Por Marco Piva, no site Dom Total:
Um mistério paira no ar do Brasil. O país tem notoriamente um presidente de perfil autoritário, quase infantil, com muita dificuldade de tolerar as diferenças e, ao mesmo tempo, sem um projeto de desenvolvimento. Seu único mantra é, ao lado do ministro Paulo “Posto Ipiranga” Guedes, recitar a cartilha surrada do neoliberalismo que já levou boa parte do mundo à ruína e ao caos social. O Consenso de Washington foi substituído há algum tempo por um projeto de financeirização da economia muito mais agressivo e cruel e parece que está tudo bem, que o caminho é esse mesmo. Até a pandemia da Covid-19 sugere uma normalidade como uma “gripezinha”.
O mistério é decifrar como, em meio a tantas evidências de descalabro administrativo com grande potencial destrutivo em diferentes áreas da gestão pública (educação, saúde, segurança etc.), nós, os brasileiros, ainda insistimos em nos comportar como se estivéssemos diante de um grande líder, alguém que sabe exatamente o que faz.
Idolatrias sempre existiram ao longo da história. Tenham sido estas operadas por imperadores, ditadores ou déspotas de qualquer quilate, inclusive à esquerda do espectro político. Mas, o mundo atual não comporta mais aventuras. Qualquer erro na condução de uma nação pode ser fatal para as futuras gerações.
O exemplo do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que acaba de completar quatro anos, é ilustrativo de como se pode abalar os alicerces institucionais de uma nação com apenas um gesto. Acusada de improbidade administrativa (as famosas “pedaladas fiscais”), Dilma foi isolada politicamente numa fritura que começou nas eleições de 2014 quando, inconformado com a derrota nas urnas, o então candidato tucano Aécio Neves afirmou publicamente que passaria a trabalhar pelo impedimento da sua oponente vitoriosa, custe o que custasse.
O que deveria ser uma disputa dentro do jogo democrático, se tornou uma obsessão política, que foi envolvendo cada vez mais atores da sociedade interessados em recuperar o poder após 13 anos de gestões petistas. Incluo nisso a grande imprensa, ferramenta essencial de sedução das massas. A batalha envolveu até mesmo o vice-presidente Michel Temer que, de aliado, virou opositor.
É certo que Dilma se saiu vitoriosa nas urnas pela segunda vez beneficiada principalmente pelos programas sociais petistas e pelo nível de desemprego à época, que estava em 4,8%, o menor de toda a história do país. Esse cenário a favoreceu naquele momento. Mas, a crise econômica que se avizinhava por múltiplos fatores nacionais e internacionais, agravada pelas denúncias de corrupção na Petrobras, foi potencializada pelas pautas-bomba produzidas pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, inimigo feroz do PT que acabou sendo usado pelas forças opositoras para encaminhar o processo de impeachment. O desfecho aconteceu no dia 31 de agosto de 2016, quando Dilma Rousseff foi afastada da Presidência da República por meio de processo que recebeu muitos questionamentos jurídicos. Por ironia, seu principal algoz foi julgado e condenado a cumprir pena de prisão em Curitiba, acusado de corrupção.
O fato é que, a partir do impeachment, o país parece ter entrado num vale-tudo que foi aos poucos fragilizando os alicerces institucionais da nação e o próprio funcionamento da nossa jovem democracia. A ideia de que bastava tirar o PT do governo para que tudo voltasse ao normal foi tão falsa quanto uma nota de 3 reais. A chamada “velha política”, que na prática garantia a estabilidade apesar de todos os seus equívocos e incoerências, foi usada por “políticos velhos” para a apresentação da “nova política”. Amplos setores da sociedade foram seduzidos por um anticomunismo fora de época, cuja símbolo era o Partido dos Trabalhadores, e por uma cruzada moralizadora dos costumes, personificada em juízes parciais e procuradores altamente ideologizados que fizeram do combate à corrupção seu instrumento de guerra e de promoção de suas vaidades pessoais.
De lá para cá, a história também é conhecida. Um governo de transição, liderado por um personagem menor e traiçoeiro, cujo lema foi “tem que manter isso aí”, resultou no impedimento de um processo eleitoral limpo, democrático e justo em 2018. As fake news dominaram os debates, o favorito Lula foi retirado da disputa, a direita liberal teve uma derrota acachapante e o resultado está aí: a vitória da “nova política” pariu Jair Bolsonaro, um figurante exótico e inexpressivo da Câmara dos Deputados durante 28 anos de mandato. Ele chegou ao cargo máximo do país baseado num inconformismo popular habilmente incentivado pelos setores mais atrasados da sociedade, cuja característica principal é a promoção do senso comum (combater a corrupção, derrotar o comunismo, valorizar a família e os preceitos cristãos etc.).
Isso é muito pouco para se conduzir um país tão grande como o Brasil. Um país que até pouco tempo atrás era respeitado exatamente pela sua condição de protagonista internacional. Hoje, somos um anão diplomático dirigido por um presidente da 4ª série, como escreveu Gabriela Priolli.
Com as instituições que garantem a democracia fragilizadas e se combatendo umas às outras, a estabilidade política entra em crise. O futuro fica irremediavelmente comprometido. É muito fácil ver isso. O mistério é saber porquê ainda insistimos no caminho do precipício.
* Marco Piva é jornalista, diretor de redação do canal de youtube O Planeta Azul, apresentador do programa “Brasil Latino”, na Rádio USP FM e colaborador do site Dom Total.
Um mistério paira no ar do Brasil. O país tem notoriamente um presidente de perfil autoritário, quase infantil, com muita dificuldade de tolerar as diferenças e, ao mesmo tempo, sem um projeto de desenvolvimento. Seu único mantra é, ao lado do ministro Paulo “Posto Ipiranga” Guedes, recitar a cartilha surrada do neoliberalismo que já levou boa parte do mundo à ruína e ao caos social. O Consenso de Washington foi substituído há algum tempo por um projeto de financeirização da economia muito mais agressivo e cruel e parece que está tudo bem, que o caminho é esse mesmo. Até a pandemia da Covid-19 sugere uma normalidade como uma “gripezinha”.
O mistério é decifrar como, em meio a tantas evidências de descalabro administrativo com grande potencial destrutivo em diferentes áreas da gestão pública (educação, saúde, segurança etc.), nós, os brasileiros, ainda insistimos em nos comportar como se estivéssemos diante de um grande líder, alguém que sabe exatamente o que faz.
Idolatrias sempre existiram ao longo da história. Tenham sido estas operadas por imperadores, ditadores ou déspotas de qualquer quilate, inclusive à esquerda do espectro político. Mas, o mundo atual não comporta mais aventuras. Qualquer erro na condução de uma nação pode ser fatal para as futuras gerações.
O exemplo do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que acaba de completar quatro anos, é ilustrativo de como se pode abalar os alicerces institucionais de uma nação com apenas um gesto. Acusada de improbidade administrativa (as famosas “pedaladas fiscais”), Dilma foi isolada politicamente numa fritura que começou nas eleições de 2014 quando, inconformado com a derrota nas urnas, o então candidato tucano Aécio Neves afirmou publicamente que passaria a trabalhar pelo impedimento da sua oponente vitoriosa, custe o que custasse.
O que deveria ser uma disputa dentro do jogo democrático, se tornou uma obsessão política, que foi envolvendo cada vez mais atores da sociedade interessados em recuperar o poder após 13 anos de gestões petistas. Incluo nisso a grande imprensa, ferramenta essencial de sedução das massas. A batalha envolveu até mesmo o vice-presidente Michel Temer que, de aliado, virou opositor.
É certo que Dilma se saiu vitoriosa nas urnas pela segunda vez beneficiada principalmente pelos programas sociais petistas e pelo nível de desemprego à época, que estava em 4,8%, o menor de toda a história do país. Esse cenário a favoreceu naquele momento. Mas, a crise econômica que se avizinhava por múltiplos fatores nacionais e internacionais, agravada pelas denúncias de corrupção na Petrobras, foi potencializada pelas pautas-bomba produzidas pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, inimigo feroz do PT que acabou sendo usado pelas forças opositoras para encaminhar o processo de impeachment. O desfecho aconteceu no dia 31 de agosto de 2016, quando Dilma Rousseff foi afastada da Presidência da República por meio de processo que recebeu muitos questionamentos jurídicos. Por ironia, seu principal algoz foi julgado e condenado a cumprir pena de prisão em Curitiba, acusado de corrupção.
O fato é que, a partir do impeachment, o país parece ter entrado num vale-tudo que foi aos poucos fragilizando os alicerces institucionais da nação e o próprio funcionamento da nossa jovem democracia. A ideia de que bastava tirar o PT do governo para que tudo voltasse ao normal foi tão falsa quanto uma nota de 3 reais. A chamada “velha política”, que na prática garantia a estabilidade apesar de todos os seus equívocos e incoerências, foi usada por “políticos velhos” para a apresentação da “nova política”. Amplos setores da sociedade foram seduzidos por um anticomunismo fora de época, cuja símbolo era o Partido dos Trabalhadores, e por uma cruzada moralizadora dos costumes, personificada em juízes parciais e procuradores altamente ideologizados que fizeram do combate à corrupção seu instrumento de guerra e de promoção de suas vaidades pessoais.
De lá para cá, a história também é conhecida. Um governo de transição, liderado por um personagem menor e traiçoeiro, cujo lema foi “tem que manter isso aí”, resultou no impedimento de um processo eleitoral limpo, democrático e justo em 2018. As fake news dominaram os debates, o favorito Lula foi retirado da disputa, a direita liberal teve uma derrota acachapante e o resultado está aí: a vitória da “nova política” pariu Jair Bolsonaro, um figurante exótico e inexpressivo da Câmara dos Deputados durante 28 anos de mandato. Ele chegou ao cargo máximo do país baseado num inconformismo popular habilmente incentivado pelos setores mais atrasados da sociedade, cuja característica principal é a promoção do senso comum (combater a corrupção, derrotar o comunismo, valorizar a família e os preceitos cristãos etc.).
Isso é muito pouco para se conduzir um país tão grande como o Brasil. Um país que até pouco tempo atrás era respeitado exatamente pela sua condição de protagonista internacional. Hoje, somos um anão diplomático dirigido por um presidente da 4ª série, como escreveu Gabriela Priolli.
Com as instituições que garantem a democracia fragilizadas e se combatendo umas às outras, a estabilidade política entra em crise. O futuro fica irremediavelmente comprometido. É muito fácil ver isso. O mistério é saber porquê ainda insistimos no caminho do precipício.
* Marco Piva é jornalista, diretor de redação do canal de youtube O Planeta Azul, apresentador do programa “Brasil Latino”, na Rádio USP FM e colaborador do site Dom Total.
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