Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Acostumado que está com notícias ruins e mesmo péssimas, o brasileiro já não se surpreende com mais nada. Uma nova quebra do país, provocada por estrangulamento cambial, seria mais um de tantos desastres dos anos recentes.
O risco existe. O Brasil vendeu um volume considerável de reservas internacionais desde meados de 2019, cerca de US$ 50 bilhões. Apesar disso, não conseguiu evitar acentuada depreciação do real.
De onde vem a pressão cambial? Não é da conta corrente do balanço de pagamentos. Esta tende, ao contrário, a melhorar. Com a economia em recessão profunda – projeta-se queda de 6% ou mais do PIB em 2020 – a demanda de importações entra em colapso. Como as importações caindo bem mais do que as exportações, o superávit comercial aumenta consideravelmente. Outros componentes do balanço de pagamentos em transações correntes também melhoraram, entre eles viagens internacionais e remessas de lucros e dividendos. A combinação de recessão com depreciação cambial está produzindo, como costuma acontecer, rápido ajustamento das contas externas correntes.
O problema está na volumosa saída líquida de capitais do país. Desde as décadas finais do século passado, a situação de balanço de pagamentos de países como o Brasil é determinada preponderantemente por movimentos internacionais de capitais. A conta corrente continua relevante, por suposto, mas o que pesa mesmo é a evolução da conta de capitais.
A saída de capitais, que começou em 2019, agravou-se com a chegada da pandemia. O problema se coloca para muitos países emergentes, não apenas para o Brasil. Toda crise internacional gera aversão ao risco e fuga para portos mais seguros. E a crise atual é a mais grave desde a Grande Depressão da década de 1930. Mas no nosso caso há dois agravantes. Primeiro, uma crise de confiança no país. A percepção crescente, no Brasil e no exterior, é de grave incapacidade e despreparo do governo. A reação tumultuada e incompetente ao desafio da crise de saúde pública eliminou qualquer esperança de uma gestão governamental minimamente eficaz. O Brasil converteu-se, em menos de ano e meio de governo Bolsonaro, num exemplo mundial de desordem econômica e política. Aumentou, portanto, o risco nas operações com o país e muitos investidores decidiram procurar outros rumos.
Esse movimento de saída foi estimulado também pela decisão – correta – do Banco Central de reduzir a taxa Selic. Desde meados do ano passado, percebeu-se que as projeções de inflação e a debilidade da recuperação econômica recomendavam a diminuição da taxa básica. Com essa diminuição, entretanto, estreitou-se o diferencial entre os juros internos e externos, tornando as aplicações em reais menos atrativas para os investidores em comparação com outros destinos. Esse segundo fator juntou-se à crise de confiança no governo para induzir a saída de capitais. Não por acaso o real tem sido uma das moedas mais pressionadas nos meses recentes.
O que fazer? O Banco Central tem instrumentos para lidar com a pressão cambial. O principal deles é o elevado estoque de reservas internacionais. Apesar da perda recente, o país ainda dispõe de US$ 340 bilhões. A posição brasileira, nesse particular, é melhor do que a de outros países emergentes – a Argentina e a Turquia, por exemplo – que não acumularam reservas suficientes e ficaram mais vulneráveis a problemas de balanço de pagamentos. A Argentina, ainda no governo Macri, teve que recorrer ao FMI. Graças às reservas acumuladas desde 2006, nos governos Lula e Dilma, o Brasil tem condições de se defender por conta própria e não precisa buscar auxílio financeiro externo em Washington.
Outra vantagem é o regime de flutuação cambial, estabelecido no Brasil depois da crise cambial de 1998-1999. Essa flexibilidade permite que a pressão cambial seja absorvida, no todo ou em parte, por meio de depreciação do real em relação a moedas estrangeiras. Se o Brasil operasse em um regime de câmbio fixo e tivesse tentado evitar a depreciação, o Banco Central teria sido obrigado pela saída de capitais a vender um volume muito maior de reservas internacionais, criando situação de alto risco para o país.
A depreciação da moeda, sempre noticiada em tom de lamento, tem os seus lados positivos para a economia. Ao estimular a competitividade das exportações e encarecer a importações de bens e serviços, ela favorece o ajuste do balanço de pagamentos em transações correntes. Ajudando setores que exportam e aqueles que concorrem com importações no mercado interno, ela contribui ao mesmo tempo para sustentar o nível de atividade econômica e de emprego.
Não se deve perder de vista, além disso, que a depreciação do real também favorece as contas públicas. Isso porque o governo é, por larga margem, credor líquido em moeda estrangeira, isto é, os seus ativos externos excedem consideravelmente os seus passivos em moeda estrangeira ou indexados à moeda estrangeira. A combinação juros internos mais baixos/depreciação cambial proporciona, assim, alívio muito bem-vindo a contas fiscais fortemente pressionadas pela crise de 2020.
Esses aspectos positivos da depreciação cambial não seriam, entretanto, eclipsados pelo seu impacto inflacionário? Nas circunstâncias atuais, com a economia em queda livre, o problema não se coloca, pelo menos no curto prazo. Com capacidade ociosa e desemprego elevados, o repasse do câmbio para o nível geral de preços é limitado. A inflação está controlada e tem ficado, inclusive, abaixo do piso da meta perseguida pelo Banco Central. O risco maior hoje parece ser de deflação. A depreciação cambial ajuda a afastar esse risco, ao elevar os preços em reais dos tradeables, os bens e serviços comercializados internacionalmente.
Isso não significa, claro, que o Banco Central possa simplesmente ignorar a depreciação do real e operar em modo flutuação pura, de livro texto. Em meio a uma crise econômica e política grave como a atual, paira sobre nós a ameaça de que, a partir de certo ponto, a queda da moeda nacional passe a se autoalimentar, tornando-se uma depreciação em espiral que desestabilizaria a economia. Para afastar essa ameaça, temos reservas internacionais ainda elevadas, que podem ser usadas para contra-arrestar a depreciação. Em determinadas circunstâncias, o Banco Central pode lançar mão da venda de swaps cambiais, que permitem atender a demanda por hedge e estabilizar o mercado sem comprometer o nível de reservas. Indexados ao dólar, mas liquidados em reais, os swaps cambiais são um instrumento complementar de que dispõe o Banco Central para atuar no mercado cambial sem recorrer às reservas internacionais.
Resumo da ópera: a situação é difícil, mas o país dispõe de mecanismos para lidar com a pressão na conta de capitais e evitar o estrangulamento cambial. O problema central, nessa área como em outras, é a inexistência de um governo minimamente organizado e confiável. A combinação da pior crise da nossa história com o pior governo da nossa história exacerba todos os problemas e aumenta a vulnerabilidade do país.
* Este artigo é uma versão resumida do que foi publicado na CartaCapital em 29 de maio de 2020.
* Paulo Nogueira Batista Jr. é é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou recentemente pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.
E-mail: paulonbjr@hotmail.com;
twitter: @paulonbjr;
canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br.
Acostumado que está com notícias ruins e mesmo péssimas, o brasileiro já não se surpreende com mais nada. Uma nova quebra do país, provocada por estrangulamento cambial, seria mais um de tantos desastres dos anos recentes.
O risco existe. O Brasil vendeu um volume considerável de reservas internacionais desde meados de 2019, cerca de US$ 50 bilhões. Apesar disso, não conseguiu evitar acentuada depreciação do real.
De onde vem a pressão cambial? Não é da conta corrente do balanço de pagamentos. Esta tende, ao contrário, a melhorar. Com a economia em recessão profunda – projeta-se queda de 6% ou mais do PIB em 2020 – a demanda de importações entra em colapso. Como as importações caindo bem mais do que as exportações, o superávit comercial aumenta consideravelmente. Outros componentes do balanço de pagamentos em transações correntes também melhoraram, entre eles viagens internacionais e remessas de lucros e dividendos. A combinação de recessão com depreciação cambial está produzindo, como costuma acontecer, rápido ajustamento das contas externas correntes.
O problema está na volumosa saída líquida de capitais do país. Desde as décadas finais do século passado, a situação de balanço de pagamentos de países como o Brasil é determinada preponderantemente por movimentos internacionais de capitais. A conta corrente continua relevante, por suposto, mas o que pesa mesmo é a evolução da conta de capitais.
A saída de capitais, que começou em 2019, agravou-se com a chegada da pandemia. O problema se coloca para muitos países emergentes, não apenas para o Brasil. Toda crise internacional gera aversão ao risco e fuga para portos mais seguros. E a crise atual é a mais grave desde a Grande Depressão da década de 1930. Mas no nosso caso há dois agravantes. Primeiro, uma crise de confiança no país. A percepção crescente, no Brasil e no exterior, é de grave incapacidade e despreparo do governo. A reação tumultuada e incompetente ao desafio da crise de saúde pública eliminou qualquer esperança de uma gestão governamental minimamente eficaz. O Brasil converteu-se, em menos de ano e meio de governo Bolsonaro, num exemplo mundial de desordem econômica e política. Aumentou, portanto, o risco nas operações com o país e muitos investidores decidiram procurar outros rumos.
Esse movimento de saída foi estimulado também pela decisão – correta – do Banco Central de reduzir a taxa Selic. Desde meados do ano passado, percebeu-se que as projeções de inflação e a debilidade da recuperação econômica recomendavam a diminuição da taxa básica. Com essa diminuição, entretanto, estreitou-se o diferencial entre os juros internos e externos, tornando as aplicações em reais menos atrativas para os investidores em comparação com outros destinos. Esse segundo fator juntou-se à crise de confiança no governo para induzir a saída de capitais. Não por acaso o real tem sido uma das moedas mais pressionadas nos meses recentes.
O que fazer? O Banco Central tem instrumentos para lidar com a pressão cambial. O principal deles é o elevado estoque de reservas internacionais. Apesar da perda recente, o país ainda dispõe de US$ 340 bilhões. A posição brasileira, nesse particular, é melhor do que a de outros países emergentes – a Argentina e a Turquia, por exemplo – que não acumularam reservas suficientes e ficaram mais vulneráveis a problemas de balanço de pagamentos. A Argentina, ainda no governo Macri, teve que recorrer ao FMI. Graças às reservas acumuladas desde 2006, nos governos Lula e Dilma, o Brasil tem condições de se defender por conta própria e não precisa buscar auxílio financeiro externo em Washington.
Outra vantagem é o regime de flutuação cambial, estabelecido no Brasil depois da crise cambial de 1998-1999. Essa flexibilidade permite que a pressão cambial seja absorvida, no todo ou em parte, por meio de depreciação do real em relação a moedas estrangeiras. Se o Brasil operasse em um regime de câmbio fixo e tivesse tentado evitar a depreciação, o Banco Central teria sido obrigado pela saída de capitais a vender um volume muito maior de reservas internacionais, criando situação de alto risco para o país.
A depreciação da moeda, sempre noticiada em tom de lamento, tem os seus lados positivos para a economia. Ao estimular a competitividade das exportações e encarecer a importações de bens e serviços, ela favorece o ajuste do balanço de pagamentos em transações correntes. Ajudando setores que exportam e aqueles que concorrem com importações no mercado interno, ela contribui ao mesmo tempo para sustentar o nível de atividade econômica e de emprego.
Não se deve perder de vista, além disso, que a depreciação do real também favorece as contas públicas. Isso porque o governo é, por larga margem, credor líquido em moeda estrangeira, isto é, os seus ativos externos excedem consideravelmente os seus passivos em moeda estrangeira ou indexados à moeda estrangeira. A combinação juros internos mais baixos/depreciação cambial proporciona, assim, alívio muito bem-vindo a contas fiscais fortemente pressionadas pela crise de 2020.
Esses aspectos positivos da depreciação cambial não seriam, entretanto, eclipsados pelo seu impacto inflacionário? Nas circunstâncias atuais, com a economia em queda livre, o problema não se coloca, pelo menos no curto prazo. Com capacidade ociosa e desemprego elevados, o repasse do câmbio para o nível geral de preços é limitado. A inflação está controlada e tem ficado, inclusive, abaixo do piso da meta perseguida pelo Banco Central. O risco maior hoje parece ser de deflação. A depreciação cambial ajuda a afastar esse risco, ao elevar os preços em reais dos tradeables, os bens e serviços comercializados internacionalmente.
Isso não significa, claro, que o Banco Central possa simplesmente ignorar a depreciação do real e operar em modo flutuação pura, de livro texto. Em meio a uma crise econômica e política grave como a atual, paira sobre nós a ameaça de que, a partir de certo ponto, a queda da moeda nacional passe a se autoalimentar, tornando-se uma depreciação em espiral que desestabilizaria a economia. Para afastar essa ameaça, temos reservas internacionais ainda elevadas, que podem ser usadas para contra-arrestar a depreciação. Em determinadas circunstâncias, o Banco Central pode lançar mão da venda de swaps cambiais, que permitem atender a demanda por hedge e estabilizar o mercado sem comprometer o nível de reservas. Indexados ao dólar, mas liquidados em reais, os swaps cambiais são um instrumento complementar de que dispõe o Banco Central para atuar no mercado cambial sem recorrer às reservas internacionais.
Resumo da ópera: a situação é difícil, mas o país dispõe de mecanismos para lidar com a pressão na conta de capitais e evitar o estrangulamento cambial. O problema central, nessa área como em outras, é a inexistência de um governo minimamente organizado e confiável. A combinação da pior crise da nossa história com o pior governo da nossa história exacerba todos os problemas e aumenta a vulnerabilidade do país.
* Este artigo é uma versão resumida do que foi publicado na CartaCapital em 29 de maio de 2020.
* Paulo Nogueira Batista Jr. é é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou recentemente pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.
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