sexta-feira, 17 de julho de 2020

A disputa pelo 5G no Brasil

Por Alexandre G. de B. Figueiredo, no site A terra é redonda:

Lembrando o famoso pensamento de Clausewitz, para quem a guerra é a continuação da política por outros meios, Raymond Aron escreveu que os diplomatas são soldados que defendem os interesses nacionais por meios pacíficos. Em sua obra clássica, Paz e Guerra entre as Nações, Aron apresentou uma visão de relações internacionais como mais propriamente o estudo das relações entre os Estados que, por sua vez, interagiriam de duas maneiras: paz ou guerra. Diplomata e soldado seriam os seus representantes para perseguir os objetivos almejados, quer fosse em um cenário, quer fosse no outro.

O Brasil, de forma inédita, foi palco recente de um enfrentamento entre diplomatas que mostra a sombra da guerra que cai sobre o século XXI. O embaixador dos Estados Unidos, Todd Chapman, com um comportamento indicativo da submissão da diplomacia à agressividade que antigamente caberia em conflitos abertos, compartilhou no Twitter uma acusação contra o governo chinês. Por sua vez, o embaixador da China, Yang Wanming, também pelo Twitter denunciou o comportamento do norte-americano: sua missão seria vir ao Brasil para atacar a China com acusações mentirosas.

Chapman escreveu em português. O público alvo de sua mensagem é, portanto, óbvio. Por meio de um embaixador, Washington dá sequência à sua campanha anti-China no Brasil, que já havia sido iniciada há meses no esgoto das fake news disseminadas por grupos de WhatsApp bolsonaristas e coroada com a participação direta do filho do presidente.

Ernesto Araújo, um chanceler, já usou mais de uma vez a expressão “vírus vermelho”. A deduzirmos a razão de Estado alegada para impedir a divulgação de trecho selecionado da insana reunião de ministros vazada em decorrência do caso Moro, o próprio Bolsonaro não se constrange no papel de correia de transmissão da campanha dos EUA. Sua submissão e amor declarado a Trump são sinceros e tão calorosos quanto os abraços, contaminados de covid, que deu em Chapman no almoço de 4 de julho.

O que está em jogo nessa disputa pela opinião pública brasileira? Em primeiro lugar, há a questão geopolítica mais profunda. Os EUA atuam para dificultar a ascensão da China como uma liderança internacional e, principalmente, um parceiro que oferece vantagens sem pedir contrapartidas militares. Mas, em segundo lugar, há a dimensão doméstica de um capítulo importante da guerra comercial: a disputa pela implantação do 5G no Brasil.

Mais do que uma internet rápida e estável, o 5G é a nova fronteira da revolução tecnológica. Com sua rede, uma quantidade infindável de dispositivos poderão se conectar e ser operados pela internet com precisão, de carros e drones a casas e eletrodomésticos, além de, principalmente, indústrias, maquinário agrícola, etc. Além disso, o sinal é altamente confiável e capaz de atingir maiores áreas de cobertura.

É a chamada “internet das coisas” e, dessa vez, os chineses estão à frente. A perseguição contra as empresas chinesas Huawey e ZTE, inclusive ao arrepio de normas internacionais consagradas pelos próprios Estados Unidos, provém do desconforto em lidar com uma China que não é mais apenas um grande e cobiçado mercado consumidor.

O leilão para a concessão da rede 5G no Brasil, alvo direto dessa disputa, já foi adiado em decorrência da pandemia. A Anatel deu as regras gerais no início deste ano e existe, hoje, a previsão de novo leilão em novembro. Os mais realistas acreditam que, na verdade, o processo só será aberto em 2021[i]. Um tempo para os EUA e aliados se recuperarem na corrida?

Uma indefinição política local coloca mais um elemento na disputa e indica as razões da campanha pública do embaixador norte-americano. Quando Bolsonaro recriou o Ministério das Comunicações, a política nacional de telecomunicações ficou a cargo no novo ministro, Fábio Faria, do “Centrão” que controla o Legislativo. Assim, um bolsonarista “puro” como Marcos Pontes não terá mais o martelo da decisão nesse assunto.

Ora, se Bolsonaro adota o alinhamento automático com Washington, o mesmo não pode ser dito do Congresso Nacional, muito mais complexo. Para se ter uma ideia, foi o Grupo Parlamentar Brasil-China que celebrou no ano passado, nas dependências Congresso, os 45 anos de relações diplomáticas entre os dois países, com exposição fotográfica e selo comemorativo. Há deputados e senadores, em todas as faixas do espectro ideológico, que se preocupam com as relações entre o Brasil e seu maior parceiro comercial. Na questão do 5G, os agentes responsáveis sabem que o Brasil perderá muito se ceder à pressão de Washington e optar pela tecnologia mais cara e pior.

Por isso, a agenda pública de Todd Chapman incluiu, além do Twitter, uma entrevista à CNN Brasil para acusar as fabricantes chinesas de espionagem e recomendar, em mais um ato bastante didático sobre o funcionamento das embaixadas norte-americanas, que o Brasil não utilize a tecnologia chinesa. Esses ataques são repetidos por Trump e aliados sem qualquer indicação de prova que as corrobore.

De tanto fumar cachimbo, a boca entorta: os EUA sabem o que fazem e a memória recente da espionagem dos e-mails de Dilma Roussef e Angela Merkel mostra bem o fenômeno da atual projeção. Sem falar nos questionamentos quanto à atuação das redes norte-americanas na captura de dados. Mas, quanto à espionagem norte-americana, já demostrada (lembremo-nos do wikileaks), o embaixador não teve nada a dizer.

Se não há provas contra a China, há várias a seu favor.

Desde 1979, a China não entra em conflitos armados com outros Estados. O mais perto disso foi o recente incidente com a Índia, no qual uma escaramuça com paus e pedras vitimou alguns militares. As armas inusuais são fruto de uma medida adotada justamente para evitar uma escalada militar. Os EUA, por sua vez, no mesmo período, não passaram sequer um ano sem uma guerra em curso. Inclusive, no que tange diretamente à China, Washington mantém uma política de cerco estratégico e militar que perpassa sem constrangimentos governos democratas e republicanos. Se George Bush foi quem reconheceu a Índia como potência nuclear, foi Barack Obama quem ampliou os acordos e presença militar no Pacífico e Sudeste Asiático.

É Fareed Zakaria, na insuspeita Foreign Policy, que lembra que neste século a China apoiou a quase totalidade das Resoluções do Conselho de Segurança da ONU, além de ter mais soldados nas operações de paz em curso, comandadas pelas Nações Unidas, do que a soma de todos os outros membros do Conselho [ii]. A China aposta e atua nas instituições multilaterais que foram concebidas sob a hegemonia dos Estados Unidos: está na OMC, na OMS, nos acordos climáticos, etc.

Um outro indicador da sua posição é a do armamento nuclear, de extrema relevância para medir o potencial ameaçador de um país. Hoje, os EUA tem 6185 ogivas, das quais 1750 estão prontas para uso, implantadas em mísseis ou instaladas em bases militares. A China, por sua vez, tem 290 ogivas, sendo que nenhuma delas está ativa [iii]. Ou seja, é um ator internacional importante e pacífico, cujo “crime” foi investir pesado em ciência e tecnologia e, hoje, poder oferecer equipamentos melhores e mais avançados que os norte-americanos.

O embaixador dos Estados Unidos sobe o tom no Brasil e caminha na direção de uma beligerância imprópria à sua função. Aqui, se trata da importância do 5G, mas no tabuleiro mundial há as consequências do deslocamento do eixo econômico do mundo para a Ásia. Na disputa que escolhe fazer com a China, os EUA atravessarão a fronteira já dilatada por seus diplomatas e envolverão diretamente seus soldados? Existe uma sombra de guerra na redefinição do sistema internacional no século XXI, mas a ameaça, ao contrário do que diz o aparelho de propaganda, passa muito longe de vir de Pequim.

* Alexandre G. de B. Figueiredo é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP.

Notas:

[i] https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/07/novo-patamar-de-telefonia-5g-ainda-deixa-duvidas-sobre-inclusao-digital-no-brasil

[ii] https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2019-12-06/new-china-scare

[iii] https://valdaiclub.com/multimedia/infographics/the-world-s-nuclear-weapons-in-2019/

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