Que ninguém se iluda: os desmandos do sr. Bolsonaro na política interna e as sandices do chanceler Ernesto Araújo na política externa têm uma funcionalidade positiva em parte considerável da mídia mainstream internacional.
Sobre o governo Bolsonaro, o novo papel do Itamaraty, a “imagem do Brasil”, todo o mal já está feito, e daqui para a frente só poderá piorar, apesar de medidas paliativas anunciadas, como a proibição de queimadas durante três meses. O governo Bolsonaro é um governo completamente desmoralizado na mídia mundial, e também fora dela. Ninguém pode levar a sério um governo que, pela primeira vez na História do país desde sua independência, atrelou sua política externa automaticamente não apenas à de um outro pais, mas a uma facção de um partido político deste país, os Estados Unidos. Até mesmo a ressonância que Bolsonaro e Araújo obtém entre governantes reacionários como os da Hungria, Polônia, Israel, ou políticos como o italiano Matteo Salvini devem ser vistos com cautela desconfiança. Nem mesmo a francesa Le Pen fica à vontade diante de Bolsonaro. O próprio Trump não cessa de tratar Bolsonaro como um cão amestrado e menor, enquanto (e por isto mesmo) disputa como ele, em ano eleitoral, o título de pior governante frente à pandemia.
O coro contra Bolsonaro é gritante, indo, na mídia, do vetusto Financial Times ao progressista The Guardian, passando por Washington Post, New York Times e outros. E a insistência de Bolsonaro em manter Salles no Meio Ambiente e elogiar Pazuello na Saúde só piora as coisas, sem falar no seu rebaixamento a garoto-propaganda de remédio duvidoso para o combate à Covid-19. Bolsonaro é motivo de pilhéria e desprezo na mídia portuguesa, francesa, alemã e outras de igual porte.
Mas repito: embora esta desmoralização do governo brasileiro deva ser saudada como algo positivo para a nossa futura democracia, existe um elemento nela de velada satisfação com o que esta acontecendo.
Em 2013 fui ao Brasil para participar da cobertura do encontro que comemorava os 10 anos do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, ligado à Presidência da República, acompanhando a equipe da Carta Maior. Um dos palestrantes foi o diplomata Roberto Azevêdo, então recém eleito presidente da Organização Mundial do Comércio. Em sua fala declarou que o idílio entre o Brasil e a mídia internacional acabara, e que era bom se preparar para os novos tempos árduos que estavam por vir. Azevêdo fora o candidato preferido pelos países em desenvolvimento, derrotando o diplomata mexicano Hermínio Blanco, apoiado pelos Estados Unidos, Canadá, União Europeia, Reino Unido, Alemanha, França… etc.
A disputa e a eleição de Azevêdo confirmava a liderança brasileira junto aos países do 3o. Mundo, e seu desafio à ordem neo-liberal que era e ainda é a dominante (embora não mais hegemônica) entre os países mais desenvolvidos e seus satélites no ex-Ocidente do planeta.
Este desafio vinha no bojo do sucesso nacional e internacional obtido pelos governos liderados pelo PT durante os dez anos anteriores, ao combater eficazmente a pobreza e a miséria, e aumentar a taxa de consolidação de instituições sérias e bem organizadas fazendo a interface entre governo, Estado e sociedade organizada, contribuindo também para ajudar a organizar minimamente a desorganizada, isto é, a parcela social excluída das esferas de integração na economia e em outras instâncias, como educação e saúde. Esta tendência à melhora geral das condições de vida social e política vinha acompanhada por uma inclinação nunca dantes navegada por parte da América Latina em direção à esquerda e a uma independência de facto e de jure diante da política externa norte-americana. Isto nos permite pensar, por exemplo, se a eleição recente de Fernandez na Argentina e a de Lopez Obrador no México não seriam uma continuidade, quae sera tamen, daquela onda vermelha, ao invés da abertura de um novo ciclo no continente. A presença de Cristina Kirchner na chapa de Fernandez aponta para a primeira hipótese, ao invés da segunda.
Pois bem, aquela onda vermelha do continente Latino-Americano era uma pedra no sapato para o pensamento dominante nos grandes espaços das “democracias herdeiras do antigo Mundo Ocidenta”, e seus meios de comunicação mainstream. Estes grandes espaços colocam-se como herdeiros e pontas-de-lança das reformas neo-liberais implantadas a partir dos governos conservadores de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, desmantelando o que puderam das políticas do “Estados de Bem-Estar Social”. Muitas destas reformas foram implantadas por governos auto-proclamados “progressistas”, como o do pacto entre Social-Democratas e Verdes na Alemanha, o de Tony Blair no Reino Unido e os socialistas na França. E esta herança paira sobre e sob a maior parte dos comentários da mídia média europeia e norte-americana. Tudo o que, no plano econômico e social, desvia daquela norma neo-liberal é imediatamente qualificado como “populista”. Criaram-se até estas expressões de inter-face comum sobre suas gritantes diferenças ideológicas: “populismo de direita” e “populismo de esquerda”, amalgamando, num mesmo saco de gatos, alhos e bugalhos, vinagre e vinho.
Para valer-se de uma metáfora tão tradicional quanto equivocada: o Brasil, liderança da América Latina e do antigo “Terceiro Mundo”, era como o besouro cascudo, aquele que “não poderia voar mas que no entanto avoa” (1). O Brasil não poderia alçar voo por duas razões: a primeira, mais superficial, porque aplicava as lições que contrariavam completamente a cartilha neo-liberal e os famigerados “planos de austeridade”. A razão mais profunda era a de que o Brasil era e é o Brasil, aquele país sobre que pesa a frase atribuída ao General De Gaulle, durante a “Guerra da Lagosta” (1961 - 1963), “Le Brasil n’est pas un pays sérieux”, “O Brasil não é um país sério” - um país votado eternamente à conjugação de praia, futebol, preguiça, políticos corruptos e ineptos ou militares no poder, etc. (2).
A partir da Constituição de 1988, a chamada pejorativamente de “cidadã” por parte de nossa própria mídia (o termo original, nada negativo, foi cunhado por Ulisses Guimarães), mas sobretudo a partir da eleição de Lula, o Brasil foi se tornando uma “ideia fora do lugar”, fugindo à maldição daquele estereótipo e fazendo balançar o tabuleiro imaginário da cartografia mundial. Neste tabuleiro, desenhado a partir da Projeção de Mercator (1569), o Brasil sempre será visto com tamanho de um terço da Groenlândia, embora na real seja quatro vezes maior do que aquela ilha.
A partir daquele insólito evento - o candidato brasileiro derrotando o preferido do ex-Ocidente na OMC, o Brasil passou a ser fustigado por boa parte da mídia mundial. A tal ponto chegou esta má-vontade que, quando, em 1914, começaram as manifestações insufladas pela campanha anti-petista da nossa própria mídia, a sua correspondente mundial, em grande parte, passou a saudar sua ocorrência como legítimas demonstrações democráticas contra um governo populista e herdeiro da tradicional inépcia e corrupção política do Brasil. Igualmente, a mídia e o establishment europeu receberam de braços abertos os “heróis anti-corrupção” da Lava-Jato e o juiz Moro. Deltan Dallagnol foi recebido com tapete vermelho em Berlim quando a Transparency International concedeu à Lava-Jato o seu prêmio do ano de 2016.
É verdade que esta mesma grande parte da mídia mundial vinha no embalo de saudar os fascistas ucranianos que lutavam com as forças policiais em Kiev como os “heróis da praça Maidan”, democratas sinceros imbuídos da soberana vontade de derrocar um governo corrupto e autoritário. E aquele foi o tom que predominou durante toda a cobertura do vergonhoso processo de impeachment da presidenta Dilma. Houve recuos: o jornal francês Le Monde chegou a se desculpar em editorial perante seu público leitor pela cobertura equivocada que fizera dos acontecimentos brasileiros. Mas o Brasil já começara a navegar de volta a seu lugar, de onde nunca deveria ter saído: o país do povo pobre e desamparado, deserdado pelas suas instituições e seus políticos, o país do eterno atraso sem saída e da desorganização permanente.
Assim, a eleição de Bolsonaro e a consequente invasão do governo federal por gente de fato inepta, despreparada, grotesca, arautos de uma visão completamente anacrônica da realidade mundial, em suma, um deboche institucional, foi apenas a cereja do bolo. Bolsonaro desagrada, evidentemente. Mas o ridículo, o desprezo e a desdita a que ele e seus cúmplices relegam o Brasil por inteiro, a ameaça que trazem para a Amazônia, o meio-ambiente como um todo, as populações indígenas, os quilombolas, a misoginia, os preconceitos contra todos os grupos fragilizados, a invasão do governo por um bando de militares ávidos de boquinhas federais, as tiradas abobalhadas sobre a cloroquina, etc., tudo isto, além de horrorizar e provocar desdém, tem lá sua funcionalidade. O Brasil não tem jeito mesmo, é um país de segunda mão, que não pode se arvorar a liderar o que quer que seja.
É claro que há vozes dissonantes deste bordão. Recentemente o euro-deputado espanhol, Jordi Cañas, encarregado nada difícil missão de relatar o acordo entre a União Europeia e o Mercosul, declarou enfaticamente que “O Brasil não é Bolsonaro”. Ainda há quem, para falar do Brasil, leve a sério Celso Amorim ao invés de apenas se deter nas sandices de Ernesto Araújo. Mas por ora grande parte da mídia mundial espera que surja, das cinzas a que o nosso país está sendo reduzido, algum novo herói conservador, do tipo Doria ou Moro, embora o prestígio deste tenha sido arranhado por fazer parte do desqualificado governo de Bolsonaro . A ver.
Notas
1 - Diz a crença que o besouro cascudo não poderia voar porque o seu peso seria demasiado para a fragilidade de suas asas. Entretanto ele “avoa” devido à velocidade com que suas frágeis asas batem, associada à carapuça exterior que se abre quando ele alça voo, e que funcionam como uma espécie de paraquedas que ajudam a sustenta-lo no ar. Penso que é uma metáfora perfeita para o sucesso dos mandatos Lula: a velocidade de sua política de transferência de renda, associada à sustentabilidade de sua política internacional, quando, entre outras coisas, acumulou as maiores reservas protetoras da economia do país que, agora, o governo Bolsonaro/Guedes se prepara para liquidar.
2 - A frase é atribuída a De Gaulle, mas não há testemunho de que ele a tenha dito. Por outro lado, há quem atribua a frase ao embaixador brasileiro em Paris, Carlos Alvez de Souza, que a teria dito ao jornalista Luiz Edgar de Andrade, assim mesmo, em francês, segundo ele mesmo confessaria em suas memórias, como uma brincadeira, devido a uma sátira musical sobre o incidente. A frase acabou sendo atribuída ao presidente francês...
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