A gruta azul de Capri, 1835/Heinrich Jakob Fried |
Uma das hipóteses para a gênese do coronavírus é que ele tenha se originado no fundo de uma caverna na China. Ali, em dado instante, talvez propiciado pela presença devastadora do homem no seu ataque à natureza, o inimigo invisível que ameaça o planeta saltou do morcego para a humanidade.
É uma cena repetida ao longo da História, sempre com a criatura humana atraída pelo desconhecido. Foi assim com o HIV, originalmente presente em chimpanzés; com o sarampo, possível legado da era inicial da pecuária bovina; e com o ebola, novamente oriundo dos morcegos.
Nas mais de mil espécies de morcegos, o coronavírus sobrevive sem destruir seu hospedeiro, dotado de vigoroso sistema imunológico. Porém, ao deixar a caverna e trocar de anfitrião, diante de uma barreira imunológica bem mais frágil, causa estragos enormes e, eventualmente, fatais. É o que está acontecendo no Brasil em 2020, com consequências ainda em suspenso, mas com expectativas péssimas.
Em algum ponto do passado, também nos sentimos atraídos pela caverna. Certo dia, quisemos explorá-la. É fato que houve muitas advertências. Vozes nos avisaram de que algo nos aguardava nas trevas. Não acreditamos. Os donos da verdade instalados nos seus pedestais também nada nos informaram. Limitaram-se a observar, alguns poucos, que talvez a caverna não fosse tão acolhedora. Mas emendaram que permanecer na claridade, do lado de fora da cova, também seria algo arriscado demais. Então, entramos.
Mal demos o primeiro passo e um segundo vírus já navegava em nosso sangue. Ao contrário do corona, que prefere o aparelho respiratório, o intruso dentro de nós ataca nossa empatia, o dom da compaixão, de se enxergar no próximo. Exacerba sentimentos como o egoísmo, a cobiça, o ódio. Estimula e justifica a prática da fraude e da violência contra os mais fracos. Repele a ciência, louva a superstição e exalta a morte. Também agride de forma brutal a capacidade cognitiva do infectado, que nega a realidade, reagindo com fúria frente a tudo que ouse questionar suas convicções.
Em 2018, ano do grande surto, a maior parte da população sofreu esse contágio. Tornou-se adicta da mentira que consumiu, celebrou e disseminou. A ação virótica exasperou fantasias, sonhos de exaltação mitológica.
Dois anos depois, quando, aos trancos e barrancos, a nação enfrenta a covid-19, o vírus daquela outra caverna sofreu um choque de realidade. Baixou sua crista, achatou sua curva que se inclina para a parte baixa do gráfico. Mas continua ativo.
Nossa sina é combater e derrotar ambos. Se a localização da suposta caverna chinesa é imprecisa, sabemos perfeitamente onde se situa a outra. Reside em algum lugar dentro de nós, naquele porão sinistro e íntimo onde ocultávamos nosso horror particular e havíamos acorrentados nossos monstros, agora libertados.
Mas os dois vírus possuem o mesmo ponto fraco. Exposto ao sol, o coronavírus resiste algum tempo e morre. Aliado da escuridão, o outro vírus também sucumbe. Não suporta a claridade que permite melhor ver, distinguir e julgar as coisas. Primeiro teremos que vencer o corona. Depois, virá a vez do segundo vírus. Será uma tarefa longa, em que nos caberá produzir aquela manhã esperada, plena de sol. É ela que trará seu brilho intenso para fulminar e devolver o inimigo à caverna de onde nunca deveria ter saído.
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