públicos fora da lei.

Não, não é nada normal que policiais militares, encapuzados e armados como milicianos, levem o terror às ruas do Ceará, ordenando o fechamento do comércio e atirando para matar no ex-governador Cid Gomes.

Não, também não é nada normal que Cid Gomes monte numa retroescavadeira para avançar sobre os policias amotinados no quartel de Sobral, o reduto da família.

Não, não é nada normal que policiais militares em São Paulo invadam uma escola dando porrada nos alunos de uma escola estadual no bairro do Rio Pequeno, depois da matança nove jovens num baile funk em Paraisópolis, semanas atrás.

Os policiais já foram sumariamente inocentados pela corregedoria. Esse é o “novo normal”.

Não, não é nada normal que crianças sejam vítimas constantes de balas perdidas no Rio, onde a polícia tem apoio do governador para “atirar na cabecinha” e perguntar depois, nos confrontos com bandidos nas favelas - só nas favelas.

Com cerca de 500 mil homens bem armados e liberados para matar, um contingente maior do que o das Forças Armadas, as corporações das PMs desafiam os governadores a lhes concederem aumentos salariais acima da inflação e os mesmos privilégios dados aos militares na reforma da Previdência.

Para evitar maiores problemas e não virar refém da PM como os outros, Romeu Zema, do Novo (novo o quê?), governador de Minas Gerais, um estado quebrado que atrasa salários, já foi logo dando um aumento acima de 40% à sua polícia

“Policiais armados e mascarados não são grevistas e como tal devem ser detidos e punidos. Quem atirou no senador sentia-se amparado na autoridade federal que apoia a violência e a elogia. Amplia essa percepção a relação com milicianos e a defesa da liberação de armas”, publicou a ex-presidente Dilma Rousseff nas mídias sociais nesta manhã de quinta-feira.

Dilma foi ao ponto central da questão, que outros atores políticos tentaram contornar, como se tudo fizesse parte do “novo normal”, esta definição cínica e hipócrita para o desmanche do Estado Democrático de Direito.

Não, as instituições não estão “em pleno funcionamento” já faz tempo, ou as milícias não teriam hoje tanto poder para fazer as suas próprias leis.

Não, não é normal que o presidente da República e seus filhos descontem nos jornalistas seus medos com as investigações sobre a morte do miliciano Adriano da Nóbrega, um amigão da família, que Flávio Bolsonaro visitou várias vezes na prisão.

Não, não é normal que um dos generais do governo, Augusto Heleno, queira convencer o presidente a convocar o povo a ir às ruas contra o Congresso.

Com os milicianos se organizando num poder paralelo, de um lado, e os militares, de outro, na retaguarda, sem qualquer articulação política no Congresso, Bolsonaro vai se segurando no cargo como uma rainha louca que vê inimigos e conspirações por toda parte no seu palácio, e sai atirando patifarias para todos os lados.

Se até mestre Veríssimo teve que recorrer ao dicionário para explicar o que está acontecendo, dá para imaginar a dificuldade deste velho cronista do cotidiano depois de tantos carnavais.

Será que alguma escola de samba do futuro poderá criar um enredo capaz de mostrar como era o Brasil do capitão em 2020?

No desfile, não poderá faltar a retroescavadeira e a ala dos policiais fantasiados de milicianos.

Tudo está parecendo tão absolutamente inverosímel que já ultrapassaram as barreiras da ficção mais alucinante.

O título do samba-enredo poderia ser “A grande patifaria”.

E vida que segue.

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