quinta-feira, 28 de maio de 2020

A insuportável leveza da liberdade

Por Flávio Aguiar, no site Carta Maior:

O mais espantoso mistério da reunião ministerial de 22 de abril no Planalto não é a reunião em si.

Afinal, o que esperar daquele bando de depravados, que não fosse depravação?

A reunião em si, os palavrões, a desfaçatez, a sem-vergonhice, a falta de pudor, o oportunismo, a falta de vergonha na cara, a estupidez de todas as propostas na mesa, o descaso e o desprezo para com as aflições do povo e do país, nada disto surpreende ou choca. O que surpreende e choca, o mistério dos mistérios, o espanto dos espantos, é o fato dela ter sido gravada.

O fato dela ter sido imortalizada, preservada para a posteridade.

Qual o objetivo original da gravação? De quem partiu a ideia? Era um hábito protocolar? Foi uma exceção? Pergunta paralela: há uma ata? Talvez a diferença entre a gravação e a ata elucidasse o propósito de ambas, se diferença houver.

Se o juiz Celso de Mello não a requisitasse, qual seria o destino da gravação? Quem ficaria com ela? Que uso faria? Pelo teor das falas, dá para pensar até em chantagem.

Uma coisa é certa: embora descendo aos infernos do calão, da baixaria ou falta de moral, os personagens desta farsa ao mesmo tempo cômica e sinistra se comportaram – todos, inclusive os que ficaram calados – como se fossem deuses do Olimpo, acima do bem, do mal e das leis, sejam as do país ou as das boas maneiras, vendo-se como entidades onipotentes, impunes e inimputáveis diante de quem quer que seja da língua portuguesa até mesmo ao Deus que tanto dizem cultuar, mas pelo qual não manifestam, no fundo, o menor respeito, por tanto abusarem de seu nome em vão.

Procurei pensar em algumas reuniões análogas, na história real e também na ficção. A primeira que me veio à mente, e que já comentei em outro artigo, foi a missa fúnebre do Conselho de Segurança Nacional, realizada em 13 de dezembro de 1968, quando o governo chefiado por Costa e Silva decidiu baixar o Ato Institucional no. 5 em cima do Brasil e da cabeça do povo brasileiro.

Há diferenças profundas entre ambas, porque naquela de 1968 respeitaram-se todos os riquififes e os trololós do decoro e do protocolo: foi um tal de Vossa Excelência pra lá e Senhor Ministro pra cá; mas o traço de união entre ambas as reuniões está na sensação de impunidade e na famosa frase do então ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, dizendo que em certos momentos os escrúpulos devem ser postos de lado. Assim mesmo há uma distância: os personagens do 13 de dezembro, ainda que na verdade não tivessem, achavam que tinham ou pelo menos queriam aparentar ter escrúpulos.

O único voto contrário à promulgação do Ato foi o do vice-presidente Pedro Aleixo. Mas mesmo ele se considerava um “homem da Revolução”; caso contrário não estaria ali onde estava. Já na reunião de 22 de abril não houve o que perder nem aparentar: escrúpulos por ali não havia, nem mesmo por parte de quem quis aparentá-lo através do silêncio obsequioso. E era escancarado que não havia escrúpulos, nem por parte do ministro da Fazenda que citava economistas de Hitler nem por parte do juiz que até então fora cúmplice de tudo. Continuaria sendo, se o “seu” delegado na PF não fosse defenestrado? Oh, dúvida cruel…

Ainda na esteira de 1968, me surgiu o nome de um livro, lançado naquele ano: O carnaval dos animais, do meu saudoso amigo Moacyr Scliar. Mas não: nem carnaval, nem animais mereceriam batizar aquela reunião, protagonizada por um bando de gentalha tão desumanamente humana. Ademais, o Moacyr, onde esteja, ficaria escandalizado por ver o nome de um livro seu usado para caracterizar o desvario de um bando de desalmados.

Outra reunião me veio à mente: 20 de janeiro de 1942, numa mansão em Wansee, na periferia de Berlim, reuniram-se quinze altos mandatários do Terceiro Reich, sob a presidência do General Reinhard Heydrich (que seria morto pela resistência tcheca em junho do mesmo ano). Secretário da reunião: o Tenente-Coronel Adolf Eichmann. Entre os presentes, o juiz Roland Freisler, certamente um dos inspiradores, mesmo que insuspeito, dos métodos e procedimentos da Lava Jato. As diferenças das situações eram e são evidentes. Mas as une o mesmo sentimento de impunidade, de senhores de baraço e cutelo da vida alheia.

Uma observação: com o andar da carruagem e da guerra, os presentes à reunião de 1942 tentaram destruir as 30 cópias de sua ata, cuidadosamente feita com termos “abrandados” por Eichmann; conseguiram destruir 29.

Mas sobrou uma, que foi encontrada e serviu como prova, em Nuremberg, da determinação e planejamento do Holocausto. Já na reunião de 22 de abril, pelo menos num primeiro momento, não houve preocupação de destruir nada.

Pelo contrário, havia a satisfação do exibicionismo, coisa de uma infantilidade malcriada que se compraz em registrar e exibir o malfeito, o “cocô petrificado” na sala, para citar expressão castiça de um dos presentes.

Daí parti para a ficção.

No poema Paradise Lost [Paraíso Perdido], de John Milton, no segundo canto, os anjos rebeldes, derrotados em sua revolta, são precipitados no Inferno. Lúcifer os reúne numa assembleia, para deliberar o que fazer. Manifestam-se os chefes, como Belzebu, Belial, Mammon. Uns querem retomar a luta, outros preferem ficar onde estão para evitar destino pior. Afinal fala o próprio Satã, Lúcifer, o luzente anjo decaído, que faz uma afirmação ao mesmo tempo gozosa, dolorosa e gloriosa, para ficar no palavreado litúrgico: “é melhor reinar no Inferno do que ser escravo no Céu”. Hegel e sua dialética do senhor e do escravo agradeceriam.

Mas a comparação também não servia muito bem.

Satã termina dizendo ter ouvido notícia de que o Senhor criou um novo ser, à sua imagem e semelhança: um ser humano, dotado de liberdade. “Quem sabe”, argumenta Satã, “ele poderia tornar-se nosso aliado?”

Ou seja: Satã, como um verdadeiro estadista, parte para fazer política, coisa completamente estranha à reunião de 22 de abril.

Nesta, reinava a antipolítica; ao invés da lei da polis, reinava a treva do desmando arbitrário e desconforme. Não havia Satã presente, apenas uns quantos diabos sem categoria, enfatuados por sua vaidade, presididos por um aleijão espiritual e covarde, que se compraz em agredir os mais fracos e oprimidos, e adora servir de capacho para o poderoso mostrengo do hemisfério norte, assentado à margem do Potomac, também como se Satã fosse, quando não passa de um mero Tartufo de segunda mão.

Afinal, lembrei-me de algo que cabia como termo de comparação. Refiro-me a uma passagem do filme de Luis Buñuel, O fantasma da liberdade, de 1974. Nesta passagem do filme surreal, alguns convidados reúnem-se na casa anfitriã para algo que parece ser um jantar. Parece. Porque ao sentarem-se à mesa, o fazem sobre privadas, onde defecam em público.

Uma criança diz: “estou com fome”. E é repreendida: “não se diz isto à mesa”. A certa altura um dos convidados se levanta e pergunta à criada onde fica a sala de jantar. Ela lhe indica o lugar e ele vai, sentando-se sozinho no que deveria ser um lavabo/toalete para… comer! Com um bom vinho ao lado. Obsceno, não? Outra convidada bate à porta, e ele responde como convém: “está ocupado”.

Pois bem, esta é a comparação perfeita para a reunião do dia 22 de abril: defeca-se em público, registra-se o ato para a História.

Porque o que se teme é exatamente a liberdade alheia: no fundo daqueles corações de almas penadas, de mortos que não sabem que morreram, bate um temor espantoso do livre pensar alheio.

* Flávio Aguiar é escritor, professor aposentado de literatura brasileira na USP e autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

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