Por Wadih Damous, no site da Fundação Perseu Abramo:
O Poder Judiciário brasileiro reconheceu que a morte da estilista Zuzu Angel não foi acidental e sim decorrente de um atentado contra a sua vida cometida por agentes do Estado brasileiro, à época sob ditadura militar. A Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada em 1995, já havia, em 1998, reconhecido o assassinato de Zuzu e afastado a versão da ditadura de que a morte da estilista decorrera de acidente automobilístico.
Zuzu Angel era mãe de Stuart Edgard Angel, militante da organização revolucionária MR8, que combateu a ditadura com armas na mão. Em 1971, Stuart foi preso, torturado e morto nas dependências do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). A sua prisão se deu em meio à perseguição, pela ditadura, do ex capitão do Exército Carlos Lamarca. Morto sob tortura em um pátio do Aeroporto do Galeão, o corpo de Stuart – segundo informações de um agente que participou de seu interrogatório – teria sido jogado ao mar, engrossando a lista dos desaparecidos políticos do Brasil.
Com a certeza da morte e desaparecimento do filho, Zuzu se lança numa busca desesperada pela localização do corpo. Por quase cinco anos, de forma incessante, promoveu denúncias, escreveu cartas, realizou desfiles internacionais, tentou mobilizar personalidades, cantando sempre esse estribilho, como a fina percepção de Chico Buarque apontou: “onde está meu filho”? Por óbvio, essa Antígona dos tempos modernos, com a sua inarredável obstinação, começou a incomodar os poderosos da época, particularmente os envolvidos no assassinato do filho reclamado pela mãe.
As buscas pelo corpo do filho empreendidas por Zuzu foram abruptamente interrompidas em uma noite de 1976. No trajeto de volta para a Barra da Tijuca, onde morava, o carro da estilista despencou de uma altura de dez metros do viaduto à saída do Túnel Dois Irmãos, em São Conrado. Ela teve morte instantânea.
Em 2008, suas filhas Hildegard Angel e Ana Cristina Angel ingressaram em juízo e pleitearam indenização por danos morais pela morte de sua mãe Zuzu Angel e do irmão de ambas Stuart Angel, já reconhecida administrativamente pelo Estado brasileiro, conforme se disse mais acima.
O juízo da 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro julgou procedente o pedido, com sentença confirmada em 2º grau de jurisdição pelo Tribunal Regional Federal da Segunda Região. O Poder Judiciário considerou imprescritível o direito à ação, já que se trata de crime contra dignidade da pessoa humana além de evocar jurisprudência assentada de que a concessão do direito em sede administrativa não impede o ingresso em juízo.
Em relação a Zuzu, afastou a tese mentirosa de acidente e ratificou o entendimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos de que a sua morte “foi desdobramento e consequência da morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones, em 1971”.
Vale aqui ressaltar o papel desempenhado pela referida comissão. A prova de que Zuzu Angel foi vítima fatal de um atentado foi produzida no processo administrativo. A comissão conseguiu localizar duas testemunhas que viram o carro de Zuzu ser interceptado e jogado do viaduto por outro carro que com o dela emparelhou.
Foi uma vitória póstuma da mãe, que morreu por buscar a verdade sobre a morte de seu filho. Embora o corpo não lhe tenha sido entregue nem os assassinos responsabilizados, a morte e o desaparecimento de Stuart foram reconhecidos pelo Estado brasileiro que, finalmente, deu razão à Zuzu que de forma corajosa acusava os agentes da repressão por esses crimes.
Mas foi uma vitória também de todos os familiares e entidades defensoras dos direitos humanos que, por décadas, lutam para saber do paradeiro de seus entes queridos e pelo reconhecimento da culpa do Estado por suas mortes e desaparecimento forçado.
É preciso lembrar que a tortura, a morte e o desaparecimento de perseguidos políticos foi uma política de Estado enquanto durou a ditadura. Não se tratava de “excessos” cometidos por torturadores sem o conhecimento das autoridades da época. O método nazista de “noite e neblina” foi aqui implantado de forma planejada, estruturada e sistematizada. A cadeia de comando para esses crimes começava no Palácio do Planalto até chegar aos porões. Doi-Codi; Cisa; Cenimar; CIE e órgãos correlatos eram repartições públicas sustentadas pelos impostos pagos pelo contribuinte brasileiro.
No Brasil e demais países que atravessaram ditaduras nas décadas de 1960 e 1970 ou regimes repressivos atentatórios aos direitos humanos, como a África do Sul, desenvolveram-se políticas atinentes à afirmação do direito à memória e à verdade, no âmbito do que se convencionou chamar de justiça de transição.
Memória para que as gerações posteriores e vindouras tenham conhecimento de que em seu país o Estado matava, torturava e fazia desaparecer pessoas por conta de suas opiniões políticas, com o objetivo de que tais práticas nunca mais aconteçam. Verdade, só passível de ser alcançada sem as amarras da censura, para que documentos, arquivos e registros sejam disponibilizados a todos os que queiram conhecer a história real de seus países.
Memória e verdade que não sejam conceitos antinômicos como aconteceu na França após a guerra, em que o General Charles de Gaulle criou a falsa ideia de uma França irredenta que não se curvou ao ocupante alemão. Memória de um lado; história de outro. Reconstrução do passado versus verdade dos fatos.
Que a notícia da vitória judicial da família de Zuzu e Stuart Angel não tenha merecido uma mísera nota de rodapé na mídia hegemônica não me causa espécie. Na verdade, lamento que essa pauta ligada aos crimes da ditadura não ganhe a atenção dos partidos da esquerda brasileira. Essa indiferença acaba por contribuir com a ideia de “página virada” defendida pela direita e pelos militares e para, ao longo do tempo, a responsabilização dos agentes perpetradores não tenha se efetivado.
Extinção da Comissão de Mortos e Desaparecidos; esvaziamento da Comissão de Anistia; arquivamento do relatório da Comissão Nacional da Verdade em uma gaveta qualquer de obscura repartição pública são resultado de uma deliberada política do atual governo de extrema direita – cujo chefe enaltece e homenageia torturadores – de recontar a história, negando que a ditadura e seus crimes tenham existido e acontecido.
Não podemos assistir a isso de braços cruzados.
O Poder Judiciário brasileiro reconheceu que a morte da estilista Zuzu Angel não foi acidental e sim decorrente de um atentado contra a sua vida cometida por agentes do Estado brasileiro, à época sob ditadura militar. A Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada em 1995, já havia, em 1998, reconhecido o assassinato de Zuzu e afastado a versão da ditadura de que a morte da estilista decorrera de acidente automobilístico.
Zuzu Angel era mãe de Stuart Edgard Angel, militante da organização revolucionária MR8, que combateu a ditadura com armas na mão. Em 1971, Stuart foi preso, torturado e morto nas dependências do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). A sua prisão se deu em meio à perseguição, pela ditadura, do ex capitão do Exército Carlos Lamarca. Morto sob tortura em um pátio do Aeroporto do Galeão, o corpo de Stuart – segundo informações de um agente que participou de seu interrogatório – teria sido jogado ao mar, engrossando a lista dos desaparecidos políticos do Brasil.
Com a certeza da morte e desaparecimento do filho, Zuzu se lança numa busca desesperada pela localização do corpo. Por quase cinco anos, de forma incessante, promoveu denúncias, escreveu cartas, realizou desfiles internacionais, tentou mobilizar personalidades, cantando sempre esse estribilho, como a fina percepção de Chico Buarque apontou: “onde está meu filho”? Por óbvio, essa Antígona dos tempos modernos, com a sua inarredável obstinação, começou a incomodar os poderosos da época, particularmente os envolvidos no assassinato do filho reclamado pela mãe.
As buscas pelo corpo do filho empreendidas por Zuzu foram abruptamente interrompidas em uma noite de 1976. No trajeto de volta para a Barra da Tijuca, onde morava, o carro da estilista despencou de uma altura de dez metros do viaduto à saída do Túnel Dois Irmãos, em São Conrado. Ela teve morte instantânea.
Em 2008, suas filhas Hildegard Angel e Ana Cristina Angel ingressaram em juízo e pleitearam indenização por danos morais pela morte de sua mãe Zuzu Angel e do irmão de ambas Stuart Angel, já reconhecida administrativamente pelo Estado brasileiro, conforme se disse mais acima.
O juízo da 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro julgou procedente o pedido, com sentença confirmada em 2º grau de jurisdição pelo Tribunal Regional Federal da Segunda Região. O Poder Judiciário considerou imprescritível o direito à ação, já que se trata de crime contra dignidade da pessoa humana além de evocar jurisprudência assentada de que a concessão do direito em sede administrativa não impede o ingresso em juízo.
Em relação a Zuzu, afastou a tese mentirosa de acidente e ratificou o entendimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos de que a sua morte “foi desdobramento e consequência da morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones, em 1971”.
Vale aqui ressaltar o papel desempenhado pela referida comissão. A prova de que Zuzu Angel foi vítima fatal de um atentado foi produzida no processo administrativo. A comissão conseguiu localizar duas testemunhas que viram o carro de Zuzu ser interceptado e jogado do viaduto por outro carro que com o dela emparelhou.
Foi uma vitória póstuma da mãe, que morreu por buscar a verdade sobre a morte de seu filho. Embora o corpo não lhe tenha sido entregue nem os assassinos responsabilizados, a morte e o desaparecimento de Stuart foram reconhecidos pelo Estado brasileiro que, finalmente, deu razão à Zuzu que de forma corajosa acusava os agentes da repressão por esses crimes.
Mas foi uma vitória também de todos os familiares e entidades defensoras dos direitos humanos que, por décadas, lutam para saber do paradeiro de seus entes queridos e pelo reconhecimento da culpa do Estado por suas mortes e desaparecimento forçado.
É preciso lembrar que a tortura, a morte e o desaparecimento de perseguidos políticos foi uma política de Estado enquanto durou a ditadura. Não se tratava de “excessos” cometidos por torturadores sem o conhecimento das autoridades da época. O método nazista de “noite e neblina” foi aqui implantado de forma planejada, estruturada e sistematizada. A cadeia de comando para esses crimes começava no Palácio do Planalto até chegar aos porões. Doi-Codi; Cisa; Cenimar; CIE e órgãos correlatos eram repartições públicas sustentadas pelos impostos pagos pelo contribuinte brasileiro.
No Brasil e demais países que atravessaram ditaduras nas décadas de 1960 e 1970 ou regimes repressivos atentatórios aos direitos humanos, como a África do Sul, desenvolveram-se políticas atinentes à afirmação do direito à memória e à verdade, no âmbito do que se convencionou chamar de justiça de transição.
Memória para que as gerações posteriores e vindouras tenham conhecimento de que em seu país o Estado matava, torturava e fazia desaparecer pessoas por conta de suas opiniões políticas, com o objetivo de que tais práticas nunca mais aconteçam. Verdade, só passível de ser alcançada sem as amarras da censura, para que documentos, arquivos e registros sejam disponibilizados a todos os que queiram conhecer a história real de seus países.
Memória e verdade que não sejam conceitos antinômicos como aconteceu na França após a guerra, em que o General Charles de Gaulle criou a falsa ideia de uma França irredenta que não se curvou ao ocupante alemão. Memória de um lado; história de outro. Reconstrução do passado versus verdade dos fatos.
Que a notícia da vitória judicial da família de Zuzu e Stuart Angel não tenha merecido uma mísera nota de rodapé na mídia hegemônica não me causa espécie. Na verdade, lamento que essa pauta ligada aos crimes da ditadura não ganhe a atenção dos partidos da esquerda brasileira. Essa indiferença acaba por contribuir com a ideia de “página virada” defendida pela direita e pelos militares e para, ao longo do tempo, a responsabilização dos agentes perpetradores não tenha se efetivado.
Extinção da Comissão de Mortos e Desaparecidos; esvaziamento da Comissão de Anistia; arquivamento do relatório da Comissão Nacional da Verdade em uma gaveta qualquer de obscura repartição pública são resultado de uma deliberada política do atual governo de extrema direita – cujo chefe enaltece e homenageia torturadores – de recontar a história, negando que a ditadura e seus crimes tenham existido e acontecido.
Não podemos assistir a isso de braços cruzados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: