Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
A corrida mundial por uma vacina contra a Covid-19 se desenvolve em dezenas de frentes. Informações chegam a falar em até 200 projetos em todo o mundo, revelando o que a humanidade tem de melhor: inteligência, criatividade, empatia, solidariedade e engenho. Há variedade de tecnologia, de escolha do caminho da imunidade, da forma de produção, dos diferentes níveis de testagem, chegando alguns trabalhos à fase final de experimentos com humanos. Segurança, eficácia e viabilidade definem caminhos que parecem mostrar uma humanidade irmanada no mesmo propósito, tendo como fundamento a melhor ciência criada pelo homem em todos os tempos.
No entanto, se há evidência do avanço em direção ao resultado da vacina, começam a ficar claros alguns sinais de paralisia na dimensão ética. Estados Unidos à frente, mas também países como França, Alemanha, Itália e Inglaterra já foram às compras no mercado e reservaram para si os primeiros lotes de alguma das vacinas mais promissoras. A Rússia também anunciou que começa a imunizar sua população ainda este ano. São atitudes que realimentam a situação que, de certa maneira, está na origem da dimensão que tomou a epidemia: a incapacidade de pensar na humanidade como um todo.
A diferença entre projetos que têm por trás empresas interessadas no mercado criado pela doença e institutos voltados para o maior desafio posto para a atual geração de cientistas ecoa a postura dos países e de seus governos. Enquanto alguns líderes pensam em garantir o produto apenas para sua população (no pior estilo “America first”), outros promovem um esforço que se volta para a humanidade, independentemente dos lucros possibilitados pela crise sanitária. Não se trata de ingenuidade humanitária versus realismo econômico, mas de uma direção moral que aponta para o futuro das relações internacionais. A diferença entre China e EUA, nesse momento, é paradigmática.
Se há uma certeza decorrente da pandemia é que se trata de um problema mundial. Todas as ações pontuais e localizadas, ainda que pareçam eficazes no primeiro momento, contribuem apenas para adiar a solução real do problema. Como o contágio não respeitou fronteiras de qualquer natureza, não há possibilidade de que a estratégia de imunização desconheça essa realidade transnacional. Dessa forma, o planejamento das campanhas de vacinação deverá seguir parâmetros técnicos rigorosos, com comando mundial, sob o risco de não conferir imunidade sustentável. Um desafio que confronta a lógica do mercado e novo nacionalismo bélico e preconceituoso.
Quem deverá receber a vacina em primeiro lugar de modo a salvar o maior número possível de vidas? Como garantir que o critério atenda a interesses da humanidade de não dos indivíduos ou países mais ricos? De que maneira o retorno à normalidade dependerá de uma visão holística e responsável do uso dos insumos produzidos pelo engenho humano? Como garantir que a reprodução das condições de disseminação do vírus não se repita, sobretudo aquelas referentes ao combate às desigualdades, à destruição do meio ambiente e das carências produzidas socialmente? Qual o papel das organizações multilaterais na pandemia de irascibilidade que já deu a largada no mundo?
Há uma perversidade inscrita na lógica aparentemente neutra da produção e distribuição de vacinas, que aponta para a estrutura do capitalismo contemporâneo. O fato de existir um remédio eficaz não significa que sua utilização seguirá a direção racional do melhor aproveitamento, em nome da maioria da população. O que a ciência cria, o capitalismo se apropria e destrói seu potencial civilizador. No Brasil, hoje, vemos se repetir esse mesmo jogo em áreas como o saneamento básico, a educação e até as políticas de destruição de renda, sem falar na saúde pública. Nesses casos, ficou patente com a pandemia que a solução já existia, o que faltava era considerá-la um bem coletivo, e não um valor de mercado.
O novo marco do saneamento básico mostra que já existiam soluções técnicas e econômicas para saldar a aviltante dívida com o setor, já que nada precisou ser criado além da consagração da entrega de uma oportunidade de negócios ao mercado privado. O que é apenas a confirmação do descaso histórico com obras que não eram traduzíveis no comércio dos votos e nos serviços pagos à iniciativa privada. A “vacina” do saneamento básico já existia, mas era distribuída apenas a parte da população. Na hora de cobrar a conta, o cidadão desassistido é traduzido em consumidor potencial, se quiser, literalmente, sair da vala comum.
No caso da educação, a aprovação do Fundeb, mesmo com a tentativa de catimba de alguns setores, é mais um exemplo do adiamento do uso de recursos públicos para as finalidades mais importantes. Não se trata de alocação de novos recursos ou da invenção de um novo caminho para financiar a educação básica, mas da constitucionalização de investimentos necessários para a manutenção e aprimoramento do setor.
Sempre foi muito fácil jogar para a carência da qualidade da educação brasileira parte significativa dos nossos problemas. Mas um sentimento de vitória tomou conta do setor com a simples destinação de recursos mínimos, e ainda assim escalonados em muitos anos. Enquanto isso, a “vacina” da educação de qualidade já estava disponível nas meritocráticas escolas privadas, sustentadas mercadologicamente pela demonização do ensino público.
Nunca precisamos tanto de cientistas. No entanto, somos também testemunhos de um platô de egoísmo que pode deturpar o horizonte e fazer valer cada vez mais a lei do mais forte, do mais rico, do mais poderoso.
Em relação às políticas distributivas, foi necessário um ambiente de pauperização extrema gerado pela pandemia para que a renda mínima fosse considerada alternativa real, viável e necessária. Todas as condições para a implantação de projetos dessa natureza, a começar pelo Bolsa Família, sempre mostraram sua eficácia, inclusive econômica, como intervenção retificadora em contextos de desigualdade estrutural, como a brasileira.
Mais uma vez, a “vacina” criada pela engenharia genética da economia de mercado beneficiava quem menos precisava, como as grandes empresas e instituições financeiras por meio de desonerações e juros, mesmo enfraquecendo com isso o próprio mercado do qual depende seus negócios. O discurso da renda básica de cidadania, que foi por muito tempo objeto de escárnio, hoje é retomado como intervenção eficaz.
Vivemos uma retomada momentânea dos valores iluministas da ciência. Nunca precisamos tanto de cientistas. Um cenário que só existe em função de propósitos humanitários que vão além dos interesses particulares, quando o horizonte posto é o da sobrevivência da própria humanidade e de tudo o que consideramos até hoje uma vida digna de ser vivida. No entanto, na mesma quadra de tempo, somos testemunhos de um platô de egoísmo que pode deturpar o horizonte e fazer valer cada vez mais a lei do mais forte, do mais rico, do mais poderoso.
O limite da ciência não é a ignorância, mas a estupidez. Nesse contexto, talvez a política seja a única saída de que dispomos hoje. Ela representa uma criação que começa com o egoísmo e tem como maior desafio conter esse demônio indestrutível da nossa natureza.
A corrida mundial por uma vacina contra a Covid-19 se desenvolve em dezenas de frentes. Informações chegam a falar em até 200 projetos em todo o mundo, revelando o que a humanidade tem de melhor: inteligência, criatividade, empatia, solidariedade e engenho. Há variedade de tecnologia, de escolha do caminho da imunidade, da forma de produção, dos diferentes níveis de testagem, chegando alguns trabalhos à fase final de experimentos com humanos. Segurança, eficácia e viabilidade definem caminhos que parecem mostrar uma humanidade irmanada no mesmo propósito, tendo como fundamento a melhor ciência criada pelo homem em todos os tempos.
No entanto, se há evidência do avanço em direção ao resultado da vacina, começam a ficar claros alguns sinais de paralisia na dimensão ética. Estados Unidos à frente, mas também países como França, Alemanha, Itália e Inglaterra já foram às compras no mercado e reservaram para si os primeiros lotes de alguma das vacinas mais promissoras. A Rússia também anunciou que começa a imunizar sua população ainda este ano. São atitudes que realimentam a situação que, de certa maneira, está na origem da dimensão que tomou a epidemia: a incapacidade de pensar na humanidade como um todo.
A diferença entre projetos que têm por trás empresas interessadas no mercado criado pela doença e institutos voltados para o maior desafio posto para a atual geração de cientistas ecoa a postura dos países e de seus governos. Enquanto alguns líderes pensam em garantir o produto apenas para sua população (no pior estilo “America first”), outros promovem um esforço que se volta para a humanidade, independentemente dos lucros possibilitados pela crise sanitária. Não se trata de ingenuidade humanitária versus realismo econômico, mas de uma direção moral que aponta para o futuro das relações internacionais. A diferença entre China e EUA, nesse momento, é paradigmática.
Se há uma certeza decorrente da pandemia é que se trata de um problema mundial. Todas as ações pontuais e localizadas, ainda que pareçam eficazes no primeiro momento, contribuem apenas para adiar a solução real do problema. Como o contágio não respeitou fronteiras de qualquer natureza, não há possibilidade de que a estratégia de imunização desconheça essa realidade transnacional. Dessa forma, o planejamento das campanhas de vacinação deverá seguir parâmetros técnicos rigorosos, com comando mundial, sob o risco de não conferir imunidade sustentável. Um desafio que confronta a lógica do mercado e novo nacionalismo bélico e preconceituoso.
Quem deverá receber a vacina em primeiro lugar de modo a salvar o maior número possível de vidas? Como garantir que o critério atenda a interesses da humanidade de não dos indivíduos ou países mais ricos? De que maneira o retorno à normalidade dependerá de uma visão holística e responsável do uso dos insumos produzidos pelo engenho humano? Como garantir que a reprodução das condições de disseminação do vírus não se repita, sobretudo aquelas referentes ao combate às desigualdades, à destruição do meio ambiente e das carências produzidas socialmente? Qual o papel das organizações multilaterais na pandemia de irascibilidade que já deu a largada no mundo?
Há uma perversidade inscrita na lógica aparentemente neutra da produção e distribuição de vacinas, que aponta para a estrutura do capitalismo contemporâneo. O fato de existir um remédio eficaz não significa que sua utilização seguirá a direção racional do melhor aproveitamento, em nome da maioria da população. O que a ciência cria, o capitalismo se apropria e destrói seu potencial civilizador. No Brasil, hoje, vemos se repetir esse mesmo jogo em áreas como o saneamento básico, a educação e até as políticas de destruição de renda, sem falar na saúde pública. Nesses casos, ficou patente com a pandemia que a solução já existia, o que faltava era considerá-la um bem coletivo, e não um valor de mercado.
O novo marco do saneamento básico mostra que já existiam soluções técnicas e econômicas para saldar a aviltante dívida com o setor, já que nada precisou ser criado além da consagração da entrega de uma oportunidade de negócios ao mercado privado. O que é apenas a confirmação do descaso histórico com obras que não eram traduzíveis no comércio dos votos e nos serviços pagos à iniciativa privada. A “vacina” do saneamento básico já existia, mas era distribuída apenas a parte da população. Na hora de cobrar a conta, o cidadão desassistido é traduzido em consumidor potencial, se quiser, literalmente, sair da vala comum.
No caso da educação, a aprovação do Fundeb, mesmo com a tentativa de catimba de alguns setores, é mais um exemplo do adiamento do uso de recursos públicos para as finalidades mais importantes. Não se trata de alocação de novos recursos ou da invenção de um novo caminho para financiar a educação básica, mas da constitucionalização de investimentos necessários para a manutenção e aprimoramento do setor.
Sempre foi muito fácil jogar para a carência da qualidade da educação brasileira parte significativa dos nossos problemas. Mas um sentimento de vitória tomou conta do setor com a simples destinação de recursos mínimos, e ainda assim escalonados em muitos anos. Enquanto isso, a “vacina” da educação de qualidade já estava disponível nas meritocráticas escolas privadas, sustentadas mercadologicamente pela demonização do ensino público.
Nunca precisamos tanto de cientistas. No entanto, somos também testemunhos de um platô de egoísmo que pode deturpar o horizonte e fazer valer cada vez mais a lei do mais forte, do mais rico, do mais poderoso.
Em relação às políticas distributivas, foi necessário um ambiente de pauperização extrema gerado pela pandemia para que a renda mínima fosse considerada alternativa real, viável e necessária. Todas as condições para a implantação de projetos dessa natureza, a começar pelo Bolsa Família, sempre mostraram sua eficácia, inclusive econômica, como intervenção retificadora em contextos de desigualdade estrutural, como a brasileira.
Mais uma vez, a “vacina” criada pela engenharia genética da economia de mercado beneficiava quem menos precisava, como as grandes empresas e instituições financeiras por meio de desonerações e juros, mesmo enfraquecendo com isso o próprio mercado do qual depende seus negócios. O discurso da renda básica de cidadania, que foi por muito tempo objeto de escárnio, hoje é retomado como intervenção eficaz.
Vivemos uma retomada momentânea dos valores iluministas da ciência. Nunca precisamos tanto de cientistas. Um cenário que só existe em função de propósitos humanitários que vão além dos interesses particulares, quando o horizonte posto é o da sobrevivência da própria humanidade e de tudo o que consideramos até hoje uma vida digna de ser vivida. No entanto, na mesma quadra de tempo, somos testemunhos de um platô de egoísmo que pode deturpar o horizonte e fazer valer cada vez mais a lei do mais forte, do mais rico, do mais poderoso.
O limite da ciência não é a ignorância, mas a estupidez. Nesse contexto, talvez a política seja a única saída de que dispomos hoje. Ela representa uma criação que começa com o egoísmo e tem como maior desafio conter esse demônio indestrutível da nossa natureza.
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