segunda-feira, 15 de junho de 2020

Quem lucra com as armas 'não-letais"?

Por Cida de Oliveira, na Rede Brasil Atual:

Como fazia todas as noites, a gari Cleonice Vieira de Moraes, 51 anos, trabalhava na limpeza das ruas do centro de Belém, no Pará, naquele 20 de junho de 2013. Com alguns companheiros, varria o chão nas imediações da prefeitura, para onde caminhavam manifestantes em protesto contra o valor da passagem de ônibus e pelo passe livre para os estudantes. Não demorou até que a polícia disparasse bombas de gás lacrimogêneo. No corre-corre, ela buscou abrigo para tentar se proteger da fumaça e seus efeitos irritantes da pele, olhos e nariz. Mesmo assim, passou mal e desmaiou. Foi levada para o pronto socorro, onde, segundo contaram seus familiares, teve paradas cardiorrespiratórias em decorrência da inalação do gás – uma das chamadas armas não-letais usadas em manifestações. Cleonice morreu na manhã seguinte.

Dois anos antes, pelo menos 38 pessoas morreram sob os efeitos do mesmo tipo de gás, disparado por forças de segurança do rei Hamad Al Khalifa, do Bahrein, em 14 de fevereiro de 2011, que ficou conhecido como “dia da raiva”.

Entre as vítimas estavam manifestantes que foram às ruas pela democracia e igualdade no país árabe. E também idosos, crianças pequenas e até bebês, atingidos dentro de suas casas pela fumaça e também pelos explosivos. A informação é da organização Americanos pela Democracia e Direitos Rights in Bahrein, que cobrou do governo brasileiro e da OCDE mais rigor sobre esses artefatos.

Armas não-letais?

O gás lacrimogêneo está no rol das armas equivocadamente chamadas de não-letais, utilizadas pelas forças de segurança para dispersar multidões, conter possíveis danos aos patrimônio público e privado e imobilizar pessoas consideradas “infratoras” por meio da dor e do medo. Do mesmo modo, as granadas de efeito moral, o spray de pimenta, cassetete, pistola teaser (de choque elétrico) e as munições de impacto controlado – as balas de borracha – que cada vez fazem mais vítimas.

Quem não se lembra do fotógrafo Sérgio Silva e do estudante Vitor Araújo? Sérgio cobria a manifestação do Movimento do Passe Livre no dia 13 de junho de 2013, na região central da capital paulista. Uma bala de borracha, disparada por um policial, atingiu e cegou seu olho esquerdo. Vitor ficou cego do olho direito, em 7 de setembro de 2013, após ter sido atingido por estilhaços de granada de efeito moral. O artefato foi lançado pela polícia contra manifestantes nas imediações da Câmara Municipal de São Paulo.

Em dezembro de 2019, quando manifestações no Chile completavam 45 dias, mais de 2.400 manifestantes haviam sido feridos com esse tipo de arma. E muitos ficaram cegos. Mesmo assim, a reposição de estoques era defendida pela própria autoridade policial, conforme o jornal local La Tercera.

De não-letais esses aparatos só têm o nome falso. Tanto é que a campanha pela regulamentação dos armamentos de baixa letalidade defende a mudança do termo para ‘de baixa’ ou ‘de menor letalidade’. E também a sua regulamentação.

Da guerra às ruas

Segundo o coletivo, essa gama de armas criada para conter manifestações urbanas não passam de um aperfeiçoamento da repressão do Estado, que começou a importar armas de guerra para seus centros urbanos.

Em meio a essa disputa, o conceito de não-letal tem sido explorado principalmente a partir de dezembro de 2010, com as manifestações da Primavera Árabe. E entre as empresas que têm obtido maior êxito nessa exploração comercial dos manifestos desponta a brasileira Condor S.A. Indústria Química, cujo nome de fantasia é “Tecnologias Não-Letais”.

Localizada no distrito de Adrianópolis, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ), é uma das principais exportadoras do setor de defesa do Brasil. Maior empresa do ramo na América Latina, atua há mais de 25 anos. Seu portfólio tem cerca de 150 produtos pesquisados e desenvolvidos em seu parque fabril. todos homologados pelo Exército Brasileiro. São itens utilizados por polícias de vários países, pelas Forças Armadas em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e pelas forças de paz das Nações Unidas.

Em seu site, a empresa destaca que tecnologias “não letais” possibilitam o emprego proporcional da força, reduzindo sensivelmente necessidade de uso de armas de fogo. “Dessa forma a ação militar e policial encontra meios para pautar-se pelo respeito aos Direitos Humanos e à preservação da vida. Ao mesmo tempo em que pode proteger a integridade física dos seus quadros e da população civil.”

Expansão

De acordo com a própria Condor, sua primeira exportação foi para a Argélia, em 2002. Em 2008 já tinha produzido 1 milhão de artefatos. Em 2011 foi a única empresa latino-americana convidada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para participar de um evento.

Na ocasião, lançou a Spark, primeiro dispositivo elétrico incapacitante para o mercado nacional. É muito provável que esse tipo de arma seja o mesmo que em março de 2012 matou o brasileiro Roberto Laudísio Curti, de 21 anos. Foi confundido pela polícia de Sidney, na Austrália, com alguém que roubou um pacote de biscoitos de uma uma loja de conveniência.

Em 2014 já tinha filial em Abu Dhabi, na qual o militar e engenheiro canadense Tawfic Ghadban foi gerente até recentemente. Em seu perfil no Linkedin, ele afirma que aprimorou o posicionamento competitivo da empresa, levando a organização a se tornar o principal fornecedor de munição não-letal na região. Expandiu a presença da empresa para lançar produtos para militares e policiais em 18 outros países. E aumentou a base de clientes de cinco para 40, elevando as vendas anuais de US$ 5 milhões para US$ 30 milhões. Com isso impulsionou em 80% a receita internacional da Condor e a diferenciou entre os mais de 50 concorrentes globais.

Em 2015, a companhia oficializou a Condor Non Lethal Asia Pacific PTE Ltd em Cingapura. Sua principal atividade econômica é o comércio atacado de variedades de mercadorias sem especificação. Mas o escritório já devia funcionar antes.

Da Primeira Guerra para as ruas

Um gerente de vendas que trabalhou na subsidiária brasileira de novembro de 2014 a abril de 2016 escreveu em seu perfil em rede social que a empresa atua no ramo da defesa e segurança dedicada exclusivamente à pesquisa e fabricação de sistemas e armas não-letais e de pirotecnia de alta tecnologia para sinalização. Durante sua passagem pela empresa, era responsável pelas vendas e marketing dos produtos, desenvolvimento e gerenciamento de canais.

A Condor não revela dados sobre seu faturamento. Mas é possível ter uma vaga ideia do tamanho de seus negócios, só para a estratégia de segurança pública no Brasil.

No artigo “Agentes Antimotim: o caso pró-regulamentação“, a professora Anna Feigenbaum, autora de Tear Gas: From the Battlefields of WWI to the Streets of Today (em tradução livre, Gás Lacrimogêneo: Dos campos de batalha da 1ª Guerra Mundial para as ruas de hoje), informa que em 2014 a Condor faturou no mercado internacional US$ 50 milhões. E que durante a Copa do Mundo do Brasil, no mesmo ano, faturou US$ 22 milhões. Foram fornecidos gás lacrimogêneo, balas de borracha, armas elétricas, granadas de luz e som para a polícia e forças de segurança privadas.

Anna diz ainda que nos últimos anos houve um aumento de receita de 33% com o uso de uma nova estratégia de marketing e a contratação de uma campanha publicitária em torno da representação do uso gradual da força, além de aumentar a participação em feiras de negócios e exposições. E que com essas iniciativas, houve um crescimento médio de vendas da ordem de 90%.

O senhor das armas

No Brasil, a Condor esteve entre as dez empresas que mais receberam recursos da então Secretaria Extraordinária de Segurança para os Grandes Eventos (Sesge), do Ministério da Justiça, de 2012 a 2015. Recebeu R$ 43.587.174,27, segundo o pesquisador Bruno Cardoso, um dos autores de Tecnopolíticas da vigilância: Perspectivas da Margem (editora Boitempo).

E as expectativas futuras são animadoras para o setor. Segundo a consultoria de mercado Markets and Markets, o ramo de munições menos letais, como se diz na maioria dos países estrangeiros, deverá crescer de US$ 828 milhões em 2018 para US$ 1,106 bilhão até 2023. O crescimento desse segmento pode ser atribuído à tendência crescente de militarização das agências policiais em todo o mundo, juntamente com o aumento da incidência de disputas políticas e agitação civil.

Segundo a Receita Federal, a Condor foi aberta em 7 de fevereiro de 1986, tendo como atividade principal a fabricação de artigos pirotécnicos. Nada mais consta do registro quanto a atividades secundárias. Exatamente como no cadastro de contribuintes de ICMS do estado do Rio de Janeiro. No entanto, o Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis (Sinrem) aponta que o objetivo da empresa é a fabricação de outros produtos químicos não especificados anteriormente, de pólvora, explosivos e detonantes, de equipamento bélico pesado, exceto veículos militares de combate, e de armas de fogo e munição.

O quadro societário é constituído por Carlos Erane de Aguiar e Edmundo José da Silva Navarro, mas é o primeiro quem preside, segundo contrato social registrado na Junta Comercial do Rio de Janeiro.

Levantado das cinzas

Em março de 2019, durante lançamento do livro O Valor da Vida, uma experiência das tecnologias não letais no Brasil, Erane, que assina o livro, disse à agência de notícias Defesanet que a Condor é familiar, 100% brasileira e “que fabrica armas projetadas para não matar”.

Segundo a reportagem, o próprio Erane construiu a Condor no mesmo lugar ocupado pela antiga Química Tupan S.A, onde trabalhou como diretor comercial até a falência. Erane teria então “levantado das cinzas da antiga fábrica uma nova indústria, mas que, diferentemente da anterior, só fabricasse armas projetadas não para matar, mas para salvar vidas”. Há pouquíssimas informações sobre a falência da Tupan, apenas alguns registros em livros estrangeiros sobre as minas terrestres ali fabricadas.

O presidente da Condor tem uma vasta atividade empresarial: Integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, diretor titular do Departamento de Defesa e Segurança da Federação das Indústrias de São Paulo (Comdefesa/Fiesp), membro da diretoria plena e vice-presidente do Conselho do Centro Industrial do Rio de Janeiro (CIRJ/Firjan) e presidente da Representação Regional da Firjan na Baixada Fluminense.

Desde 2013 preside o Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa (Simde), entidade que representa empresas como a Avibras, Taurus, a própria Condor e a Welser – outra empresa de sua propriedade em sociedade com Edmundo José da Silva Navarro.

Bala na agulha

Aberta em 12 de setembro de 1986, pouco depois da Condor, a Welser Itage Participações tem sede no Rio de Janeiro. Comércio atacadista de outros produtos químicos e petroquímicos não especificados é a principal atividade da empresa. Entre as atividades secundárias estão: comércio atacadista de outras máquinas e equipamentos não especificados anteriormente, partes e peças; consultoria em tecnologia da informação, representação comercial; comércio de combustíveis, minerais, produtos siderúrgicos e químicos; e comércio de mercadorias em geral não especializado.

Tudo indica que esses “outros produtos” sejam armas de fogo e munição não letais, ou de baixa letalidade. E que a empresa opere de maneira auxiliar ou complementar à Condor. O perfil de um funcionário em rede social mostra que suas atribuições envolvem administração internacional de negociação e vendas, além de procedimentos legais, análise de licitações locais e estrangeiras, emissão e análise de documentos e procedimentos de exportação para mais de 40 países.

De acordo com o Portal de Dados Abertos do Governo Federal, a Welser Itage fornece armas de fogo de calibres até 30 e 120 milímetros, munição de calibre até 30, 120 e 125 e acima de 75 milímetros. Além de bombas, granadas, motores de foguetes e componentes, e também caixas, recipientes e embalagens especiais para armamento nuclear e munição. Entre seus principais concorrentes estão a Indústria de Materiais Bélicos do Brasil (Imbel), a Taurus e a própria Condor.

Como se vê, Carlos Erane de Aguiar investe na imagem de empresário preocupado com a necessidade de “equipamentos alternativos ao cassetete e ao fuzil”. E ao mesmo tempo tem bala na agulha para oferecer aos governos do Brasil e do exterior armas, munições e outros aparatos bem mais letais.

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