Por Madalena Guasco Peixoto
A pandemia de Covid-19 que já afetou mais de 4 milhões de pessoas ao redor do mundo e fez quase 300 mil vítimas fatais, escancarou, no Brasil, a imensa desigualdade social que aflige o país. Como se não bastasse o enfrentamento de uma crise sanitária sem precedentes - luta que, é preciso destacar, está sendo feita a despeito da omissão do governo federal -, essa batalha vem acompanhada de obstáculos que incluem a falta de saneamento básico à qual está submetida parte da população, a precariedade de moradia e de alimentação, o desmonte do Sistema Único de Saúde e a carência de investimentos em saúde pública, os ataques - cruelmente acirrados neste momento - aos direitos trabalhistas.
Essa desigualdade social implica, obviamente, também uma desigualdade no acesso à educação. A excepcionalidade trazida pela crise evidencia as dificuldades enfrentadas pela escola pública e vem reforçar a necessidade e a importância da nossa luta em defesa do cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) - incluindo o que toca à meta de investimentos de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro na educação pública, gratuita, democrática e de qualidade socialmente referenciada - e pela urgente revogação da Emenda Constitucional (EC) 95, que, ao estabelecer um teto de gastos públicos, inviabilizou a execução do PNE, bem como de quaisquer políticas públicas nas áreas de educação, saúde e assistência social, justamente nas quais são expostas nossas maiores fragilidades nesses tempos de coronavírus.
Em outras palavras, não só existe uma pobreza imensa no Brasil, como ela está diretamente ligada, numa relação simbiótica e recíproca, à realidade educacional. Isso tem a ver com o sucateamento da escola pública - um sucateamento que faz parte de um projeto político-econômico de privatização da educação pública e de transformação do ensino em mercadoria -, mas também com o fato de que a educação tem ligação direta com o nível de inclusão social. Os direitos sociais são articulados e interdependentes. Significa dizer que a destinação e ampliação de verbas para a educação pública, gratuita e de qualidade, que é uma bandeira nossa, não prescinde - ao contrário, depende - da garantia de melhores condições de vida, moradia, alimentação, saúde, trabalho etc. para toda a sociedade.
Neste tempo de pandemia, temos nos defrontado com realidades muito diferenciadas, especificidades que se distinguem na rede pública e no setor privado, mas também, muitas vezes, dentro de uma mesma rede, mostrando diferenças gritantes entre as escolas e as respectivas comunidades que atendem e/ou na qual se inserem. As dificuldades da rede pública são óbvias e têm passado, entre outras questões, pela impossibilidade de realizar atividades pedagógicas remotas, para citar uma das ferramentas que têm sido usadas como alternativa à recomendação de distanciamento social e fechamento das escolas. Há estudantes cuja principal refeição do dia é aquela oferecida como merenda e, se essa é uma realidade, isso torna um eventual acesso à internet em casa para assistir uma aula online uma opção ainda mais virtual e remota que qualquer exercício pedagógico que se pudesse pensar em ministrar. Em São Paulo, por exemplo, estado mais populoso do país, relatos mostram que, de turmas com 30 estudantes, apenas quatro têm conseguido participar dos encontros e atividades online. E há que se denunciar o abandono, por parte das secretarias de Educação do estado e dos municípios, dos alunos que não conseguem acompanhar, seja para garantir-lhes acesso ou, no mínimo, diagnosticar os impedimentos de cada um.
As dificuldades, porém, não se restringem à escola pública. O setor privado também é desigual: no tamanho das escolas, no tipo de instituição, no custo das mensalidades, no preparo - ou não - para essa situação emergencial, nas garantias - ou, por outro lado, ameaças - aos professores e auxiliares de administração escolar, na classe social dos estudantes matriculados etc. Não se pode ceder ao equívoco de classificar a escola privada como sendo unicamente uma escola de elite. Sim, essas existem, mas, em grande parte das instituições particulares, os estudantes também são filhos - ou os próprios representantes, em se tratando do ensino superior - da classe trabalhadora. E entre esses trabalhadores e trabalhadoras da classe média brasileira também existem pessoas com pouco acesso à internet, assim como existem professores nesses estabelecimentos com poucas condições de se dedicar ao trabalho remoto, ainda mais sem um preparo prévio para tanto. Cabe frisar que os docentes desses escolas estão sob uma enorme pressão, seja por parte do patronal, seja por parte de pais e responsáveis. Em muitos casos, ainda têm que enfrentar riscos de demissão ou redução salarial, com os patrões se valendo das brechas abertas pela Medida Provisória (MP) 936, mesmo que sua carga de trabalho tenha aumentado no esforço de dar conta das exigências das plataformas digitais e atividades remotas.
O Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) encaminhou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) uma manifestação assinada por diversas entidades representantes da educação pública exigindo o cumprimento presencial dos dias letivos, em razão das enormes desigualdades. Justamente, contudo, porque o Brasil apresenta realidades educacionais muito diferenciadas, a Contee defendeu, junto CNE, que se, durante esse período, os professores estiverem desempenhando suas atividades docentes, de forma remota, conforme seus contratos e com o planejamento pedagógico, esse trabalho remoto deve contar na soma de dias letivos e de carga horária de efetiva atividade escolar, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Essa defesa, é claro, leva em consideração que, caso haja necessidade de complementação de horas presenciais após o fim do isolamento social, as escolas e sistemas de ensino devem negociar a reposição juntamente com os professores e as entidades que os representam, a fim de que se completem as 800 horas de efetivo trabalho escolar na educação básica estabelecido pela LDB. Mas é igualmente claro, também na percepção da Contee, que se deve levar em conta a desigualdade social e regional do Brasil e compreender que nem todas as escolas, respeitando as realidades de seus professores e estudantes, têm condições de desenvolver trabalhos remotos durante esse período. Nesse sentido, é dever das secretarias estaduais e municipais enfrentar as enormes desigualdades e assegurar o direito constitucional de acesso a educação.
Por fim, é fundamental salientar que o trabalho remoto se caracteriza como um instrumento pedagógico para este momento de excepcionalidade, mas não se configura como educação a distância. A Contee reitera sua posição contrária a qualquer tentativa de implementação da modalidade EaD na educação básica e reafirma sua luta história pela regulamentação da modalidade - hoje totalmente desregulamentada - no ensino superior.
* Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP.
A pandemia de Covid-19 que já afetou mais de 4 milhões de pessoas ao redor do mundo e fez quase 300 mil vítimas fatais, escancarou, no Brasil, a imensa desigualdade social que aflige o país. Como se não bastasse o enfrentamento de uma crise sanitária sem precedentes - luta que, é preciso destacar, está sendo feita a despeito da omissão do governo federal -, essa batalha vem acompanhada de obstáculos que incluem a falta de saneamento básico à qual está submetida parte da população, a precariedade de moradia e de alimentação, o desmonte do Sistema Único de Saúde e a carência de investimentos em saúde pública, os ataques - cruelmente acirrados neste momento - aos direitos trabalhistas.
Essa desigualdade social implica, obviamente, também uma desigualdade no acesso à educação. A excepcionalidade trazida pela crise evidencia as dificuldades enfrentadas pela escola pública e vem reforçar a necessidade e a importância da nossa luta em defesa do cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) - incluindo o que toca à meta de investimentos de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro na educação pública, gratuita, democrática e de qualidade socialmente referenciada - e pela urgente revogação da Emenda Constitucional (EC) 95, que, ao estabelecer um teto de gastos públicos, inviabilizou a execução do PNE, bem como de quaisquer políticas públicas nas áreas de educação, saúde e assistência social, justamente nas quais são expostas nossas maiores fragilidades nesses tempos de coronavírus.
Em outras palavras, não só existe uma pobreza imensa no Brasil, como ela está diretamente ligada, numa relação simbiótica e recíproca, à realidade educacional. Isso tem a ver com o sucateamento da escola pública - um sucateamento que faz parte de um projeto político-econômico de privatização da educação pública e de transformação do ensino em mercadoria -, mas também com o fato de que a educação tem ligação direta com o nível de inclusão social. Os direitos sociais são articulados e interdependentes. Significa dizer que a destinação e ampliação de verbas para a educação pública, gratuita e de qualidade, que é uma bandeira nossa, não prescinde - ao contrário, depende - da garantia de melhores condições de vida, moradia, alimentação, saúde, trabalho etc. para toda a sociedade.
Neste tempo de pandemia, temos nos defrontado com realidades muito diferenciadas, especificidades que se distinguem na rede pública e no setor privado, mas também, muitas vezes, dentro de uma mesma rede, mostrando diferenças gritantes entre as escolas e as respectivas comunidades que atendem e/ou na qual se inserem. As dificuldades da rede pública são óbvias e têm passado, entre outras questões, pela impossibilidade de realizar atividades pedagógicas remotas, para citar uma das ferramentas que têm sido usadas como alternativa à recomendação de distanciamento social e fechamento das escolas. Há estudantes cuja principal refeição do dia é aquela oferecida como merenda e, se essa é uma realidade, isso torna um eventual acesso à internet em casa para assistir uma aula online uma opção ainda mais virtual e remota que qualquer exercício pedagógico que se pudesse pensar em ministrar. Em São Paulo, por exemplo, estado mais populoso do país, relatos mostram que, de turmas com 30 estudantes, apenas quatro têm conseguido participar dos encontros e atividades online. E há que se denunciar o abandono, por parte das secretarias de Educação do estado e dos municípios, dos alunos que não conseguem acompanhar, seja para garantir-lhes acesso ou, no mínimo, diagnosticar os impedimentos de cada um.
As dificuldades, porém, não se restringem à escola pública. O setor privado também é desigual: no tamanho das escolas, no tipo de instituição, no custo das mensalidades, no preparo - ou não - para essa situação emergencial, nas garantias - ou, por outro lado, ameaças - aos professores e auxiliares de administração escolar, na classe social dos estudantes matriculados etc. Não se pode ceder ao equívoco de classificar a escola privada como sendo unicamente uma escola de elite. Sim, essas existem, mas, em grande parte das instituições particulares, os estudantes também são filhos - ou os próprios representantes, em se tratando do ensino superior - da classe trabalhadora. E entre esses trabalhadores e trabalhadoras da classe média brasileira também existem pessoas com pouco acesso à internet, assim como existem professores nesses estabelecimentos com poucas condições de se dedicar ao trabalho remoto, ainda mais sem um preparo prévio para tanto. Cabe frisar que os docentes desses escolas estão sob uma enorme pressão, seja por parte do patronal, seja por parte de pais e responsáveis. Em muitos casos, ainda têm que enfrentar riscos de demissão ou redução salarial, com os patrões se valendo das brechas abertas pela Medida Provisória (MP) 936, mesmo que sua carga de trabalho tenha aumentado no esforço de dar conta das exigências das plataformas digitais e atividades remotas.
O Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) encaminhou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) uma manifestação assinada por diversas entidades representantes da educação pública exigindo o cumprimento presencial dos dias letivos, em razão das enormes desigualdades. Justamente, contudo, porque o Brasil apresenta realidades educacionais muito diferenciadas, a Contee defendeu, junto CNE, que se, durante esse período, os professores estiverem desempenhando suas atividades docentes, de forma remota, conforme seus contratos e com o planejamento pedagógico, esse trabalho remoto deve contar na soma de dias letivos e de carga horária de efetiva atividade escolar, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Essa defesa, é claro, leva em consideração que, caso haja necessidade de complementação de horas presenciais após o fim do isolamento social, as escolas e sistemas de ensino devem negociar a reposição juntamente com os professores e as entidades que os representam, a fim de que se completem as 800 horas de efetivo trabalho escolar na educação básica estabelecido pela LDB. Mas é igualmente claro, também na percepção da Contee, que se deve levar em conta a desigualdade social e regional do Brasil e compreender que nem todas as escolas, respeitando as realidades de seus professores e estudantes, têm condições de desenvolver trabalhos remotos durante esse período. Nesse sentido, é dever das secretarias estaduais e municipais enfrentar as enormes desigualdades e assegurar o direito constitucional de acesso a educação.
Por fim, é fundamental salientar que o trabalho remoto se caracteriza como um instrumento pedagógico para este momento de excepcionalidade, mas não se configura como educação a distância. A Contee reitera sua posição contrária a qualquer tentativa de implementação da modalidade EaD na educação básica e reafirma sua luta história pela regulamentação da modalidade - hoje totalmente desregulamentada - no ensino superior.
* Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP.
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