Por Leonardo Avritzer, no site A terra é redonda:
Circularam nas redes sociais, neste início de ano, algumas interpretações equivocadas acerca do argumento arendtiano presente em um de seus principais livros: As origens do totalitarismo (Companhia das Letras). No Brasil da polarização das redes sociais, o resgate do argumento de Hannah Arendt acerca do totalitarismo se deu pelos motivos mais pedestres possíveis.
Depois do vídeo do discípulo de Goebbels de plantão na Secretaria Nacional de Cultura, usou-se Arendt para afirmar que o socialismo, na sua versão estalinista, é tão ruim quanto o nazismo. Cada uma das experiências totalitárias produziu mortos e fortes restrições na liberdade, o que dificulta discordâncias com esse tipo de afirmação. Entretanto, essa recepção de Hannah Arendt, comum desde a publicação de As origens do totalitarismo e está ligada à situação de Guerra Fria, é uma recepção equivocada (vide entre outros Jeffrey Issac, Arendt, Camus and modern rebellion).
Essa recepção é equivocada, de fato, porque supõe que o objetivo da obra é relacionar as duas experiências totalitárias quando na verdade o objetivo dessa e de outras obras arendtianas é mostrar como o autoritarismo destrói os espaços de pluralidade que são necessários para a política democrática. É com essa ideia que tentarei dar uma explicação para a praga bolsonarista que atinge a democracia brasileira.
Para Hannah Arendt, a política democrática é estruturalmente dependente de um espaço no qual tendências diversas de pensamento se entrelaçam baseadas na pluralidade de eventos e experiências. A única maneira de constituir um espaço democrático é aceitando essa pluralidade na qual nenhuma ideia, a não ser a ideia do direito a ter direitos, alcança a hegemonia completa e as diferentes formas de ação são debatidas por atores políticos (Arendt, 1951, As origens do totalitarismo e 1958, A condição humana [Forense universitária]).
Em contraste com a ideia da política democrática, o totalitarismo ou o autoritarismo tem como objetivo destruir o espaço público de pluralidade por meio da transformação de atores políticos que divergem em inimigos que não merecem o aceso à pluralidade do espaço público. Não é difícil perceber que essa demonização do público, que o pensamento totalitário secular de meados do século XX e os fundamentalismos religiosos do século XXI partilham, é que permite a degradação da política – esta que assistimos ocorrer a largos passos no nosso país. E aqui vale pensar no papel das redes sociais que evidentemente não são responsáveis pelo estreitamento do pluralismo no espaço público, mas obedecem a uma lógica de gueto político que acentua este processo.
O Brasil é um país no qual estas características se expressam diuturnamente, independentemente da impossibilidade de classificarmos o país como totalitário. O Brasil tem um espaço público atípico por diversos motivos: em primeiro lugar, ele não conseguiu no momento de liberalismo midiático ter uma mídia pluralista. Temos uma grande mídia oligopolizada devido à maneira como ela foi constituída no período autoritário e à inabilidade das forças democráticas em submeter a grande mídia a qualquer tipo de regulamentação, tal como ela sofre nos Estados Unidos e na Inglaterra.
O resultado é uma mídia pouco pluralista. A exceção é a Folha de S. Paulo que mantem o pluralismo entre os seus articulistas e se distanciou rapidamente da coalizão monopolista da grande mídia ao pedir novas eleições, ainda antes da discussão sobre um possível impeachment de Jair Bolsonaro.
Foi esta coalizão midiática que constituiu um espaço de questionamento das concepções políticas da esquerda brasileira e aceitou uma normalização das concepções políticas da extrema direita. O resultado dessa distorção de percepção despontou em 2018 e ainda não chegou ao seu final. Ali, Jair Bolsonaro foi apresentado como tendo as mesmas concepções de política que Fernando Haddad – ambos seriam antidemocráticos – mas o capitão reformado não viria do campo impuro da “corrupção”, outro elemento que merece uma análise arendtiana.
Hannah Arendt afirmou em As origens do totalitarismo, assim como em outros escritos, que um dos elementos centrais do apoio das massas a experiências autoritárias reside no deslocamento de certas ideias utópicas. Tanto o nazismo quanto o estalinismo operaram com êxito neste espaço, transformando ideias como pureza racial ou pureza de classe em utopias que justificavam a distorção do debate público e a repressão aos seus opositores.
Ouso dizer que a ideia de corrupção, tal como ela é operada no Brasil desde 2014, cumpre função semelhante. Ainda que seja difícil concebê-lo hoje, devido ao absurdo da proposição, a ideia da raça pura, esta foi entendida como uma forma de utopia na Alemanha dos anos 1930, da mesma forma como a ideia de pureza de classe na antiga União Soviética. Não tenho dúvida de que a suposta campanha contra a corrupção preencheu no Brasil os mesmos requisitos: a introdução de uma chave analítica limpos versus impuros associada com a ideia de um grande combatente desse processo de degradação social, no caso o juiz da 13º vara da justiça federal, Sérgio Moro.
Todas as instituições midiáticas brasileiras operaram nessa chave interpretativa que permitiu ao juiz tentar intervir no processo eleitoral de 2014, pressionar juízes do Supremo Tribunal Federal, liberar áudios proibidos pela lei e extorquir informações de testemunhas através do uso ilegal do instrumento da condução coercitiva.
Vale a pena traçar o paralelo com a maneira como os juízes na Alemanha nazista operavam: a legislação criminal do Nacional Socialismo supunha o dever da lealdade ao Volk. Assim, o direito nacional socialista renunciava à ideia de que “a lei deveria ser a única fonte para determinar o que é legal e o ilegal” (vide o excelente livro de Ingo Muller. Hitler´s Justice). Não tenho dúvida de que a Lava Jato operou a partir do mesmo princípio: uma vez estabelecidos os seus inimigos, a questão seria puni-los e não se pautar pela legalidade.
O campo da mentira midiática ou judicialmente sancionada começa a se desenvolver ainda em 2016, quando Moro pede as chamadas escusas ao então ministro do STF, Teori Zavascki. Ali ele afirma que errou, mas que não “teve por objetivo gerar fato político-partidário”. Em 2017, depois de condenar o ex-presidente Lula pela propriedade do triplex e por recebimento de propina em troca de favorecimento em contratos da Petrobras, Sérgio Moro dá um passo adiante quando afirma, ao responder aos embargos declaratórios dos advogados do ex-presidente Lula, que o menos importante era se a origem dos recursos estava em contratos da Petrobrás.
Por último, ele afirmou que não tinha nenhuma relação pessoal ou convite do atual presidente quando liberou trechos da delação premiada do ex-ministro Antônio Palocci alguns dias antes do primeiro turno das eleições de 2018. Assim, podemos dizer que o problema da mentira ou da dissimulação está presente na Lava Jato e nos comportamentos do juiz Sérgio Moro antes de alcançar o campo bolsonarista.
Uma questão central nesta conjuntura e da qual, não por acaso, quase nada sabemos, porque nenhum órgão de imprensa se propôs a investigar, é qual foi a relação entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro (ou os militares) entre 2015 e outubro de 2018 quando o primeiro foi então convidado a assumir o Ministério da Justiça do recém-eleito presidente. Sabemos, no entanto, que há um claro encobrimento dessa relação.
No dia 04 de março de 2016, quando Sérgio Moro sentiu-se blindado o suficiente para ordenar a coerção coercitiva do ex-presidente Lula sem jamais tê-lo citado ou incluído como suspeito em qualquer um dos processos da operação Lava Jato, Jair Bolsonaro encontrava-se em Curitiba esperando a chegada do ex-presidente lá. É lícito supor que estas relações que fazem parte do submundo do bolsonarismo existiam muito antes e com diversos intermediários.
Assim, também foi considerada absolutamente natural a visita do general Hamilton Mourão ao presidente do TRF-4 quando esse estava de posse do recurso do ex-presidente que seria julgado ou talvez decidido em tempo recorde. Assim, a politização do Judiciário e o estreitamento do campo público e da mídia andaram de braços dados até o início da campanha eleitoral. O que ocorreu a partir dali? A apropriação do conjunto da obra pelo bolsonarismo.
Jair Bolsonaro pertence a este campo de uma forma bastante particular e o uso que ele faz da mentira parece ser de outro tipo, diferente de Moro e da Lava Jato. Em primeiro lugar, a estratégia do bolsonarismo até o início da campanha eleitoral foi ocupar as margens do debate político e do campo público. Nesse momento marginal, não há nenhuma mentira no bolsonarismo, apenas uma interpretação minoritária e isolada dos fatos recentes da história do Brasil. Assim, Bolsonaro pode assumir o legado da ditadura militar, defender torturadores e milicianos abertamente e atacar o Poder Judiciário.
Foi apenas quando os grupos midiáticos, judiciais e empresariais chegaram à conclusão que seu projeto centrista fracassou completamente, no início do processo eleitoral do ano de 2018, que uma operação mais sofisticada entrou em cena. Nessa operação Bolsonaro, Moro, e os grupos religiosos são apresentados como a fonte da pureza ética ou da pureza moral, sempre em contrapontos ao PT e à esquerda que há alguns anos vinham sendo apresentados como o centro da corrupção na sociedade brasileira.
Foi esse o conteúdo das fake news, assim como foi esse o conteúdo do debate público travado por esses atores. Naquele momento, a grande mídia e seus jornalistas de plantão optaram por uma segunda estratégia eleitoralmente exitosa: o PT e o bolsonarismo estavam igualmente fora do campo democrático, mas o PT deveria ser punido pelas suas ações na economia e pela corrupção. Esse foi o discurso que prevaleceu até o começo desse ano apesar dos escândalos da “rachadinha” no Rio de Janeiro, do sumiço do Queiroz, da investigação manipulada do assassinato de Marielle Franco e das opiniões do presidente sobre o Congresso e o STF. Por que essa estratégia não funciona mais?
Porque o bolsonarismo não consegue entregar promessas nem no campo da economia e nem no campo da segurança pública e corre o risco de entrar mal posicionado para o processo eleitoral de 2020. O que ele faz então? Rompe com a aliança tácita com os setores da manipulação midiática. E rompe completamente, tanto com a Folha de S. Paulo que nem chegou a entrar completamente nessa aliança, quanto com os grupos que a princípio faziam parte dela como o O Globo e o Estadão.
A ruptura do bolsonarismo com o campo mediático que contribuiu com o estreitamento do debate público se dá pelos mesmos meios que o processo anterior foi construído: como uma tentativa de criar uma mobilização contra os impuros ou não-éticos da política que agora são o Congresso, o STF e a imprensa. O presidente, devido às suas características pessoais, deu um passo adiante nessa estratégia ao escolher jornalistas (não por acaso do sexo feminino) para agredir em bases pessoais. Mas, o que mais chama a atenção no bolsonarismo e no campo que ele vem construindo é que a apresentação de provas por jornalistas como Patrícia Mello ou Vera Magalhães não impediu o presidente de mentir abertamente sobre essas questões.
Voltamos mais uma vez à análise arendtiana. Se o campo no qual o debate público plural pode ser travado não existe, a mentira pode ser normalizada enquanto verdade. Os jornais O Globo e Estadão fizeram editorais na última semana que mostram o tamanho do problema que enfrentamos hoje no Brasil para tentar reestabelecer um espaço público plural.
O Estadão seguiu a mesma linha que segue pelo menos desde 2016. Ele identifica um processo de afronta à lei, mas faz questão de remetê-lo ao que os donos do jornal chamam de lulopetismo. Assim, “a bem da verdade, não é de hoje que um presidente faz troça das instituições e da lei. Já passaram à história as seguidas ofensas de Lula da Silva ao Judiciário, bem como sua bênção à corrupção desbragada promovida pelo PT no Congresso. Bolsonaro, aliás, elegeu-se justamente em razão da revolta dos brasileiros ante essa demonstração cabal e sistemática de desrespeito à democracia”.
Ou seja, temos aqui duas colocações de absoluta distorção dos elementos centrais do debate público no Brasil: o primeiro é que os que elegeram Bolsonaro buscavam a restauração da democracia e da ordem. Não há na biografia do capitão reformado tornado presidente colocações neste sentido. Em segundo, que a ordem, a lei e a democracia eram ameaçadas pelo governo de esquerda. Se o eram, como julgam os editorialistas do Estadão, por que a degradação produzida por Bolsonaro e sua gang de apoiadores nas redes sociais implica em uma degradação tão forte da democracia?
O Globo também publicou um editorial, mas com uma estratégia mais inteligente do que a do Estadão. Para o Globo, Jair Bolsonaro “Foi beneficiado em 2018 por uma conjunção feliz para ele, em que a debacle da esquerda, desestabilizada pelo desastre ético lulopetista e pela teimosia do ex-presidente Lula em continuar dono do PT, somada à falta de nomes para ocupar espaços no centro, permitiu a sua eleição, com a ajuda de muitos que usaram o voto para punir o PT. À medida que o ex-capitão foi revelando toda a face de extremista, e não apenas na política, boa parte destes eleitores se afastou. Bolsonaro tornou-se, então, um presidente de baixa popularidade, sustentado por milícias digitais e claques de porta de Palácio. E passou cada vez mais a dirigir-se a estes bolsões, o que o foi afastando da maior parcela da sociedade”.
Ou seja, ambas as narrativas tentam estabelecer o impossível, uma relação entre o governo de esquerda e o lulismo com uma degradação do espaço público patrocinada pelo Bolsonarismo. No caso do Estadão já havia essa degradação antes, só que o Brasil não sabia. No caso de O Globo, o problema foi a tentativa do eleitor de punir o PT e o lulismo, ação com a qual o próprio jornal ou o grupo não teria qualquer relação. Em ambos os casos vemos mais uma tentativa de operação tabajara, isto é, tenta-se criar uma linha de continuidade em um processo de clara ruptura: a tentativa de Moro e Bolsonaro de romper com o resto de pluralidade que restou no país e que o bolsonarismo está disposto a romper com agressões a jornalistas e mentir sobre os fatos envolvidos.
Ainda mais importante é a tentativa de negação pela grande mídia do óbvio: que a demarcação ética construída pela Lava Jato é falsa e foi ela que permitiu a construção do bolsonarismo como um campo não corrupto, apesar de todas as evidências de relações com milicianos e “rachadinhas” de gabinete.
Infelizmente, não existe meia sola na reconstituição de um campo público político no Brasil. Para a sua reconstituição é preciso reconhecer aquilo que a “Vaza Jato” mostrou: a tentativa de manipulação da operação judicial, assim como a tentativa de estabelecer um pseudocampo ético na política. Tentar se opor ao bolsonarismo e manter a estratégia de demarcação ética construída pela dupla Moro-Bolsonaro é uma estratégia inviável que não conseguirá deter a deterioração do espaço público no nosso país.
* Leonardo Avritzer é professor de Ciência Política na UFMG.
Circularam nas redes sociais, neste início de ano, algumas interpretações equivocadas acerca do argumento arendtiano presente em um de seus principais livros: As origens do totalitarismo (Companhia das Letras). No Brasil da polarização das redes sociais, o resgate do argumento de Hannah Arendt acerca do totalitarismo se deu pelos motivos mais pedestres possíveis.
Depois do vídeo do discípulo de Goebbels de plantão na Secretaria Nacional de Cultura, usou-se Arendt para afirmar que o socialismo, na sua versão estalinista, é tão ruim quanto o nazismo. Cada uma das experiências totalitárias produziu mortos e fortes restrições na liberdade, o que dificulta discordâncias com esse tipo de afirmação. Entretanto, essa recepção de Hannah Arendt, comum desde a publicação de As origens do totalitarismo e está ligada à situação de Guerra Fria, é uma recepção equivocada (vide entre outros Jeffrey Issac, Arendt, Camus and modern rebellion).
Essa recepção é equivocada, de fato, porque supõe que o objetivo da obra é relacionar as duas experiências totalitárias quando na verdade o objetivo dessa e de outras obras arendtianas é mostrar como o autoritarismo destrói os espaços de pluralidade que são necessários para a política democrática. É com essa ideia que tentarei dar uma explicação para a praga bolsonarista que atinge a democracia brasileira.
Para Hannah Arendt, a política democrática é estruturalmente dependente de um espaço no qual tendências diversas de pensamento se entrelaçam baseadas na pluralidade de eventos e experiências. A única maneira de constituir um espaço democrático é aceitando essa pluralidade na qual nenhuma ideia, a não ser a ideia do direito a ter direitos, alcança a hegemonia completa e as diferentes formas de ação são debatidas por atores políticos (Arendt, 1951, As origens do totalitarismo e 1958, A condição humana [Forense universitária]).
Em contraste com a ideia da política democrática, o totalitarismo ou o autoritarismo tem como objetivo destruir o espaço público de pluralidade por meio da transformação de atores políticos que divergem em inimigos que não merecem o aceso à pluralidade do espaço público. Não é difícil perceber que essa demonização do público, que o pensamento totalitário secular de meados do século XX e os fundamentalismos religiosos do século XXI partilham, é que permite a degradação da política – esta que assistimos ocorrer a largos passos no nosso país. E aqui vale pensar no papel das redes sociais que evidentemente não são responsáveis pelo estreitamento do pluralismo no espaço público, mas obedecem a uma lógica de gueto político que acentua este processo.
O Brasil é um país no qual estas características se expressam diuturnamente, independentemente da impossibilidade de classificarmos o país como totalitário. O Brasil tem um espaço público atípico por diversos motivos: em primeiro lugar, ele não conseguiu no momento de liberalismo midiático ter uma mídia pluralista. Temos uma grande mídia oligopolizada devido à maneira como ela foi constituída no período autoritário e à inabilidade das forças democráticas em submeter a grande mídia a qualquer tipo de regulamentação, tal como ela sofre nos Estados Unidos e na Inglaterra.
O resultado é uma mídia pouco pluralista. A exceção é a Folha de S. Paulo que mantem o pluralismo entre os seus articulistas e se distanciou rapidamente da coalizão monopolista da grande mídia ao pedir novas eleições, ainda antes da discussão sobre um possível impeachment de Jair Bolsonaro.
Foi esta coalizão midiática que constituiu um espaço de questionamento das concepções políticas da esquerda brasileira e aceitou uma normalização das concepções políticas da extrema direita. O resultado dessa distorção de percepção despontou em 2018 e ainda não chegou ao seu final. Ali, Jair Bolsonaro foi apresentado como tendo as mesmas concepções de política que Fernando Haddad – ambos seriam antidemocráticos – mas o capitão reformado não viria do campo impuro da “corrupção”, outro elemento que merece uma análise arendtiana.
Hannah Arendt afirmou em As origens do totalitarismo, assim como em outros escritos, que um dos elementos centrais do apoio das massas a experiências autoritárias reside no deslocamento de certas ideias utópicas. Tanto o nazismo quanto o estalinismo operaram com êxito neste espaço, transformando ideias como pureza racial ou pureza de classe em utopias que justificavam a distorção do debate público e a repressão aos seus opositores.
Ouso dizer que a ideia de corrupção, tal como ela é operada no Brasil desde 2014, cumpre função semelhante. Ainda que seja difícil concebê-lo hoje, devido ao absurdo da proposição, a ideia da raça pura, esta foi entendida como uma forma de utopia na Alemanha dos anos 1930, da mesma forma como a ideia de pureza de classe na antiga União Soviética. Não tenho dúvida de que a suposta campanha contra a corrupção preencheu no Brasil os mesmos requisitos: a introdução de uma chave analítica limpos versus impuros associada com a ideia de um grande combatente desse processo de degradação social, no caso o juiz da 13º vara da justiça federal, Sérgio Moro.
Todas as instituições midiáticas brasileiras operaram nessa chave interpretativa que permitiu ao juiz tentar intervir no processo eleitoral de 2014, pressionar juízes do Supremo Tribunal Federal, liberar áudios proibidos pela lei e extorquir informações de testemunhas através do uso ilegal do instrumento da condução coercitiva.
Vale a pena traçar o paralelo com a maneira como os juízes na Alemanha nazista operavam: a legislação criminal do Nacional Socialismo supunha o dever da lealdade ao Volk. Assim, o direito nacional socialista renunciava à ideia de que “a lei deveria ser a única fonte para determinar o que é legal e o ilegal” (vide o excelente livro de Ingo Muller. Hitler´s Justice). Não tenho dúvida de que a Lava Jato operou a partir do mesmo princípio: uma vez estabelecidos os seus inimigos, a questão seria puni-los e não se pautar pela legalidade.
O campo da mentira midiática ou judicialmente sancionada começa a se desenvolver ainda em 2016, quando Moro pede as chamadas escusas ao então ministro do STF, Teori Zavascki. Ali ele afirma que errou, mas que não “teve por objetivo gerar fato político-partidário”. Em 2017, depois de condenar o ex-presidente Lula pela propriedade do triplex e por recebimento de propina em troca de favorecimento em contratos da Petrobras, Sérgio Moro dá um passo adiante quando afirma, ao responder aos embargos declaratórios dos advogados do ex-presidente Lula, que o menos importante era se a origem dos recursos estava em contratos da Petrobrás.
Por último, ele afirmou que não tinha nenhuma relação pessoal ou convite do atual presidente quando liberou trechos da delação premiada do ex-ministro Antônio Palocci alguns dias antes do primeiro turno das eleições de 2018. Assim, podemos dizer que o problema da mentira ou da dissimulação está presente na Lava Jato e nos comportamentos do juiz Sérgio Moro antes de alcançar o campo bolsonarista.
Uma questão central nesta conjuntura e da qual, não por acaso, quase nada sabemos, porque nenhum órgão de imprensa se propôs a investigar, é qual foi a relação entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro (ou os militares) entre 2015 e outubro de 2018 quando o primeiro foi então convidado a assumir o Ministério da Justiça do recém-eleito presidente. Sabemos, no entanto, que há um claro encobrimento dessa relação.
No dia 04 de março de 2016, quando Sérgio Moro sentiu-se blindado o suficiente para ordenar a coerção coercitiva do ex-presidente Lula sem jamais tê-lo citado ou incluído como suspeito em qualquer um dos processos da operação Lava Jato, Jair Bolsonaro encontrava-se em Curitiba esperando a chegada do ex-presidente lá. É lícito supor que estas relações que fazem parte do submundo do bolsonarismo existiam muito antes e com diversos intermediários.
Assim, também foi considerada absolutamente natural a visita do general Hamilton Mourão ao presidente do TRF-4 quando esse estava de posse do recurso do ex-presidente que seria julgado ou talvez decidido em tempo recorde. Assim, a politização do Judiciário e o estreitamento do campo público e da mídia andaram de braços dados até o início da campanha eleitoral. O que ocorreu a partir dali? A apropriação do conjunto da obra pelo bolsonarismo.
Jair Bolsonaro pertence a este campo de uma forma bastante particular e o uso que ele faz da mentira parece ser de outro tipo, diferente de Moro e da Lava Jato. Em primeiro lugar, a estratégia do bolsonarismo até o início da campanha eleitoral foi ocupar as margens do debate político e do campo público. Nesse momento marginal, não há nenhuma mentira no bolsonarismo, apenas uma interpretação minoritária e isolada dos fatos recentes da história do Brasil. Assim, Bolsonaro pode assumir o legado da ditadura militar, defender torturadores e milicianos abertamente e atacar o Poder Judiciário.
Foi apenas quando os grupos midiáticos, judiciais e empresariais chegaram à conclusão que seu projeto centrista fracassou completamente, no início do processo eleitoral do ano de 2018, que uma operação mais sofisticada entrou em cena. Nessa operação Bolsonaro, Moro, e os grupos religiosos são apresentados como a fonte da pureza ética ou da pureza moral, sempre em contrapontos ao PT e à esquerda que há alguns anos vinham sendo apresentados como o centro da corrupção na sociedade brasileira.
Foi esse o conteúdo das fake news, assim como foi esse o conteúdo do debate público travado por esses atores. Naquele momento, a grande mídia e seus jornalistas de plantão optaram por uma segunda estratégia eleitoralmente exitosa: o PT e o bolsonarismo estavam igualmente fora do campo democrático, mas o PT deveria ser punido pelas suas ações na economia e pela corrupção. Esse foi o discurso que prevaleceu até o começo desse ano apesar dos escândalos da “rachadinha” no Rio de Janeiro, do sumiço do Queiroz, da investigação manipulada do assassinato de Marielle Franco e das opiniões do presidente sobre o Congresso e o STF. Por que essa estratégia não funciona mais?
Porque o bolsonarismo não consegue entregar promessas nem no campo da economia e nem no campo da segurança pública e corre o risco de entrar mal posicionado para o processo eleitoral de 2020. O que ele faz então? Rompe com a aliança tácita com os setores da manipulação midiática. E rompe completamente, tanto com a Folha de S. Paulo que nem chegou a entrar completamente nessa aliança, quanto com os grupos que a princípio faziam parte dela como o O Globo e o Estadão.
A ruptura do bolsonarismo com o campo mediático que contribuiu com o estreitamento do debate público se dá pelos mesmos meios que o processo anterior foi construído: como uma tentativa de criar uma mobilização contra os impuros ou não-éticos da política que agora são o Congresso, o STF e a imprensa. O presidente, devido às suas características pessoais, deu um passo adiante nessa estratégia ao escolher jornalistas (não por acaso do sexo feminino) para agredir em bases pessoais. Mas, o que mais chama a atenção no bolsonarismo e no campo que ele vem construindo é que a apresentação de provas por jornalistas como Patrícia Mello ou Vera Magalhães não impediu o presidente de mentir abertamente sobre essas questões.
Voltamos mais uma vez à análise arendtiana. Se o campo no qual o debate público plural pode ser travado não existe, a mentira pode ser normalizada enquanto verdade. Os jornais O Globo e Estadão fizeram editorais na última semana que mostram o tamanho do problema que enfrentamos hoje no Brasil para tentar reestabelecer um espaço público plural.
O Estadão seguiu a mesma linha que segue pelo menos desde 2016. Ele identifica um processo de afronta à lei, mas faz questão de remetê-lo ao que os donos do jornal chamam de lulopetismo. Assim, “a bem da verdade, não é de hoje que um presidente faz troça das instituições e da lei. Já passaram à história as seguidas ofensas de Lula da Silva ao Judiciário, bem como sua bênção à corrupção desbragada promovida pelo PT no Congresso. Bolsonaro, aliás, elegeu-se justamente em razão da revolta dos brasileiros ante essa demonstração cabal e sistemática de desrespeito à democracia”.
Ou seja, temos aqui duas colocações de absoluta distorção dos elementos centrais do debate público no Brasil: o primeiro é que os que elegeram Bolsonaro buscavam a restauração da democracia e da ordem. Não há na biografia do capitão reformado tornado presidente colocações neste sentido. Em segundo, que a ordem, a lei e a democracia eram ameaçadas pelo governo de esquerda. Se o eram, como julgam os editorialistas do Estadão, por que a degradação produzida por Bolsonaro e sua gang de apoiadores nas redes sociais implica em uma degradação tão forte da democracia?
O Globo também publicou um editorial, mas com uma estratégia mais inteligente do que a do Estadão. Para o Globo, Jair Bolsonaro “Foi beneficiado em 2018 por uma conjunção feliz para ele, em que a debacle da esquerda, desestabilizada pelo desastre ético lulopetista e pela teimosia do ex-presidente Lula em continuar dono do PT, somada à falta de nomes para ocupar espaços no centro, permitiu a sua eleição, com a ajuda de muitos que usaram o voto para punir o PT. À medida que o ex-capitão foi revelando toda a face de extremista, e não apenas na política, boa parte destes eleitores se afastou. Bolsonaro tornou-se, então, um presidente de baixa popularidade, sustentado por milícias digitais e claques de porta de Palácio. E passou cada vez mais a dirigir-se a estes bolsões, o que o foi afastando da maior parcela da sociedade”.
Ou seja, ambas as narrativas tentam estabelecer o impossível, uma relação entre o governo de esquerda e o lulismo com uma degradação do espaço público patrocinada pelo Bolsonarismo. No caso do Estadão já havia essa degradação antes, só que o Brasil não sabia. No caso de O Globo, o problema foi a tentativa do eleitor de punir o PT e o lulismo, ação com a qual o próprio jornal ou o grupo não teria qualquer relação. Em ambos os casos vemos mais uma tentativa de operação tabajara, isto é, tenta-se criar uma linha de continuidade em um processo de clara ruptura: a tentativa de Moro e Bolsonaro de romper com o resto de pluralidade que restou no país e que o bolsonarismo está disposto a romper com agressões a jornalistas e mentir sobre os fatos envolvidos.
Ainda mais importante é a tentativa de negação pela grande mídia do óbvio: que a demarcação ética construída pela Lava Jato é falsa e foi ela que permitiu a construção do bolsonarismo como um campo não corrupto, apesar de todas as evidências de relações com milicianos e “rachadinhas” de gabinete.
Infelizmente, não existe meia sola na reconstituição de um campo público político no Brasil. Para a sua reconstituição é preciso reconhecer aquilo que a “Vaza Jato” mostrou: a tentativa de manipulação da operação judicial, assim como a tentativa de estabelecer um pseudocampo ético na política. Tentar se opor ao bolsonarismo e manter a estratégia de demarcação ética construída pela dupla Moro-Bolsonaro é uma estratégia inviável que não conseguirá deter a deterioração do espaço público no nosso país.
* Leonardo Avritzer é professor de Ciência Política na UFMG.
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