Por Jair de Souza
Em novembro, devem ser realizadas as eleições que indicarão quem vai ser o presidente dos Estados Unidos da América nos próximos quatro anos. Estamos tão acostumados a escutar no rádio, assistir pela televisão ou a ler em jornais e revistas que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo que somos levados a crer que isto é uma realidade indiscutível.
Esta história de apresentar a imagem dos Estados Unidos como o que de mais belo há em termos de sociedades humanas vem de longa data. Basta relembrar que Alexis Tocqueville e os principais expoentes do liberalismo sempre se referiam ao Estados Unidos como o país modelo da liberdade. A chamada Revolução Americana, que culminou com sua independência e desvinculação do Império Britânico, foi saudada por todos os adeptos do pensamento liberal como uma grande vitória dos ideais da liberdade.
Que a base da economia estadunidense de então estivesse sustentada no trabalho escravo nunca foi um fator que incomodasse os admiradores dessa tal liberdade. Que milhões de homens e mulheres de pele negra fossem equiparados ao gado e tratados como objetos de compra e venda para o usufruto de seus proprietários não chegou a ser motivo suficiente para produzir questionamentos nesses intelectuais filo-americanistas. Talvez tenha sido assim porque para os tais liberais a única liberdade que realmente deve ser levada em conta é aquela de os proprietários poderem dispor de seus bens a seu bel-prazer, mesmo que esses bens sejam seres humanos.
Essa forte identificação também não se viu impactada quando da introdução do regime de supremacia branca nos estados do sul pouco tempo depois de terminada a guerra civil de secessão que tinha posto fim à escravidão. Os liberais admiradores da liberdade prevalecente nos Estados Unidos nunca se preocuparam com o que esse modelo de discriminação racial significava de fato para os milhões de negros que eram considerados e tratados como “sub-homens”, os undermen, expressão em inglês que inspirou o famoso termo untermenschen do nazismo hitleriano. Seria importante acrescentar que, além de servir como fonte de inspiração da ideologia racial nazista, o supremacismo branco dos Estados Unidos foi também o farol que orientou a criação do regime de apartheid na África do Sul.
E não custa salientar que o extermínio das populações indígenas por parte dos colonos brancos europeus para a ocupação e apropriação de suas terras nunca afetou as sensibilidades dos admiradores dos Estados Unidos.
Levando-se em conta os antecedentes da benevolência liberal citados acima, não vai ser muito difícil entender como os Estados Unidos passaram também a ser considerados o exemplo mais próximo da perfeição no tocante ao exercício da democracia.
Na atualidade, é muito frequente ver os Estados Unidos tomando medidas para inviabilizar ou depor governantes de outros países, os quais são tachados de ilegítimos e que não representariam de verdade a vontade da maioria de seu povo. Mas, se aceitarmos que uma das características essenciais de uma democracia é a maneira como seus dirigentes são escolhidos e aplicarmos este mesmo critério com rigor para a análise do processo eleitoral estadunidense, vamos ser obrigados a admitir que, neste quesito, os Estados Unidos deveriam ser enquadrados no rol dos países não democráticos.
Embora, a existência de vários partidos seja formalmente permitida, na prática, somente podem chegar à presidência da nação aqueles que recebem o apoio das grandes corporações econômicas estadunidenses. Isto faz com que apenas dois estejam em condições efetivas de disputar o comando administrativo do país. Dois partidos de características básicas muito semelhantes e representativos dos mesmos interesses de classe, o Partido Republicano e o Partido Democrata,.
Quem poderia aceitar como democrático um processo eleitoral que desse a vitória ao candidato menos votado pela população? Pode parecer uma pergunta fora de propósito, mas faz muito sentido em relação aos Estados Unidos. De acordo com as leis eleitorais vigentes por lá, é possível que o candidato vitorioso seja aquele que tenha obtido menos votos dos eleitores do que seu concorrente.
Desde sua fundação como República, já houve vários presidentes eleitos apesar de terem tido a minoria dos votos da população. Os dois casos mais recentes ocorreram na eleição de 2000, quando o republicano George W. Bush venceu o democrata Al Gore, e na de 2016, quando o republicano Donald Trump derrotou a democrata Hillary Clinton. Isto se deve ao fato de que, nos EUA, os presidentes não são eleitos por via direta, e sim através de um Colégio Eleitoral. Ou seja, nos EUA as eleições presidenciais são indiretas.
Porém, o que torna as eleições presidenciais estadunidenses marcadamente antidemocráticas não é tanto sua forma indireta, e sim a maneira como se dá a composição do Colégio Eleitoral. Vamos dar uma pincelada sobre o dito cujo para melhor entender quais são suas principais aberrações.
Em lugar de votar diretamente no presidente, os votos dos eleitores servirão para formar um Colégio Eleitoral, o qual será composto por 538 delegados, resultantes da soma dos 100 senadores e dos 435 deputados eleitos pelos estados, mais 3 representantes de Washington D.C. (a capital da União). O número de delegados por estado é uma questão altamente criticável e não espelha para nada uma verdadeira representação do número de eleitores existentes. No final, aquele que conquistar 270 delegados do total vai se sagrar vencedor. Até aí, para o bem ou para o mal, tudo se assemelha muito à escolha dos dirigentes nos modelos parlamentaristas da Europa e de vários outros lugares.
O que torna o processo dos Estados Unidos espantoso é que o candidato presidencial que obtém a maioria dos votos de um estado carrega para o Colégio Eleitoral o número total dos delegados do referido estado. Ou seja, sem importar se o candidato venceu por 99,9% a 0,1% ou por 50,1% a 49,9% dos votos, ele vai levar o número total dos delegados previstos para tal estado.
Esta monstruosidade antidemocrática permitiria que, em tese, para vencer a disputa presidencial, um candidato necessitaria tão somente garantir sua vitória por um percentual mínimo nos 11 estados com maior número de delegados, mesmo que perca fragorosamente nos demais 39 estados.
Além deste disparate relativo à maneira como se determinam os delegados convencionais, outro fator que desvirtua a democracia se deve ao pouco interesse em facilitar o voto dos setores populares. Diferentemente do que ocorre na maioria dos países que se dizem democráticos, os dias de eleição nos Estados Unidos não são dias feriados. Os trabalhadores não são dispensados do trabalho para votar e não têm sua remuneração garantida caso se ausentem para participar da votação.
Juntando-se a isto o fato de que o voto não é obrigatório, não é difícil entender porque muita gente deixa de participar, especialmente gente das classes trabalhadoras, uma vez que os mais ricos não costumam ter dificuldades para votar e quase sempre sabem que seu voto é importante para garantir a defesa de seus interesses. Não é à toa que os índices de participação eleitoral nos Estados Unidos ficam geralmente muito abaixo do que ocorre em outros países, raramente ultrapassando os 50%.
Em resumo, podemos concluir que, a despeito do que dizem seus bajuladores, os Estados Unidos estão longe de servir como símbolo do que deveria ser uma democracia. O seu processo eleitoral, por sua vez, pode mesmo ser considerado essencialmente antidemocrático, incapaz de garantir que a vontade da maioria prevaleça.
* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
Em novembro, devem ser realizadas as eleições que indicarão quem vai ser o presidente dos Estados Unidos da América nos próximos quatro anos. Estamos tão acostumados a escutar no rádio, assistir pela televisão ou a ler em jornais e revistas que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo que somos levados a crer que isto é uma realidade indiscutível.
Esta história de apresentar a imagem dos Estados Unidos como o que de mais belo há em termos de sociedades humanas vem de longa data. Basta relembrar que Alexis Tocqueville e os principais expoentes do liberalismo sempre se referiam ao Estados Unidos como o país modelo da liberdade. A chamada Revolução Americana, que culminou com sua independência e desvinculação do Império Britânico, foi saudada por todos os adeptos do pensamento liberal como uma grande vitória dos ideais da liberdade.
Que a base da economia estadunidense de então estivesse sustentada no trabalho escravo nunca foi um fator que incomodasse os admiradores dessa tal liberdade. Que milhões de homens e mulheres de pele negra fossem equiparados ao gado e tratados como objetos de compra e venda para o usufruto de seus proprietários não chegou a ser motivo suficiente para produzir questionamentos nesses intelectuais filo-americanistas. Talvez tenha sido assim porque para os tais liberais a única liberdade que realmente deve ser levada em conta é aquela de os proprietários poderem dispor de seus bens a seu bel-prazer, mesmo que esses bens sejam seres humanos.
Essa forte identificação também não se viu impactada quando da introdução do regime de supremacia branca nos estados do sul pouco tempo depois de terminada a guerra civil de secessão que tinha posto fim à escravidão. Os liberais admiradores da liberdade prevalecente nos Estados Unidos nunca se preocuparam com o que esse modelo de discriminação racial significava de fato para os milhões de negros que eram considerados e tratados como “sub-homens”, os undermen, expressão em inglês que inspirou o famoso termo untermenschen do nazismo hitleriano. Seria importante acrescentar que, além de servir como fonte de inspiração da ideologia racial nazista, o supremacismo branco dos Estados Unidos foi também o farol que orientou a criação do regime de apartheid na África do Sul.
E não custa salientar que o extermínio das populações indígenas por parte dos colonos brancos europeus para a ocupação e apropriação de suas terras nunca afetou as sensibilidades dos admiradores dos Estados Unidos.
Levando-se em conta os antecedentes da benevolência liberal citados acima, não vai ser muito difícil entender como os Estados Unidos passaram também a ser considerados o exemplo mais próximo da perfeição no tocante ao exercício da democracia.
Na atualidade, é muito frequente ver os Estados Unidos tomando medidas para inviabilizar ou depor governantes de outros países, os quais são tachados de ilegítimos e que não representariam de verdade a vontade da maioria de seu povo. Mas, se aceitarmos que uma das características essenciais de uma democracia é a maneira como seus dirigentes são escolhidos e aplicarmos este mesmo critério com rigor para a análise do processo eleitoral estadunidense, vamos ser obrigados a admitir que, neste quesito, os Estados Unidos deveriam ser enquadrados no rol dos países não democráticos.
Embora, a existência de vários partidos seja formalmente permitida, na prática, somente podem chegar à presidência da nação aqueles que recebem o apoio das grandes corporações econômicas estadunidenses. Isto faz com que apenas dois estejam em condições efetivas de disputar o comando administrativo do país. Dois partidos de características básicas muito semelhantes e representativos dos mesmos interesses de classe, o Partido Republicano e o Partido Democrata,.
Quem poderia aceitar como democrático um processo eleitoral que desse a vitória ao candidato menos votado pela população? Pode parecer uma pergunta fora de propósito, mas faz muito sentido em relação aos Estados Unidos. De acordo com as leis eleitorais vigentes por lá, é possível que o candidato vitorioso seja aquele que tenha obtido menos votos dos eleitores do que seu concorrente.
Desde sua fundação como República, já houve vários presidentes eleitos apesar de terem tido a minoria dos votos da população. Os dois casos mais recentes ocorreram na eleição de 2000, quando o republicano George W. Bush venceu o democrata Al Gore, e na de 2016, quando o republicano Donald Trump derrotou a democrata Hillary Clinton. Isto se deve ao fato de que, nos EUA, os presidentes não são eleitos por via direta, e sim através de um Colégio Eleitoral. Ou seja, nos EUA as eleições presidenciais são indiretas.
Porém, o que torna as eleições presidenciais estadunidenses marcadamente antidemocráticas não é tanto sua forma indireta, e sim a maneira como se dá a composição do Colégio Eleitoral. Vamos dar uma pincelada sobre o dito cujo para melhor entender quais são suas principais aberrações.
Em lugar de votar diretamente no presidente, os votos dos eleitores servirão para formar um Colégio Eleitoral, o qual será composto por 538 delegados, resultantes da soma dos 100 senadores e dos 435 deputados eleitos pelos estados, mais 3 representantes de Washington D.C. (a capital da União). O número de delegados por estado é uma questão altamente criticável e não espelha para nada uma verdadeira representação do número de eleitores existentes. No final, aquele que conquistar 270 delegados do total vai se sagrar vencedor. Até aí, para o bem ou para o mal, tudo se assemelha muito à escolha dos dirigentes nos modelos parlamentaristas da Europa e de vários outros lugares.
O que torna o processo dos Estados Unidos espantoso é que o candidato presidencial que obtém a maioria dos votos de um estado carrega para o Colégio Eleitoral o número total dos delegados do referido estado. Ou seja, sem importar se o candidato venceu por 99,9% a 0,1% ou por 50,1% a 49,9% dos votos, ele vai levar o número total dos delegados previstos para tal estado.
Esta monstruosidade antidemocrática permitiria que, em tese, para vencer a disputa presidencial, um candidato necessitaria tão somente garantir sua vitória por um percentual mínimo nos 11 estados com maior número de delegados, mesmo que perca fragorosamente nos demais 39 estados.
Além deste disparate relativo à maneira como se determinam os delegados convencionais, outro fator que desvirtua a democracia se deve ao pouco interesse em facilitar o voto dos setores populares. Diferentemente do que ocorre na maioria dos países que se dizem democráticos, os dias de eleição nos Estados Unidos não são dias feriados. Os trabalhadores não são dispensados do trabalho para votar e não têm sua remuneração garantida caso se ausentem para participar da votação.
Juntando-se a isto o fato de que o voto não é obrigatório, não é difícil entender porque muita gente deixa de participar, especialmente gente das classes trabalhadoras, uma vez que os mais ricos não costumam ter dificuldades para votar e quase sempre sabem que seu voto é importante para garantir a defesa de seus interesses. Não é à toa que os índices de participação eleitoral nos Estados Unidos ficam geralmente muito abaixo do que ocorre em outros países, raramente ultrapassando os 50%.
Em resumo, podemos concluir que, a despeito do que dizem seus bajuladores, os Estados Unidos estão longe de servir como símbolo do que deveria ser uma democracia. O seu processo eleitoral, por sua vez, pode mesmo ser considerado essencialmente antidemocrático, incapaz de garantir que a vontade da maioria prevaleça.
* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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