segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Jogos de espelhos da vida digital

Por Léa Maria Aarão Reis, no site Carta Maior:

Jan Komasa, de 38 anos, diretor do filme Rede de ódio (The hater: título para distribuição internacional), sem dúvida honra a tradição do cinema do seu país, um dos melhores da Europa.

Berço de cineastas históricos como Wajda, Munk, Kieslowski, Jerzy Kawalerowicz, apenas alguns entre dezenas de outros igualmente brilhantes, essa seleta estirpe de diretores abriga também duas grandes estrelas extraviadas do leste europeu que encontraram a fama e seu lugar na posteridade no estrangeiro: o saudoso Billy Wilder, das clássicas comédias rascantes americanas e Roman Polanski, o polêmico autor de O oficial e o espião, premio Cesar deste ano, recebido poucos dias antes do anúncio oficial da pandemia.

Rede de ódio é um filme imperdível.

É produzido pela Netflix e está no catálogo da plataforma este mês, no momento exato em que começa a ser investigado e desvendado, na Justiça do Brasil, o comércio, financiamento e tráfico tenebroso de notícias falsas, desinformação, espionagem e a rede de mentiras, calúnias e assassinatos de reputação que corroem atualmente o ambiente político nacional.

E não apenas no Brasil; trata-se de uma crise que assola o mundo, perturba profundamente a vida digital das populações e chega a adulterar o resultado de eleições como ocorreu aqui, nas presidenciais de 2018.

Escrito pelo roteirista Mateusz Pacewicz, da mesma geração de Komasa, um outro sucesso cinematográfico da dupla de artistas poloneses também é encontrado em cartaz no streaming atualmente.

Chama-se Corpus Christi*, foi indicado para Oscar de filme estrangeiro deste ano e premiado no Festival de Tribeca.

Mas não se engane quem se interessar pelo tema narrado em The hater (aquele que odeia) esperando encontrar um filme híbrido de mais documentário e menos ficção.

Embora fincado num tema atual central, mundo afora, é, antes de mais nada, o relato dramático e com algum suspense do que pode ocorrer no desenrolar da luta de classes quando a refrega sai do controle (digital) e se transforma em tragédia (real).

Ou seja: quando a discriminação dos indivíduos mais pobres, de classes populares e os ''menos favorecidas'' - como cientistas sociais gostam de rotulá-las -, adquire laivos de humilhação e de crueldade entrevistos sob o véu da hipocrisia e da compra de boa consciência das classes médias altas e privilegiadas. A tal direita cheirosa.

A história de como uma rede de ódio opera - ao modo do gabinete de ódio instalado no terceiro andar do Palácio do Planalto, em Brasília - é esta: um bolsista, Tomek, estudante universitário pobre, de caráter duvidoso, cuja educação é custeada por uma família benevolente, próspera e sofisticada, é expulso do curso de Direito por apresentar um trabalho roubado do autor: seu texto é um plágio.

Para impressionar a filha dessa família progressista, de benevolentes, Tomek vai trabalhar numa agência de relações públicas sem escrúpulos que opera on line.

Lá, ele logo vê reconhecido o seu talento para os jogos políticos sujos e na operação para eleger o novo prefeito de Varsóvia, um amigo da família dos Krasucki.

Com o tempo, Tomasz começa a usar suas habilidades recém-adquiridas para perseguir, assediar e trolar antagonistas.

Tomek entra na campanha de desmoralização do candidato amigo de Zofia Krasucka que é encomendada e financiada por um cliente-fantasma, neo-fascista milionário.

Sente-se poderoso nessa posição e se fortalece com a energia do ódio e do ressentimento aflorar e conduzi-lo.

O elenco do filme é exato. O jovem ator Maciej Musialowski no papel-título do hater, perturbador, dúbio, denso.

A mãe Zofia Krasucka, a benevolente, é brilhante. Todos, no seu lugar, honrando, também eles, a tradição de excelentes atores do cinema polonês, desde o mítico Zbigniew Cybulski, morto precocemente, aos dias de hoje.

O hábil roteiro de Rede de ódio é excepcional. Funciona como um jogo de espelhos cujas peças vêm de várias origens. Inicialmente, vem de uma história que não é contada no filme mas deixa o espectador perturbado e fantasiando.

O que se passava durante as férias em que a família de alta classe média alugava a casa simples na qual Tomek, criança e, depois, adolescente, morava com seus pais, no campo, nos arredores da cidade?

Como se davam essas relações dos dois núcleos familiares de classes tão distintas durante essas temporadas?

Foi a desconfiança pelos seus protetores, que já nutria antes, e o interesse na jovem Gabi, a filha deles, que o levam a espioná-los nas gravações do seu celular deixado escondido na sala, quando se despede, após a visita aos Krasucki e ao sair da casa depois do jantar?

A vingança de Tomek, acionada a frio, vem da rejeição que sentia e do mal estar que o acompanhava nas relações com esses personagens?

Seu objetivo era o de chegar a controlar a desenvoltura ''social-democrata'' deles e minar o seu esnobismo - intelectual inclusive?

E o que ocorreria se nós deixássemos um celular gravando, escondido atrás das almofadas do sofá, quando saímos da casa de amigos, depois de uma amável noitada, de um jantar acolhedor? Seria uma traição. Uma sordidez. Mas o filme pergunta.

E o que nossos amigos estariam comentando sobre nós, enquanto lavam os copos? Você quer mesmo saber? Não é preferível estancar no ponto em que se encontra, o uso civilizado da internet?

E quais as semelhanças desse roteiro de Rede de ódio com o que acontece hoje, aqui e no mundo? E na Polônia, um país explìcitamente ultra conservador governado por protofascistas?

Menos de um mês após o término das filmagens de Komasa, o prefeito liberal da cidade de Gdansk, Pawek Adamowicz, frequente alvo da perseguição de inimigos on line, foi esfaqueado até a morte durante um evento transmitido ao vivo pela TV.

* Corpus Christi está no NOW.

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