sexta-feira, 31 de julho de 2020

Orgulho dos próprios defeitos

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

Em um texto que tem sido reproduzido em todo o mundo, o historiador Yuval Noah Harari defende que a única forma de combater a pandemia é com a cooperação internacional. De acordo com ele, baseado em conhecimento histórico de outros flagelos do passado e nas mais recentes pesquisas no campo das ciências da vida, basta um caso, em uma única localidade, para que o perigo para toda a humanidade permaneça ativo. Arrogar prioridade, seja pelo poder ou pelo dinheiro, não é garantia de nada.

Comprar, por exemplo, todas as doses de vacina para sua população e deixar que outros países não possam participar de um enfrentamento planetário, privados da imunização, é apenas uma maneira de adiar a próxima onda de contaminação, que fatalmente chegará como um rebote a todos os cantos do mundo. “Os limites que separam essa esfera viral do mundo humano passam por dentro do corpo de cada ser humano. Se um vírus perigoso consegue penetrar essa fronteira em algum ponto do globo, toda a espécie humana corre perigo”, alerta.

No artigo “Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade”, o historiador estabelece que três pontos são fundamentais nesse momento. No primeiro estágio, os indivíduos devem confiar na ciência. No segundo tempo, quando as pessoas já se definem como integrantes de uma sociedade, o cidadão precisa confiar na capacidade do poder público em liderar o combate à doença. Por fim, no nível das nações, os países precisam confiar uns nos outros.

Há como uma escala de valores que se sobrepõem e colocam em evidência a necessidade da humildade como fundamento da sobrevivência da espécie. A raça humana está vivendo mais um teste radical e todas as saídas apontam para o exercício paciente da confiança: no conhecimento, no outro, na cooperação internacional. A análise de Harari segue por esse caminho até propor a organização e financiamento de uma resposta global coordenada. A desunião e a desconfiança serão os sinais da vitória do vírus.

O que já era um diagnóstico difícil para todos, se torna quase uma ameaça para os brasileiros. Por aqui, a pandemia tem mostrado como estamos falhando de forma tremenda nas três dimensões. Vivemos uma quadra de desprezo pela ciência; de irresponsabilidade com as instituições e com as tarefas públicas por parte do presidente; e de alinhamento com o que há de pior em termos de relações internacionais. O Brasil, sob Bolsonaro, se tornou um país ignorante, incompetente e irrelevante.

O mais grave, no entanto, não é o fato de atravessar um triste descaminho na condução do combate à epidemia, mas a inversão completa na escala de méritos, tornando os nossos defeitos em motivo de orgulho. Em cada uma das dimensões que cobram responsabilidade pessoal, pública e internacional, o país exibe como um troféu sua mais absoluta carência de valores. Os defeitos passaram ser motivo de vaidade: há uma arrogância da burrice, uma empáfia da insensibilidade, um prazer do isolamento.

No campo do saber, a melhor ciência se tornou propaganda de drogas sem comprovação, amparado no desejo genocida de passar os interesses da economia acima da primazia da vida, sobretudo dos mais fragilizados. A postura do governo tem sido sempre a de descartar os protocolos, inclusive os emitidos pela Organização Mundial de Saúde, naturalizando as mortes como baixas de guerra, em que os mortos são descritos como rebotalho, imprestáveis, velhos e doentes a pesar nas costas dos “cidadãos de bem”.

Na área das instituições, o abandono da tarefa de liderar um plano nacional consequente e a criação de uma postura de divisão e enfrentamento tem sua tradução cristalina num Ministério da Saúde sem ministro e sem responsabilidade com suas atribuições. Na educação, evidencia-se uma concepção de conhecimento que despreza a reflexão e o convívio em favor de uma prática de treinamento de habilidades para o mercado. Educação à distância, nesse contexto, se torna distância da verdadeira educação.

Por fim, no campo das relações com outras nações, o Brasil se submete a parâmetros que além de deixá-lo ao largo das grandes pesquisas mundiais – salvo apenas pelo empenhos dos institutos que enfrentam a mais destrutiva política já desfechada contra a ciência e a universidade –, tem se convertido em um tiro no pé nas relações comerciais. O alinhamento com os Estados Unidos, em posição extremamente submissa e desvantajosa, isola ainda o país de sua liderança regional, que pode ser fundamental no próximo estágio de combate da pandemia.

O historiador israelense pode ter acertado no atacado dos problemas que desafiam o mundo. No varejo triste de nossa realidade brasileira, no entanto, ele foi excessivamente tímido. Estamos piores que o resto do planeta, que busca superar suas limitações nas áreas por ele apontadas. Temos, entretanto, um governo que parece ter orgulho de sua pequenez moral. O mais triste é saber que muita gente pensa dessa forma. A vaidade de nossa estupidez é o espelho que a pandemia aponta para nossa face todos os dias.

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