quinta-feira, 9 de abril de 2020

Domínio militar, equilíbrio instável

Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:

Tempos estranhos.

Não apenas pelo coronavírus, esse Deus ex machina.

Mas, pelo modo como a política se move, como o poder se movimenta, e como há dificuldade de dar nome aos bois.

Luís Nassif, intrépido jornalista, teve a ousadia de manchetar no dia 29 de março, agora agorinha: “Xadrez do novo período, em que Bolsonaro não mais governa”.

Li com atenção o texto. Essencial a quem quiser entender os meandros da atual conjuntura, penetrar a sua complexidade, entender singularidades.

A grande mídia não trata do assunto. Ao menos, dessa maneira. Prefere vociferar, e o faz, depois de ter sido parte indissociável da eleição do atual presidente.

Na esteira da discussão proposta por Nassif, vou caminhar. Respeitando-a como ponto de partida. E discutindo-a.

Repor algumas obviedades. Bolsonaro contou com apoio militar na sua candidatura a presidente, desde o alvorecer.

Ninguém, da alta cúpula das Forças Armadas, particularmente do Exército, pode alegar inocência, nem creio pretenda fazê-lo. Há um texto esclarecedor de João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos, necessário a quem queira compreender antecedentes desse apoio e até desdobramentos durante parte do governo Bolsonaro, “Ordem desunida: Militares e Política no governo Bolsonaro”, publicado na revista Perseu.

As Forças Armadas nunca estiveram confortáveis durante a experiência do governo do PT e aliados. Enganou-se quem quis. Houve esforços tentando atraí-las. Inúteis, a rigor. Engoliram Lula e Dilma até quando puderam, e bastou sentissem novos ventos golpistas soprarem e embarcaram de mala e cuia, sem precisar sujar as mãos no primeiro momento, quando do golpe encabeçado por Michel Temer, onde apenas davam retaguarda, e sujando bem mais quando da eleição de Jair Bolsonaro.

“Oportunidade aguçada”

Sabiam de que personalidade se tratava, conheciam-na de perto, mas fazer o quê?

Ruim com ele, pior sem ele.

Vitória do PT, nem pensar. Qualquer coisa, menos o PT, menos a esquerda. Apoiaram-no de peito aberto. Afinal, como dizia o general Villas Bôas, patrono da candidatura, “ele procura se identificar com as questões que são caras às Forças, além de ter senso de oportunidade aguçada”.

Houve a intervenção mais grave de Villas Bôas, em 3 de abril de 2018, véspera da decisão do STF sobre se o ex-presidente Lula devia ou não começar a cumprir pena após a confirmação da sentença na segunda instância. Atuava claramente contra a candidatura de Lula à Presidência, favorito na disputa, como se sabia. E a favor de Bolsonaro, claro. Ameaçou o STF num Twitter. E a Corte respondeu amedrontada, praticamente mandando Lula à prisão. Por seis votos a cinco, mas mandou. O STF agiu sob manu militari. Como se disse, as Forças Armadas tinham um candidato. Que venceu.

E veio o governo. Não há linha reta na vida política. Não há branco e preto. O novo presidente apresentou armas. Ele e seus desatinos. Ele e seus filhos. Ele e sua ligação com os milicianos. Ele e Queiroz. Ele e sua imprevisibilidade. Nada de novo sob o sol. E os militares, muitos generais na administração. Em postos-chave. Houve confrontos entre ele e alguns generais, e havia a previsão de serem inevitáveis. Abafados, às vezes. Vindo à tona, em alguns momentos. Demissões, inclusive. Os generais se contorcendo, mas permanecendo.

Chegar à situação apontada por Nassif, a reclamar alguma matização, se chegou como ele diz, não foi um raio caído num dia de céu azul. É um acúmulo, e por isso sugeri a leitura do texto de Martins Filho. E creio foi facilitada pelo modo como Bolsonaro lidou como nosso Deus ex machina, o coronavírus. Quis falar apenas para seu radicalizado exército lúmpen-miliciano e o restante de classe média ainda resistente ao seu lado, pensou no começo estar retuitando Trump, e de repente nem com ele podia contar mais. Ficou com a brocha na mão.

Solidão precoce

A “gripezinha” chegou com força aos EUA, e tudo deveria ser feito para salvar vidas e o capitalismo. Não há que economizar, decretou Trump e o resto do mundo. Bolsonaro restou só. Nasce capim na porta do Palácio do Planalto. A agenda é uma página em branco. Ninguém o procura. Lembra livro de Gabriel García Marquez – Ninguém Escreve ao Coronel. A solidão o leva às lágrimas, diz a imprensa. Solidão precoce. Quase apeado do poder. É operação em andamento, complexa. Curiosamente, cheia de sutilezas. Inconclusa, necessário dizer. Há os generais, há o Legislativo, há o Supremo Tribunal Federal (STF). Todos com algum grau de participação na manobra.

O sinal vermelho acendeu, insista-se, com a pandemia. Uma pandemia basta. E ele, o presidente, era outra. Tentaram, isso ninguém pode negar, esse tempo todo, a direita e o centro, Legislativo por sua maioria, STF, tentaram todos manter uma relação com ele, a preservar o núcleo básico das propostas neoliberais, destinado a fazer sangrar mais e mais as classes trabalhadoras brasileiras.

As chamadas instituições, todas envolvidas dos pés à cabeça com o golpe de 2016 e depois, de uma forma ou de outra, com a própria eleição dele, tinham posição clara: estavam com Paulo Guedes, com todas as reformas antissociais, com todo o desmonte das políticas públicas favoráveis aos trabalhadores, de Getúlio a Lula e a Dilma.

Um basta?

Quando viram Bolsonaro na contramão de todo o mundo, falando apenas para os milicianos e o contingente de apoio ainda restante a resistir, a apoiar seus desatinos, os generais resolveram dar um basta. E a partir daí, o general Braga Neto, ironicamente chefe da Casa Civil, passa a dar as ordens.

Surge uma nova figura no panorama político – o presidente operacional. A mídia fala nisso como se nada tivesse acontecendo. E está. Braga Neto governa lado a lado com outros militares, presentes no governo ou à sombra, como convém nesses tempos estranhos. Bolsonaro pode continuar falando, mas Braga Neto seguirá ditando o rumo do governo, dizendo o que fazer.

Houve a consciência provavelmente de enfrentar a pandemia a sério. Tarefa nada simples diante do enorme esforço de Michel Temer, de Bolsonaro, e da conivência das demais instituições em acabar com o SUS. E também tentar mudar a Presidência. Até certo ponto. Algo deve mudar para deixar tudo como está, a velha fórmula do Príncipe de Lampedusa. A ser verdadeira a hipótese de Nassif, Bolsonaro de alguma maneira posto de lado, há a óbvia pretensão no pós-pandemia, de manter intacta a política neoliberal de Paulo Guedes, além de não tocar em Sérgio Moro, sustentáculo judicial de toda essa fase obscurantista da vida política brasileira, pretensão inocente porque ao que tudo indica nada será como antes. A própria direita e o centro pedem mais Estado. Como vão afastá-lo depois?

Não houve ainda noite de facas longas. Hitler precisou das facas para eliminar adversários do seu entorno.

Aqui, o jogo até agora vem sendo outro.

Bolsonaro fica em seu lugar. O presidente operacional toca o governo. Ele pode até falar, mas não governa. Esse é o retrato atual desenhado por Nassif. E não parece irreal, até certo ponto. Os militares adaptam-se aos novos tempos. Os tanques, nos quartéis. Esse desfecho, nem sei já seja possível denominá-lo desfecho, era anunciado desde o início, quando um cinturão militar cercou o presidente eleito. Os militares não dormiram de touca. Estavam prontos. Sabiam com quem lidavam. Apoiaram-no à falta de alternativa. Tudo, menos o PT.

Militares e o fim da ideia de soberania

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os militares brasileiros persistiram numa ideologia pró-americana. Guarda pretoriana de todos os modelos econômicos e políticos favoráveis à exclusão das maiorias, como diria Márcio Pochmann, no artigo “Tutela militar e padrão de gestão do ‘apartheid social’ no Brasil: notas especulativas”, também integrante do Dossiê Os Militares e a Política da revista Perseu. Autores de um golpe e de uma ditadura sangrenta, em 1964. Por 21 anos, massacraram o povo brasileiro.

Deram aval ao golpe de 2016 e participaram decisivamente da campanha de Bolsonaro, sabendo-o um sujeito de escassas credenciais para exercer a Presidência. Tornaram-se, às vezes, nas sombras, às vezes mais abertamente, interlocutores políticos. Houve momentos na atuação dos militares em nossa história, a combinar simultaneamente terror e algum cuidado com a soberania, limitada fosse, como no período ditatorial. Hoje, qualquer resquício de soberania acabou nas Forças Armadas. Aceitam a política de inteira submissão aos EUA. Aí comungam inteiramente com o presidente.

Os generais podiam ousar, e haveria espaço, e tirar Bolsonaro definitivamente. Até agora, preferiram não arriscar. Um impeachment tem consequências imprevisíveis. Preferem levá-lo até o fim, sob controle, e quem sabe, nessa condição, tê-lo, parece loucura mas não é, como candidato novamente porque curiosamente pode ser ainda uma alternativa. Contra o PT, contra a esquerda, vale tudo. Até Bolsonaro novamente. E quanto a isso, quanto ao antipetismo e anti-esquerda, não há dissonância nas hostes militares – juro, torço para estar errado. Tenho provas juntadas ao longo de nossa história. Outras provas podem me convencer do contrário.

Operação inconclusa

Acentuo: é uma operação em andamento. Inconclusa. Sujeita a ventos e trovoadas. Controlar Bolsonaro não é tarefa fácil. Não sei se digo impossível. Talvez. Villas Bôas, não obstante gravemente doente, tem tentado equilibrar as duas partes. Fazer a omelete sem quebrar ovos. Bolsonaro e seus filhos, na leitura de Nassif, podem apelar ao seu exército lúmpen, aos milicianos, aos poucos caminhoneiros fiéis, à sargentada amiga, para a batalha final. Não creio. O mais provável é a permanência de um equilíbrio instável entre o líder operacional, Braga Neto, e seus generais alinhados, com a trupe do presidente, cujo temperamento explosivo não deixará de se manifestar nunca. Muita água ainda vai rolar debaixo da ponte.

Sei, podem me alertar: um presidente operacional, não obstante general, pode ser até bom. Quem sabe, o generalato bote alguma ordem no governo, alguma racionalidade diante dessa pandemia, eliminada a outra, a bolsonarista, ou senão eliminada, feita alguma redução de danos. Quem sabe os governadores, cujas atitudes têm sido mais sensatas, tenham assento a uma mesa nacional para o enfrentamento do coronavírus. Quem sabe o Nordeste seja ouvido. Tudo isso pode acontecer. E se acontecer, será bom.

Mas, não podemos fechar os olhos aos acontecimentos políticos ao nosso redor. Terminada a pandemia, a vida segue, e a Espada de Dâmocles militar pesa sobre nossas cabeças. Os militares deviam cuidar de defender a nação, respeitar a Constituição, não tutelar o país, como pretendem passar a fazê-lo, agora abertamente. Nem a pandemia justifica o silêncio diante disso. As forças populares e democráticas não aceitam nem Bolsonaro, nem a tutela dos generais sobre a Nação. Não se descuidam diante da pandemia, não podem se descuidar.

As Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo apresentaram uma consistente “Plataforma Emergencial para o Enfrentamento da Pandemia do Coronavírus e da Crise Brasileira”. É ela a nossa prioridade. A democracia é nossa pedra angular. Em meio a essa pandemia é necessário denunciar a escalada indevida dos militares na cena política, e nesse caso, agora, se consolidada, praticamente ocupando a direção principal dos destinos do país. Seria um golpe de novo tipo, destinado a botar ordem na casa. Nós já conhecemos isso. Sabemos de que ordem falam os generais. Nisso, não variam. Não queremos a repetição. Democracia, Estado de Direito, recuperação de nossas conquistas sociais e políticas. No mesmo ritmo do enfrentamento da pandemia. Essa, penso, deve ser a posição da esquerda e das forças verdadeiramente democráticas.

Referências

NASSIF, Luis. Xadrez do novo período, em que Bolsonaro não mais governa. Jornal GGN, 29 de março de 2020.

MARTINS Filho, João Roberto. “Ordem Desunida: militares e política no governo Bolsonaro”. Revista Perseu, nº 18. Fundação Perseu Abramo, outubro de 2019, p. 168. Disponível: http://revistaperseu.fpabramo.org.br/index.php/revista-perseu/article/view/320/262

Pochmann, Márcio. “Tutela Militar e padrão de gestão do ‘apartheid social’ no Brasil: notas especulativas” Revista Perseu, nº 18. Fundação Perseu Abramo, outubro de 2019, p. 195. Disponível: http://revistaperseu.fpabramo.org.br/index.php/revista-perseu/article/view/321/263

* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.

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