Por Esther Solano, na revista CartaCapital:
Muita gente me pergunta se não deveríamos focar na luta pelas pautas materiais para derrotar Bolsonaro.
Se não seria a disputa por trabalho e renda dignos a estratégia para implodir o monstro no poder.
Sempre respondo a mesma coisa.
Talvez seja o caminho para derrotar Bolsonaro, mas me parece que não será o caminho para derrotar o bolsonarismo e as sequelas no médio e longo prazo que ele deixará na sociedade brasileira.
O bolsonarismo constrói-se na convergência, na conjunção das pautas neoliberal e neoconservadora.
A destruição da economia legitimada em nome dos valores tradicionais.
A destruição do trabalho justificada em nome de Deus, o atropelamento dos direitos mais básicos em nome da pátria, da nação, da bandeira.
A agenda pauloguedista da privatização e da precarização da vida une-se à agenda damarista da família cristã e da mulher bela, recatada e do lar.
Não dá para entender o bolsonarismo sem entender esses dois vetores atuando de forma conjunta e retroalimentada, às vezes aparentemente divergentes, mas sempre com a intenção de permanecer harmoniosos.
Por isso, nosso duelo de morte contra o bolsonarismo também deve dar-se nas duas frentes de batalha.
Devemos, é óbvio, focar na disputa feroz pela dignidade material do brasileiro, ainda mais em tempos de uberismo, descartabilidade e reformas antipovo, e, sobretudo, durante a pandemia econômica que está sendo consequência atroz da pandemia sanitária.
Mas isso por si só não basta.
Devemos fazer a disputa por valores, a disputa por subjetividades, a disputa por símbolos, contra a vertente neoconservadora, retrógrada e fundamentalista religiosa do bolsonarismo, que também deixa a cada passo um rio de vítimas e cadáveres, assim como a vertente neoliberal.
As pessoas morrem de fome, de falta de aposentadoria, de miséria, mas também morrem de aborto clandestino, de LGBTfobia ou espancadas pelos maridos no lar, o espaço que deveria ser o mais sagrado.
Ou seja, morrem de pauloguedismo e morrem de damarismo. Devemos combater os dois.
Vou dar um exemplo.
Vi piadas e chacotas no Facebook, a única rede social (ou antissocial) que utilizo, a respeito da “cristofobia” que Bolsonaro citou nas Nações Unidas.
Sim, é evidente que, para a nossa bolha, a menção a esse conceito é absurda, folclórica, risível, insensata, kafkiana…
Botem aí o adjetivo que quiserem, mas espero que os mesmos que riem entendam a seriedade da questão.
Bolsonaro não falava para você, para nós, ele está pouco se lixando para as nossas piadas e memes.
Bolsonaro falava para sua base, para seu público, religioso, para milhões de brasileiros.
“Continuem, vocês, de suas bolhas, rindo de mim, que eu continuo falando com os meus e os que poderão se juntar a mim enquanto vocês continuam rindo.”
A “cristofobia” faz sentido para muitos nesse público.
Foi construída uma retórica bolsonarista muito forte de que a esquerda é inimiga da religião, é inimiga da fé, e isso faz com que muitos se sintam atacados pessoalmente pelo campo progressista.
Para muita gente decepcionada até a medula com a política, com a esfera pública, o âmbito do privado, das relações sociais mais próximas, é a única na qual confiam.
Dentro desse âmbito, a fé joga um papel fundamental.
Se alguém religioso sentir sua fé atacada, obviamente vai reagir.
Durante estes anos, tenho entrevistado mulheres periféricas que sentiam um medo enorme de uma possível vitória do PT, pois tinham certeza de que o partido tentaria destruir sua fé.
Por isso essas mulheres que entrevistei votaram em Bolsonaro.
Depois das minhas conversas com elas, ficou claro para mim que a coisa era muito séria, séria demais para, simplesmente, ser resumida em um meme ou para dar risada.
O que a gente trata como disparate, como caricatura ridícula, faz sentido para milhões de brasileiros, influencia sua opinião e seu voto, cria coerência.
Sei que pode ser muito difícil levar a sério o que parece uma asneira, mas o importante de toda essa história é que, quando as asneiras são ignoradas, ridicularizadas e não combatidas, viram verdades e votos nas urnas.
Se a gente só fizer piada e não levar essas questões a sério, não disputar esses valores, Bolsonaro, Damares, os pastores e os padres continuarão a falar e a convencer. Devemos ter a inteligência de saber como o outro lado raciocina, pensa, sente e reage.
Em política, não é só a nossa opinião que importa.
Se quisermos um projeto político que inclua a maior quantidade de gente possível, devemos entender que só nossas definições não servem e que temos de estar abertos para discutir até as asneiras, ou principalmente estas.
* Esther Solano é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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