sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Bolívia: O futuro não está pronto

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

O resultado das eleições na Bolívia pode ser lido de várias maneiras. Como a retomada vitoriosa da mobilização popular. Como a volta do cipó de aroeira no lombo de quem comandou o golpe contra Evo Morales. Como um sinal do retorno das esquerdas na região depois do fracasso das experiências neoliberais redivivas.

Ou mesmo, numa chave mais dócil, como expressão da alternância de poder. Em outras palavras, um episódio mais ou menos previsível na trajetória das democracias liberais.

No entanto, o que talvez seja mais útil para o Brasil na experiência boliviana seja a configuração da possibilidade de reação ao golpe – seja ele a clássica intervenção militar ou a partir da falácia da institucionalidade, e, mesmo como no caso, uma combinação de ambos. Além disso, o povo boliviano mostrou que não se combate dos fracassos da história com a paciência ou crença na inevitabilidade da mudança ao longo do tempo, mas com estratégia e sentido de luta incessante.

No Brasil, desde o golpe contra a democracia que tirou Dilma Rousseff do poder, as forças progressistas não foram capazes de articular – lá se vão alguns anos – um movimento de massas capaz de retomar a ordem democrática em política e preservar os pequenos avanços econômicos, sociais e culturais conquistados.

Em menos de um ano, a Bolívia foi da deposição de um presidente eleito à recuperação do poder pelos meios legais, com uma sabedoria que preservou a paz sem ceder ao quietismo.

Há diferenças profundas entre as duas nações. A questão dos povos originários é decisiva no país andino e marca sua maneira de ser no mundo. A distinção de porte e diversidade econômica e de projetos das esquerdas que comandaram lá e cá a partir do começo do século são também marcantes. Mas as semelhanças são também expressivas.

Nos dois países, a reação dos setores derrotados foi violenta, com aparelhamento do poder Judiciário, aliança com a imprensa burguesa, alinhamento com o capital internacional e submissão aos interesses norte-americanos. O golpismo ensombrece a região.

No Brasil, essa equação se resolveu com Bolsonaro, que traduziu o repúdio às políticas distributivistas, participativas e mesmo levemente social-democratas em projeto de entreguismo da economia ao mercado, com a caução do moralismo, da violência e do autoritarismo para uso de militares, evangélicos, milicianos e idiotas.

Deu-se os anéis da chamada pauta cultural ou moral para preservar os dedos do mercado e, de repente, o país se viu sem mãos para palmilhar qualquer rumo que não o da destruição. Guedes e Damares se somam, não se contrapõem.

Na Bolívia tudo ocorreu com a deposição do presidente com a chave sempre eficiente da denúncia de fraudes eleitorais e acusação de caudilhismo atávico, amparado pela OEA, pela imprensa comercial (que gosta de se autodenominar de “profissional”) e por países filiados ao mesmo projeto, com o Brasil em destaque.

A vitória de Luis Arce foi recebida com a hipocrisia de sempre, buscando desvinculá-lo de Evo Morales (que se mantém como ameaça) para encaixá-lo na pretensa racionalidade fiscal de seu projeto econômico, o que não é apenas inexato, mas falso. Em editorial, o jornal Folha de S. Paulo sugeriu que Evo Morales se recolha: uma espécie de cassação midiática por lavajatismo jornalístico.

Se nosso vizinho tem seu caminho a retomar - com o desafio de aprofundar seu projeto interrompido - o rumo brasileiro precisa ainda cumprir o difícil desafio de afastar Bolsonaro, sem esperar com otimismo que ele mesmo destrua suas possibilidades de manutenção ou continuidade.

O presidente não pode ser pior do que tem sido, embora se esmere na capacidade de ser ruim a cada dia. Não se deve esperar dele mais absurdos que os usuais, do meio ambiente à saúde; da diplomacia à economia; da cultura à educação. Ele foi eleito com esse programa. A superação de Bolsonaro, na vida prática da democracia, precisa ser construída desde já, tanto na inviabilização de seu governo como na criação de um caminho eleitoral viável.

A via boliviana passou por mobilização social, comunicação popular, militância e sobretudo união, ainda mais difícil no contexto das relações étnicas e do preconceito enraizado secularmente no país. Uma estrada que as forças progressistas brasileiras precisam trilhar desde já para permitir uma superação possível do pesadelo em que o país se meteu.

As eleições municipais que espiam da janela serão o primeiro teste e o eleitor não parece estar consciente disso. Nem os partidos e candidatos. Se há algo que a pandemia tem nos ensinado a cada dia é que o futuro não está pronto e nem o final feliz é inevitável.

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