segunda-feira, 18 de maio de 2020

Mourão e sua ‘Verba volant, scripta manent’

Por Gustavo Conde

O vice-presidente da República se ‘moveu’ no artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo neste dia 14 de maio de 2020. É sua carta cheia de sutilezas para dizer: ‘estou aqui, pronto para assumir a presidência’.

Não é de hoje que o comportamento político do general da reserva vem se aproximando muito dos gestos de Michel Temer nos seis meses que precederam o impeachment sem crime – episódio conhecido tecnicamente como ‘golpe’.

Ele fala em ‘lealdade’ o tempo todo (Temer também falou), tem agenda própria (Temer também tinha), evita aparecer ao lado do presidente (Temer também evitou), sinaliza para o mercado e para o Congresso (Temer também sinalizou) e, acima de tudo, leva a arte da dissimulação a um novo patamar (Temer também levou).

É até leve e divertido explicar o ‘fenômeno Mourão’, tecnicamente falando. Para facilitar, antecipo alguns pontos das teorias contemporâneas da interpretação de texto.

Não se interpreta um texto de posse de uma gramática e de um dicionário, como faz a maioria dos analistas políticos. Interpreta-se um texto, levando-se em conta a história, o enunciador, o contexto de sua produção e o próprio texto, afinal, em sua amarração semântica.

Isso permite recuperar vários sentidos submersos, não previstos e sintomáticos, para além da superfície protocolar.

O título da ‘carta’ de Mourão já orienta o seu sentido: ‘limites e responsabilidades’. É absolutamente impossível não associá-lo como recado direto a Bolsonaro, que viola diária e insistentemente “limites e responsabilidades”.

E por que é impossível? Porque o que subsidia a interpretação de um texto é seu contexto de emergência, o diálogo que ele trava com a cenografia política em curso – ainda mais em se tratando de um texto político.

Mourão foi imprudente? Distraído? Bobo?

Eu diria que ele está mais próximo da provocação e do desejo consciente de passar mensagens subliminares.

Para confirmar essa leitura, no entanto, é preciso avançar na materialidade do texto.

O primeiro parágrafo é didático:

“A esta altura está claro que a pandemia de covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas consequências pode vir a ser de segurança. A crise que ela causou nunca foi, nem poderia ser, questão afeta exclusivamente a um ministério, a um Poder, a um nível de administração ou a uma classe profissional. É política na medida em que afeta toda a sociedade e esta, enquanto politicamente organizada, só pode enfrentá-la pela ação do Estado.”

Mourão faz seu prelúdio conceitual: marca distância do governo (enuncia como cidadão observador) e estabelece, através do pressuposto, uma zona de conflagração gerencial – conscientemente ou não: quando diz que a crise é ampla e requer a articulação entre vários níveis do poder público e da sociedade, Mourão dá a entender que essa articulação não está sendo feita.

O segundo parágrafo, por sua vez é emblemático (o famoso ‘pé na porta’):

“Para esse mal nenhum país do mundo tem solução imediata, cada qual procura enfrentá-lo de acordo com a sua realidade. Mas nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um estrago institucional que já vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da insensatez, está levando o País ao caos e pode ser resumido em quatro pontos.”

Trata-se de uma metralhadora giratória contra a inépcia gerencial do país: 1) o Brasil causa mal a si mesmo, 2) há um estrago institucional e 3) País atingiu as raias da insensatez.

Se ninguém dissesse que o texto assinado pelo vice-presidente da República, passaria por uma crítica frontal a Bolsonaro e sua incapacidade de governar.

Restaria, ademais, definir que são os sujeitos gramaticais de tanto mal doméstico produzido ao país. Mourão é vago (o Brasil causa mal ao Brasil – estaria ele parafraseando Aldir Blanc?), apocalíptico (estrago institucional) e pretensamente eloquente (as raias da insensatez).

Esse vocabulário, essa dicção, esse ritmo, essa indignação não cabem em um integrante do governo Bolsonaro. São vocalizações da esquerda, do espírito crítico, da oposição ao governo. Querer forçar esse tom sendo governo implica em duas possibilidades: imperícia redacional ou descolamento intencional.

Nota técnica: a interpretação de texto não brota como um fungo da terra podre. Ela depende de uma pletora de variáveis. Depende, sobretudo, de uma conexão discursiva (semântica) com a massa de textos que está sendo produzida no momento presente e que afiança os sentidos ali propostos (ou negados). Esse é o grau zero da interpretação qualificada de texto, baseada nas teorias contemporâneas do discurso, da pragmática, da sintaxe e da psicanálise.

Nesse sentido, o autor (a função autor) é rarefeito e precisa das intersecções de seus enunciados com a cenografia em curso para poder figurar na moenda da produção real de sentido. Em outras palavras: melhor seria para Mourão que ninguém interpretasse seu artigo e que ele caísse no vazio como, aliás, a grande maioria dos enunciados políticos no Brasil dos últimos 4 anos.

Foucault dizia que o enunciado é raro. Eu acrescento: raro e difícil. Não é trivial enunciar na terra simbólica arrasada do debate público brasileiro.

Aprofundemos Mourão:

“O primeiro é a polarização que tomou conta de nossa sociedade, outra praga destes dias que tem muitos lados, pois se radicaliza por tudo, a começar pela opinião, que no Brasil corre o risco de ser judicializada, sempre pelo mesmo viés.”

O general começa a nomear os sujeitos que produzem o mal. Menciona ‘polarização’, clichê mofado de velho e que se aplica, mais uma vez, muito mais ao mandatário do executivo do que a qualquer outra dimensão da crise. O trecho é truncado e confuso (faltou revisão e ficou parecendo um tuíte do Carluxo). Sigamos na toada mourista:

“Tornamo-nos assim incapazes do essencial para enfrentar qualquer problema: sentar à mesa, conversar e debater.”

Sentar à mesa? Descontada a metáfora infeliz (sentar à mesa numa pandemia?), mais uma vez, Mourão critica Bolsonaro sem querer querendo. Quem não senta à mesa no Brasil de 2020? Quem se impõe de maneira autoritária dia sim, o outro também? Quem diz ser a própria Constituição? Quem apóia protesto contra o Congresso? Quem apóia protesto contra o STF?

Repito: não dá para digladiar com os sentidos sociais majoritários de seu tempo. Por isso, enunciar é ‘difícil’. Por isso, o sentido sempre ‘escapa’ de seu enunciador, recobrindo considerações e representações que estão muito além da capacidade de automonitoramento dos enunciadores.

Mourão segue nomeando – ou tentando nomear – os males do país:

“A imprensa, a grande instituição da opinião, precisa rever seus procedimentos nesta calamidade que vivemos.”

Este trecho pareceu redigido pelo Luciano Huck (pela péssima qualidade gramatical). Vou pular.

“Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação. Sem isso teremos descrédito e reação, deteriorando-se o ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia.”

Muito mal escrito (onde essa gente estudou?) – característica típica de textos de opinião publicados no Estadão, cujo público leitor é o segmento mais prepotente e subletrado do país.

Mas é possível comentar um ou dois pontos

Primeiro, a imperícia argumentativa de Mourão. Critica a imprensa por não dar voz ao contraditório mas seu texto está publicado nesta mesma imprensa. Ou é dissimulação ou é erro. Mas a terceira hipótese é melhor: é um ato falho.

Mourão se junta aos que criticam Bolsonaro (usa o mesmo tom, a mesma voz, o mesmo léxico, as mesmas direções e o mesmo suporte), demarcando a diferença e se autoidentificando como a famigerada opção democrática prevista na Constituição.

Haveria uma quarta possibilidade que seria a hipocrisia. Mas esta é descartada de imediato

Se Mourão quer ser hipócrita, ele tem que se esforçar mais.

Sigamos a tortuosa tristeza que é ler o texto de alguém que desconhece a arte da escrita:

“O segundo ponto é a degradação do conhecimento político por quem deveria usá-lo de maneira responsável”

‘Degradação’. Mais uma palavra que pertence ao discurso anti-Bolsonaro.

Antes que alguém se pergunte, sim, as palavras têm ‘donos’. Esse é o funcionamento básico do mundo do discurso postulado pelos estudos da linguagem desde os anos 60, quando os franceses criaram uma derivação teórico-metodológica da linguística, a ‘análise do discurso francesa’.

Pense em Mourão enunciando ‘desigualdade social’. Soará estranho. Pense em Bolsonaro usando a palavra ‘trabalhador’. Parecerá demência.

Há possibilidades de se relativizar este protocolo dos usos lexicais, mas ‘o discurso precede a forma’, como demonstram, em grande medida, os estudos recentes no campo da linguística. As palavras ‘importadas’ aqui e acolá requerem aspas, negrito, itálico ou algum tipo de ‘marca’ para serem devidamente ‘descontaminadas’ de seu sentido social em curso, como demonstra o estudo clássico da linguista francesa Jacqueline Authier-Revuz, “Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva” (1982).

No conjunto, portanto, o texto-manifesto de Mourão é uma aglomeração de restos de enunciados que pairam como crítica permanente ao executivo, mas sem itálicos. Tentar distorcer essa massa de textos é inútil. Se quisesse mesmo defender Bolsonaro e o governo, Mourão deveria recorrer a outro repertório lexical, mais próximo do que dizem Weintraub, O Antagonista, Carlos Bolsonaro e o Terça Livre.

Alguém precisa avisar o vice-presidente que está ‘dando na cara’: está evidente demais o que ele anda lendo no seu tempo vago.

Após essa coleção de indícios de divórcio conceitual com o governo, Mourão passa a teorizar sobre o conceito de federação, numa sequência triste e bastante precária, talvez como forma de compensar todas as evidências de desembarque do ‘projeto Bolsonaro’ supracitadas.

Mourão compra a briga agônica de Bolsonaro com os estados e parece querer prestar solidariedade ao mandatário.

O gesto é muito parecido com o de Temer, meses antes do impeachment-golpe: manifesta apoio no varejo, mas opera de maneira conspiratória no atacado.

Nem é preciso ser conspiratório para derrubar Bolsonaro. O próprio Bolsonaro conspira contra si (talvez porque sonhe dar o autogolpe e evitar Mourão).

De volta ao texto, observa-se, mais uma vez, que Mourão acusa a incapacidade de Bolsonaro governar:

“O terceiro ponto é a usurpação das prerrogativas do Poder Executivo. A esse respeito, no mesmo Federalista outro de seus autores, James Madison, estabeleceu “como fundamentos básicos que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser separados e distintos, de tal modo que ninguém possa exercer os poderes de mais de um deles ao mesmo tempo”, uma regra estilhaçada no Brasil de hoje pela profusão de decisões de presidentes de outros Poderes, de juízes de todas as instâncias e de procuradores, que, sem deterem mandatos de autoridade executiva, intentam exercê-la.”

É uma comovente confissão. Terceiriza-se educadamente a culpa para o sistema impiedoso que “se estilhaçou” e alardeia-se a prerrogativa do sufrágio como elemento de representação, numa clara e rupestre tentativa de deslegitimar poderes estabelecidos constitucionalmente.

Aqui, Mourão foi infeliz em se insinuar para a história como solução a Bolsonaro. Faltou atenção.

O discreto ‘vice-general’ ainda fustiga ex-diplomatas para defender a política ambiental da Amazônia mas, detalhe: é uma política que ele, Mourão, conduz. Ou seja, aqui, ele defendeu a si mesmo – não a seu colega de chapa. Leiamos o trecho:

“O quarto ponto é o prejuízo à imagem do Brasil no exterior decorrente das manifestações de personalidades que, tendo exercido funções de relevância em administrações anteriores, por se sentirem desprestigiados ou simplesmente inconformados com o governo democraticamente eleito em outubro de 2018, usam seu prestígio para fazer apressadas ilações e apontar o País “como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global”, uma acusação leviana que, neste momento crítico, prejudica ainda mais o esforço do governo para enfrentar o desafio que se coloca ao Brasil naquela imensa região, que desconhecem e pela qual jamais fizeram algo de palpável.”

A seguir, Mourão faz mais uma crítica explícita a Bolsonaro, ainda que as ‘torções’ de leitura preguiçosa ainda vigentes no país possam impedir essa codificação (trabalho que faço aqui com a maior dedicação e sentido de serviço público):

“Pela maneira desordenada como foram decretadas as medidas de isolamento social, a economia do País está paralisada, a ameaça de desorganização do sistema produtivo é real e as maiores quedas nas exportações brasileiras de janeiro a abril deste ano foram as da indústria de transformação, automobilística e aeronáutica, as que mais geram riqueza. Sem falar na catástrofe do desemprego que está no horizonte.”

Desumanidades à parte (e a vida humana, Mourão?), o vice esfrega na cara de Bolsonaro a inépcia assombrosa de seu governo. ‘Maneira desordenada’ não enseja um referente neste mundo que não seja o próprio governo Bolsonaro. Todos os corolários gramaticais subsequentes elencados no discurso falsamente solidário de Mourão declinam esta leitura.

Bolsonaro é criticado por toda a imprensa brasileira e mundial em função do fracasso do isolamento social no país. Não há como distorcer ou ignorar este fato.

Mourão atacou Bolsonaro com a luva da dissimulação – mas o nosso processo alucinatório de interpretação de texto ainda vai segurar parte dessa leitura

Eis que chegamos ao ponto. Mourão escreve com um olho no peixe e outro no gato: se Bolsonaro cair, ele avisou. Se Bolsonaro se aguentar, ele foi ‘leal’.

Mourão é Michel Temer cuspido e escarrado (o país é prodigioso – merecidamente – em produzir traidores). Tece loas de lealdade infinita (ainda que fazendo uso do léxico equivocado), ao passo em que se coloca como garantidor conceitual da ‘federação’, mesmo com espasmos autoritários e golpistas – que, no caso de Mourão, assustam muito menos que a pistolagem bolsonarista.

O dado mais importante, no entanto, desta carta-quase-de-despedida de Mourão é o que ele não diz.

O vice-presidente não se referiu em nenhum momento a Bolsonaro. Sequer usou a palavra ‘presidente’, senão para se referir a ‘presidentes de outros poderes’.

A ‘palavra-nome próprio Bolsonaro’ não figura no discurso de Mourão – em nenhum dos mais recentes. Ele foge dela como o diabo foge da cruz.

Temer, nesse sentido, era até mais ‘carinhoso’ com Dilma – pois a citava em seus arroubos terminais de traição.

Não é preciso gastar muita energia para compreender o momento: no Brasil só se derruba presidente quando se tem clareza de quem ou do quê irá sucedê-lo. Nesse sentido, o país – a elite, os empresários, a oposição, a Globo – aguarda Mourão se posicionar para soltarem a ‘ordem’.

Essa cartinha ambígua publicada no Estadão é a primeira senha.

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