Por Leonardo Fontes, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
“No início da pandemia, aqui foi tudo meio incerto, porque em casa só eu estou trabalhando, em um estágio que paga muito pouco, mãe, padrasto e irmão desempregados, mesmo antes da pandemia. Assim que saiu a notícia de corte nos contratos, entrei em desespero porque até então era a única renda, anunciaram os auxílios e ainda assim foi a saga pra que minha mãe e padrasto conseguissem a liberação, meu padrasto conseguiu na semana passada inclusive. […] Minha avó está com muito medo de morrer sozinha, liga toda madrugada e chora.”
Camila, 22 anos, é moradora do bairro do Jardim Ângela e está no último semestre do curso de licenciatura em Artes em uma universidade particular de São Paulo, beneficiária de uma bolsa do ProUni. Sua fala resume alguns dos problemas que têm sido enfrentados por moradores das periferias de São Paulo e de outras cidades do país diante da pandemia de Covid-19 e da falta de ação por parte das diferentes esferas de governo.
Desemprego, desalento, fome, falta de informação, dificuldade de acesso aos direitos sociais, precariedade na saúde e na educação, a lista é infindável. Com a pandemia de Covid-19, as desigualdades brutais que sempre marcaram a sociedade brasileira se tornaram ainda mais evidentes, bem como a ausência do Estado em áreas cruciais que poderiam mitigar ou evitar parte desses problemas. Um olhar atento para essas populações faz-se necessário para construir políticas públicas mais adequadas e aproveitar o enorme potencial presente nessas regiões.
[1] Disponível em: https://www.monitoramentocovid19.org/resultados
[2] Segundo a PNAD Covid19, entre as pessoas com nível superior completo ou pós-graduação, 38,3% estavam trabalhando remotamente. Privilégio desfrutado por apenas 0,6% entre os sem instrução ou com fundamental incompleto, 1,7% para os que possuem nível fundamental completo e médio incompleto e 7,9% para aqueles com ensino médio completo e superior incompleto. Dados disponíveis em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28039-pnad-covid19-9-7-milhoes-de-trabalhadores-ficaram-sem-remuneracao-em-maio.
[3] Ver, por exemplo, o observatório violações de direitos em tempos de Covid – Salve Sul, organizado pelo CDHEP Campo Limpo: http://cdhep.org.br/mapa-salvesul/.
“No início da pandemia, aqui foi tudo meio incerto, porque em casa só eu estou trabalhando, em um estágio que paga muito pouco, mãe, padrasto e irmão desempregados, mesmo antes da pandemia. Assim que saiu a notícia de corte nos contratos, entrei em desespero porque até então era a única renda, anunciaram os auxílios e ainda assim foi a saga pra que minha mãe e padrasto conseguissem a liberação, meu padrasto conseguiu na semana passada inclusive. […] Minha avó está com muito medo de morrer sozinha, liga toda madrugada e chora.”
Camila, 22 anos, é moradora do bairro do Jardim Ângela e está no último semestre do curso de licenciatura em Artes em uma universidade particular de São Paulo, beneficiária de uma bolsa do ProUni. Sua fala resume alguns dos problemas que têm sido enfrentados por moradores das periferias de São Paulo e de outras cidades do país diante da pandemia de Covid-19 e da falta de ação por parte das diferentes esferas de governo.
Desemprego, desalento, fome, falta de informação, dificuldade de acesso aos direitos sociais, precariedade na saúde e na educação, a lista é infindável. Com a pandemia de Covid-19, as desigualdades brutais que sempre marcaram a sociedade brasileira se tornaram ainda mais evidentes, bem como a ausência do Estado em áreas cruciais que poderiam mitigar ou evitar parte desses problemas. Um olhar atento para essas populações faz-se necessário para construir políticas públicas mais adequadas e aproveitar o enorme potencial presente nessas regiões.
Uma sobreposição de crises
Desde o início da pandemia, tenho mantido conversas constantes por telefone e redes sociais com moradores das periferias de São Paulo onde realizo pesquisas sobre economia e política desde 2015. Em junho deste ano, passei a integrar a Rede de Pesquisa Solidária, que se formou a partir da necessidade de apontar caminhos embasados cientificamente para políticas públicas em meio à pandemia de Covid-19.
A partir dessas conversas, quatro questões emergiram de forma enfática para os habitantes das periferias urbanas como problemas decorrentes do atual momento. O primeiro deles, e que tende a se agravar ao longo dos próximos meses, está no aspecto econômico. A perda de trabalho ou a redução da renda atingiu em cheio as famílias mais pobres. Segundo dados da PNAD Covid19, realizada pelo IBGE, 19 milhões de pessoas estavam afastadas do trabalho em maio; 9,7 milhões estavam sem remuneração e o rendimento médio dos trabalhadores caiu mais de 18%. Como esperado, trabalhadores domésticos e outros sem carteira assinada foram os mais afetados pela perda de renda.
Como já alertavam os boletins da Rede de Pesquisa Solidária de 17 e 24 de abril, um quarto da força de trabalho brasileira se enquadra no que podemos chamar de “Trabalhador Mais Vulnerável em Setor não Essencial”, ou seja, pessoas que trabalham por conta própria, como trabalhadores domésticos, empregados sem carteira ou de pequenas empresas. A ocupação dessas vagas encontra forte correlação com a baixa escolaridade, com a raça (negros) e com o sexo (mulheres). Assim, mulheres negras e homens negros com pouco acesso ao ensino formal, que tradicionalmente são os mais vulneráveis no mercado de trabalho, encontram-se em posições ainda mais vulneráveis no atual momento.
É preciso lembrar, ainda, que a crise econômica provocada pela pandemia chegou por aqui em um momento em que o nível de desemprego, informalidade e desalento -pessoas que haviam desistido de procurar trabalho por não terem mais esperança de encontrar – já estavam extremamente elevados. Como no caso da família de Camila, é bastante comum que os chefes de família estejam desempregados há meses ou até mesmo há anos. A mãe de Camila trabalhou por muitos anos como ascensorista até ser demitida há cinco anos. “De lá pra cá, só conseguiu trabalhar como doméstica”, ela conta, “em cada casa era uma humilhação diferente”, completa.
O padrasto era auxiliar geral e há cerca de um ano só vive de bicos. Os R$ 800 que Camila ganha com o estágio como professora assistente em um colégio particular, e que são essenciais para o sustento da casa, ficaram ameaçados com a suspensão das aulas e o provável término de seu contrato no fim do primeiro semestre. Apenas após dias de insistência e exposição nas filas, os pais de Camila conseguiram acessar seu direito ao auxílio emergencial.
O futuro da família de Camila segue incerto. Sua faculdade não ofereceu alternativas ao cumprimento do estágio obrigatório que precisa para se formar, e ela não consegue concluir a carga horária necessária devido à suspensão das aulas no colégio em que trabalha. Além disso, ela teme que a renovação de seu contrato ou sua efetivação no trabalho não sejam possíveis e que o auxílio emergencial seja cortado após o período já anunciado pelo governo.
Mesmo estando na origem dos problemas atuais, as questões ligadas à saúde pública levaram algumas semanas desde a chegada da doença no Brasil para atingir os moradores das periferias urbanas. Hoje, no entanto, as regiões periféricas são atingidas de forma muito mais intensa do que as áreas centrais, onde a pandemia teve início, no Brasil.
Ainda que o colapso da rede pública de saúde tenha sido evitado em São Paulo, por meio da construção de hospitais de campanha e a compra emergencial de equipamentos médicos, os sinais trocados dados pelas autoridades públicas a respeito da importância do distanciamento social e a ausência de uma política de rastreamento de contatos elevaram rapidamente o número de infectados e de mortos, em especial nas margens da cidade.
Os dados da pesquisa promovida pelo Projeto SoroEpi MSP [1], coletados entre 15 e 24 de junho deste ano na cidade de São Paulo, apontam que, enquanto nos distritos mais pobres, 16% da população já foi contaminada pelo Sars-Cov-2, nas áreas mais ricas, esse número é de 6,5%. Ou seja, os mais pobres têm 2,5 vezes mais chances de terem se contaminado do que os mais ricos. Esses resultados se repetem quando se compara pretos e brancos, e chega a 4,5 vezes quando se compara aqueles que não completaram o ensino fundamental com os que terminaram o ensino superior.
Uma equipe de pesquisadores do LabCidade e do Instituto Pólis apontou uma forte associação entre os locais que mais concentraram as origens dos deslocamentos diários por motivos de trabalho com as áreas de concentração de residência de pessoas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Grave (SRAG) – o que inclui os casos do Covid-19, mas não apenas. Ambos estão, em sua maioria, localizados nas periferias da cidade. Com isso, os pesquisadores concluem que “quem está sendo mais atingido pela Covid-19 são as pessoas que tiveram que sair para trabalhar”, ou seja, pessoas que não têm condições de trabalhar de casa – um privilégio típico de quem possui um nível de escolaridade mais alto [2] – ou não podem ficar sem trabalhar, pois não contam com uma rede de proteção social que lhes possibilite manter o distanciamento social.
Com esse processo de periferização da Covid-19, o medo da avó de Camila, de “morrer sozinha” tornou-se mais recorrente nas regiões mais pobres da cidade. Entre início e fim de maio, as pesquisas realizadas com lideranças comunitárias pela Rede de Pesquisa Solidária mostraram que o medo do contágio e da morte aumentou significativamente nas periferias urbanas do Brasil.
No médio e no longo prazos, se nada for feito, a pandemia poderá produzir, ainda, um aumento das desigualdades em termos educacionais. As formas como escolas e universidades têm lidado com as restrições de convívio social são bastante diversas e sem regulamentação por parte do Estado. No caso de Camila, sua faculdade demitiu diversos professores e transformou suas aulas em atividades a distância, uma tendência que se agravou com a necessidade de distanciamento social.
Para outros tantos moradores das periferias, além da falta de aulas, a dificuldade de acesso à internet de qualidade para acompanhar as atividades online é um problema adicional que acaba prejudicando ainda mais a formação desses jovens. Pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, em 2019, revelou que um quarto dos brasileiros ainda não tem acesso à internet. Entre os que têm acesso à rede, 58% o fazem somente pelo celular, percentual que chega a 85% nas classes D e E.
Nesse cenário, ouvi diversos relatos de estudantes das periferias que estão tendo “aulas” por meio de áudios de whatsapp, única forma que muitos alunos conseguem acessar os conteúdos passados pelos professores, uma vez que não possuem dispositivos ou pacote de dados suficientes para uma aula em vídeo ou atividades em outros formatos.
Para os mais novos, há o receio, por parte de pais e professores, de perda de interesse na escola e dificuldades de acompanhar o aprendizado quando as aulas voltarem, aumentando o potencial de evasão. O medo do contágio com o retorno precoce das aulas é outra forte preocupação. Muitos pais têm afirmado que não permitirão que seus filhos voltem às atividades presenciais caso não se sintam seguros. Para crianças e adolescentes das periferias, 2020 pode ser um ano perdido em termos de educação.
Por fim, mas não menos importante, é preciso chamar a atenção para os efeitos psicológicos que essa situação inédita acarreta. Com a incerteza, o medo e a angústia de ficarem trancados em casa, têm sido frequentes os relatos de aumentos do abuso de álcool e outras drogas. Do mesmo modo, a violência psicológica, física e sexual contra mulheres e crianças têm aumentado, com o agravante da dificuldade de realizar denúncias ou evitar o convívio cotidiano com o agressor, como já alertava o Instituto Maria da Penha em nota divulgada em abril deste ano. Isso sem falar no aumento dos relatos de violência policial a que temos assistido nas últimas semanas.
Ao invés de assegurar condições para o distanciamento social seguro com o estabelecimento de uma política de renda mínima e de medidas de assistência e proteção social, o governo federal apostou na falsa dicotomia entre saúde e economia, numa tentativa de jogar no colo de prefeitos e governadores a responsabilidade pela crise. Como é possível perceber, no caso das periferias urbanas, economia e saúde não estão em lados opostos, mas são duas faces de uma mesma crise que se sobrepõem à penúria econômica não superada desde 2015 e aos problemas de educação, assistência social e violação de direitos fundamentais.
A solidariedade periférica
Em meio a essa situação por vezes desesperadora, a sociedade civil tem se organizado. Com sua usual criatividade, periféricas e periféricos têm buscado construir redes de apoio que, em grande parte, têm evitado uma situação ainda mais grave. Coletivos, Ongs e movimento sociais têm realizado campanhas de arrecadação de alimentos e produtos de higiene, promovido ações de conscientização e buscado oferecer apoio psicossocial e canais de denúncia de violação de direitos humanos [3].
Pequenos empreendedores têm se organizado e procurado adaptar seus negócios a este momento, por meio de redes de apoio e campanhas para sensibilizar as pessoas em torno da importância de consumir produtos e serviços da região onde vivem.
Trata-se de iniciativas emergenciais e que, em boa medida, evitaram o caos social completo. A capacidade de resiliência de mulheres e homens que lutam diariamente para sobreviver nas periferias do Brasil parece ser inesgotável, mas a desesperança diante da falta de ação governamental parece estar no limite. Como a história das organizações populares nas periferias nos ensina, são dessas redes e ações locais que podem surgir reivindicações por políticas públicas e por novos direitos.
* Leonardo Fontes – Sociólogo. Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e pesquisador de pós-doutorado no IPP Cebrap e bolsista Fapesp (Processo 2019/13125-2).
Notas
Desde o início da pandemia, tenho mantido conversas constantes por telefone e redes sociais com moradores das periferias de São Paulo onde realizo pesquisas sobre economia e política desde 2015. Em junho deste ano, passei a integrar a Rede de Pesquisa Solidária, que se formou a partir da necessidade de apontar caminhos embasados cientificamente para políticas públicas em meio à pandemia de Covid-19.
A partir dessas conversas, quatro questões emergiram de forma enfática para os habitantes das periferias urbanas como problemas decorrentes do atual momento. O primeiro deles, e que tende a se agravar ao longo dos próximos meses, está no aspecto econômico. A perda de trabalho ou a redução da renda atingiu em cheio as famílias mais pobres. Segundo dados da PNAD Covid19, realizada pelo IBGE, 19 milhões de pessoas estavam afastadas do trabalho em maio; 9,7 milhões estavam sem remuneração e o rendimento médio dos trabalhadores caiu mais de 18%. Como esperado, trabalhadores domésticos e outros sem carteira assinada foram os mais afetados pela perda de renda.
Como já alertavam os boletins da Rede de Pesquisa Solidária de 17 e 24 de abril, um quarto da força de trabalho brasileira se enquadra no que podemos chamar de “Trabalhador Mais Vulnerável em Setor não Essencial”, ou seja, pessoas que trabalham por conta própria, como trabalhadores domésticos, empregados sem carteira ou de pequenas empresas. A ocupação dessas vagas encontra forte correlação com a baixa escolaridade, com a raça (negros) e com o sexo (mulheres). Assim, mulheres negras e homens negros com pouco acesso ao ensino formal, que tradicionalmente são os mais vulneráveis no mercado de trabalho, encontram-se em posições ainda mais vulneráveis no atual momento.
É preciso lembrar, ainda, que a crise econômica provocada pela pandemia chegou por aqui em um momento em que o nível de desemprego, informalidade e desalento -pessoas que haviam desistido de procurar trabalho por não terem mais esperança de encontrar – já estavam extremamente elevados. Como no caso da família de Camila, é bastante comum que os chefes de família estejam desempregados há meses ou até mesmo há anos. A mãe de Camila trabalhou por muitos anos como ascensorista até ser demitida há cinco anos. “De lá pra cá, só conseguiu trabalhar como doméstica”, ela conta, “em cada casa era uma humilhação diferente”, completa.
O padrasto era auxiliar geral e há cerca de um ano só vive de bicos. Os R$ 800 que Camila ganha com o estágio como professora assistente em um colégio particular, e que são essenciais para o sustento da casa, ficaram ameaçados com a suspensão das aulas e o provável término de seu contrato no fim do primeiro semestre. Apenas após dias de insistência e exposição nas filas, os pais de Camila conseguiram acessar seu direito ao auxílio emergencial.
O futuro da família de Camila segue incerto. Sua faculdade não ofereceu alternativas ao cumprimento do estágio obrigatório que precisa para se formar, e ela não consegue concluir a carga horária necessária devido à suspensão das aulas no colégio em que trabalha. Além disso, ela teme que a renovação de seu contrato ou sua efetivação no trabalho não sejam possíveis e que o auxílio emergencial seja cortado após o período já anunciado pelo governo.
Mesmo estando na origem dos problemas atuais, as questões ligadas à saúde pública levaram algumas semanas desde a chegada da doença no Brasil para atingir os moradores das periferias urbanas. Hoje, no entanto, as regiões periféricas são atingidas de forma muito mais intensa do que as áreas centrais, onde a pandemia teve início, no Brasil.
Ainda que o colapso da rede pública de saúde tenha sido evitado em São Paulo, por meio da construção de hospitais de campanha e a compra emergencial de equipamentos médicos, os sinais trocados dados pelas autoridades públicas a respeito da importância do distanciamento social e a ausência de uma política de rastreamento de contatos elevaram rapidamente o número de infectados e de mortos, em especial nas margens da cidade.
Os dados da pesquisa promovida pelo Projeto SoroEpi MSP [1], coletados entre 15 e 24 de junho deste ano na cidade de São Paulo, apontam que, enquanto nos distritos mais pobres, 16% da população já foi contaminada pelo Sars-Cov-2, nas áreas mais ricas, esse número é de 6,5%. Ou seja, os mais pobres têm 2,5 vezes mais chances de terem se contaminado do que os mais ricos. Esses resultados se repetem quando se compara pretos e brancos, e chega a 4,5 vezes quando se compara aqueles que não completaram o ensino fundamental com os que terminaram o ensino superior.
Uma equipe de pesquisadores do LabCidade e do Instituto Pólis apontou uma forte associação entre os locais que mais concentraram as origens dos deslocamentos diários por motivos de trabalho com as áreas de concentração de residência de pessoas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Grave (SRAG) – o que inclui os casos do Covid-19, mas não apenas. Ambos estão, em sua maioria, localizados nas periferias da cidade. Com isso, os pesquisadores concluem que “quem está sendo mais atingido pela Covid-19 são as pessoas que tiveram que sair para trabalhar”, ou seja, pessoas que não têm condições de trabalhar de casa – um privilégio típico de quem possui um nível de escolaridade mais alto [2] – ou não podem ficar sem trabalhar, pois não contam com uma rede de proteção social que lhes possibilite manter o distanciamento social.
Com esse processo de periferização da Covid-19, o medo da avó de Camila, de “morrer sozinha” tornou-se mais recorrente nas regiões mais pobres da cidade. Entre início e fim de maio, as pesquisas realizadas com lideranças comunitárias pela Rede de Pesquisa Solidária mostraram que o medo do contágio e da morte aumentou significativamente nas periferias urbanas do Brasil.
No médio e no longo prazos, se nada for feito, a pandemia poderá produzir, ainda, um aumento das desigualdades em termos educacionais. As formas como escolas e universidades têm lidado com as restrições de convívio social são bastante diversas e sem regulamentação por parte do Estado. No caso de Camila, sua faculdade demitiu diversos professores e transformou suas aulas em atividades a distância, uma tendência que se agravou com a necessidade de distanciamento social.
Para outros tantos moradores das periferias, além da falta de aulas, a dificuldade de acesso à internet de qualidade para acompanhar as atividades online é um problema adicional que acaba prejudicando ainda mais a formação desses jovens. Pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, em 2019, revelou que um quarto dos brasileiros ainda não tem acesso à internet. Entre os que têm acesso à rede, 58% o fazem somente pelo celular, percentual que chega a 85% nas classes D e E.
Nesse cenário, ouvi diversos relatos de estudantes das periferias que estão tendo “aulas” por meio de áudios de whatsapp, única forma que muitos alunos conseguem acessar os conteúdos passados pelos professores, uma vez que não possuem dispositivos ou pacote de dados suficientes para uma aula em vídeo ou atividades em outros formatos.
Para os mais novos, há o receio, por parte de pais e professores, de perda de interesse na escola e dificuldades de acompanhar o aprendizado quando as aulas voltarem, aumentando o potencial de evasão. O medo do contágio com o retorno precoce das aulas é outra forte preocupação. Muitos pais têm afirmado que não permitirão que seus filhos voltem às atividades presenciais caso não se sintam seguros. Para crianças e adolescentes das periferias, 2020 pode ser um ano perdido em termos de educação.
Por fim, mas não menos importante, é preciso chamar a atenção para os efeitos psicológicos que essa situação inédita acarreta. Com a incerteza, o medo e a angústia de ficarem trancados em casa, têm sido frequentes os relatos de aumentos do abuso de álcool e outras drogas. Do mesmo modo, a violência psicológica, física e sexual contra mulheres e crianças têm aumentado, com o agravante da dificuldade de realizar denúncias ou evitar o convívio cotidiano com o agressor, como já alertava o Instituto Maria da Penha em nota divulgada em abril deste ano. Isso sem falar no aumento dos relatos de violência policial a que temos assistido nas últimas semanas.
Ao invés de assegurar condições para o distanciamento social seguro com o estabelecimento de uma política de renda mínima e de medidas de assistência e proteção social, o governo federal apostou na falsa dicotomia entre saúde e economia, numa tentativa de jogar no colo de prefeitos e governadores a responsabilidade pela crise. Como é possível perceber, no caso das periferias urbanas, economia e saúde não estão em lados opostos, mas são duas faces de uma mesma crise que se sobrepõem à penúria econômica não superada desde 2015 e aos problemas de educação, assistência social e violação de direitos fundamentais.
A solidariedade periférica
Em meio a essa situação por vezes desesperadora, a sociedade civil tem se organizado. Com sua usual criatividade, periféricas e periféricos têm buscado construir redes de apoio que, em grande parte, têm evitado uma situação ainda mais grave. Coletivos, Ongs e movimento sociais têm realizado campanhas de arrecadação de alimentos e produtos de higiene, promovido ações de conscientização e buscado oferecer apoio psicossocial e canais de denúncia de violação de direitos humanos [3].
Pequenos empreendedores têm se organizado e procurado adaptar seus negócios a este momento, por meio de redes de apoio e campanhas para sensibilizar as pessoas em torno da importância de consumir produtos e serviços da região onde vivem.
Trata-se de iniciativas emergenciais e que, em boa medida, evitaram o caos social completo. A capacidade de resiliência de mulheres e homens que lutam diariamente para sobreviver nas periferias do Brasil parece ser inesgotável, mas a desesperança diante da falta de ação governamental parece estar no limite. Como a história das organizações populares nas periferias nos ensina, são dessas redes e ações locais que podem surgir reivindicações por políticas públicas e por novos direitos.
* Leonardo Fontes – Sociólogo. Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e pesquisador de pós-doutorado no IPP Cebrap e bolsista Fapesp (Processo 2019/13125-2).
Notas
[1] Disponível em: https://www.monitoramentocovid19.org/resultados
[2] Segundo a PNAD Covid19, entre as pessoas com nível superior completo ou pós-graduação, 38,3% estavam trabalhando remotamente. Privilégio desfrutado por apenas 0,6% entre os sem instrução ou com fundamental incompleto, 1,7% para os que possuem nível fundamental completo e médio incompleto e 7,9% para aqueles com ensino médio completo e superior incompleto. Dados disponíveis em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28039-pnad-covid19-9-7-milhoes-de-trabalhadores-ficaram-sem-remuneracao-em-maio.
[3] Ver, por exemplo, o observatório violações de direitos em tempos de Covid – Salve Sul, organizado pelo CDHEP Campo Limpo: http://cdhep.org.br/mapa-salvesul/.
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