A morte do argentino Joaquin Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, encerra o ciclo de uma das personagens mais ricas da cultura contemporânea, a garota Mafalda. O que muita gente não sabe é que Mafalda já não dava as caras de forma original há quase 50 anos, desde que, em 1973, Quino deu por encerrada sua trajetória. Só voltou a publicar tiras inéditas quando convocado por causas humanitárias, como o feminismo e a defesa da democracia.
Em cerca de 10 anos, entre 1964 e 1973, foram 1.928 cartuns estrelado pela mais genial, indignada e, por que não, sublime menina em seus eternos e inacreditáveis 6 anos de idade. Mafalda começa a brilhar sozinha, com a companhia meio coadjuvante dos pais e professores, para logo em seguida ir ganhando companheiras e companheiros de jornada. De Manolito e Felipe, de Susanita ao irmão Guille, de Miguelito a Liberdade. Os personagens, como a chefe da turma, são tão únicos como exemplares.
São vários os motivos que explicam tanto amor do público por Mafalda. Em primeiro lugar, a capacidade de ser atemporal, respondendo sempre por provocações que não são de um único tempo ou lugar, mas inspiradas pela mais autêntica universalidade. Ela era uma garota que amava os Beatles e odiava sopa, o que é uma maneira de dizer que era aberta às transformações e inimiga das convenções que limitam o mundo.
Paradoxalmente, é exatamente por ser argentina, de classe média e viver em meio a um clima de opressão e consumismo que ela dá mais motivos para fazer parte do afeto de tantas pessoas nos mais distantes cantos do planeta. O que talvez se explique pela diferença entre charge e cartum. Os trabalhos de Quino não são comentários sobre questões de conjuntura, o que faria deles produtos datados, como as charges de jornais de todo dia, mas traduções em linguagem simples e poética de questões mais amplas e profundas.
Tecnicamente, Quino tem um raro senso poético para imagens e textos. O acabamento de seus desenhos, com cuidadosos detalhes e uso virtuosístico do preto e branco, evoca um lirismo doce em meio ao caos, que parece traduzir a personalidade de Mafalda, sempre maior que sua circunstância imediata. Com poucas palavras e tiradas filosóficas impagáveis, as histórias parecem compor um momento de iluminação atrás do outro, sempre com fundamento na realidade.
É assim que vai se constituindo, ao longo das tiras, um dicionário afetivo que ajuda a entender o que é liberdade, injustiça, exploração, família, educação, alienação, revolta, amor, indignação, velhice e morte, entre outros temas que dão sentido à vida. Quino propõe a transgressão de uma arte que nasceu próxima ao humor para destilar uma melancolia suave, que não faz rir, mas parece encantar a inteligência e deixar um sorriso doce-azedo na memória.
Mafalda se tornou a mais conhecida personagem de quadrinhos da América do Sul, ganhando admiradores em todo o mundo. Acho que é possível dizer que isso acontece por uma contribuição muito peculiar à arte sequencial do criador argentino. Comparado a outros grandes artistas do mesmo gênero, Quino traz uma originalidade que amplia o universo dos quadrinhos.
Nos Estados Unidos, Charles Schulz responde pela angústia própria da condição humana, Robert Crumb pela atmosfera underground de um país em desagregação e Jules Feiffer pela idiossincrasia de um mundo sem valores. Na França, a turma do Charlie Hebdo ataca pela violência e provocação e, no Brasil, Henfil nos deu a Graúna e a não remissão dos pecados da covardia. Quino vai incorporar a essa história uma ambígua dissonância entre realidade e fantasia, entre o mundo adulto e a criança, entre a política e o desejo de felicidade pessoal.
Mafalda é uma criança, mas fala como adulta. A primeira tentação é contrabandear suas ideias infantis como sendo a tradução de nossos problemas de maturidade. Ou seja, pela boca da garota o artista traria, em linguagem de criança, as raízes de nossos dilemas. No entanto, e por isso Mafalda é tão próxima e real, o que a menina expõe são questões humanas que nos atormentam, às quais parecemos ter perdido a capacidade de ver e compreender.
Em outras palavras, sentimos uma amarga derrota existencial pelo fato de flagrar, nas raízes da nossa constituição, pecados e defeitos que sempre estiveram lá, aguardando o momento de se revelar. Mafalda, ao rejeitar a tristeza, a opressão, a injustiça, a violência, a família conservadora, a escola repressora e o estilo de vida burguês – e a sopa, é claro – mostra como deixamos passar a oportunidade de tomar a vida em nossas mãos.
Quando Quino decidiu, depois de 10 anos, que era hora de deixar Mafalda de lado e partir para outros projetos, não estava abrindo mão do passado ou renegando sua mais querida criação. Mas, talvez, reconhecendo que já havia muito o que fazer com o legado daquela década. Que, hoje, Mafalda ainda tenha tanto a nos dizer é mais um acerto, infelizmente, da capacidade do artista em diagnosticar nossas fraquezas.
Em cerca de 10 anos, entre 1964 e 1973, foram 1.928 cartuns estrelado pela mais genial, indignada e, por que não, sublime menina em seus eternos e inacreditáveis 6 anos de idade. Mafalda começa a brilhar sozinha, com a companhia meio coadjuvante dos pais e professores, para logo em seguida ir ganhando companheiras e companheiros de jornada. De Manolito e Felipe, de Susanita ao irmão Guille, de Miguelito a Liberdade. Os personagens, como a chefe da turma, são tão únicos como exemplares.
São vários os motivos que explicam tanto amor do público por Mafalda. Em primeiro lugar, a capacidade de ser atemporal, respondendo sempre por provocações que não são de um único tempo ou lugar, mas inspiradas pela mais autêntica universalidade. Ela era uma garota que amava os Beatles e odiava sopa, o que é uma maneira de dizer que era aberta às transformações e inimiga das convenções que limitam o mundo.
Paradoxalmente, é exatamente por ser argentina, de classe média e viver em meio a um clima de opressão e consumismo que ela dá mais motivos para fazer parte do afeto de tantas pessoas nos mais distantes cantos do planeta. O que talvez se explique pela diferença entre charge e cartum. Os trabalhos de Quino não são comentários sobre questões de conjuntura, o que faria deles produtos datados, como as charges de jornais de todo dia, mas traduções em linguagem simples e poética de questões mais amplas e profundas.
Tecnicamente, Quino tem um raro senso poético para imagens e textos. O acabamento de seus desenhos, com cuidadosos detalhes e uso virtuosístico do preto e branco, evoca um lirismo doce em meio ao caos, que parece traduzir a personalidade de Mafalda, sempre maior que sua circunstância imediata. Com poucas palavras e tiradas filosóficas impagáveis, as histórias parecem compor um momento de iluminação atrás do outro, sempre com fundamento na realidade.
É assim que vai se constituindo, ao longo das tiras, um dicionário afetivo que ajuda a entender o que é liberdade, injustiça, exploração, família, educação, alienação, revolta, amor, indignação, velhice e morte, entre outros temas que dão sentido à vida. Quino propõe a transgressão de uma arte que nasceu próxima ao humor para destilar uma melancolia suave, que não faz rir, mas parece encantar a inteligência e deixar um sorriso doce-azedo na memória.
Mafalda se tornou a mais conhecida personagem de quadrinhos da América do Sul, ganhando admiradores em todo o mundo. Acho que é possível dizer que isso acontece por uma contribuição muito peculiar à arte sequencial do criador argentino. Comparado a outros grandes artistas do mesmo gênero, Quino traz uma originalidade que amplia o universo dos quadrinhos.
Nos Estados Unidos, Charles Schulz responde pela angústia própria da condição humana, Robert Crumb pela atmosfera underground de um país em desagregação e Jules Feiffer pela idiossincrasia de um mundo sem valores. Na França, a turma do Charlie Hebdo ataca pela violência e provocação e, no Brasil, Henfil nos deu a Graúna e a não remissão dos pecados da covardia. Quino vai incorporar a essa história uma ambígua dissonância entre realidade e fantasia, entre o mundo adulto e a criança, entre a política e o desejo de felicidade pessoal.
Mafalda é uma criança, mas fala como adulta. A primeira tentação é contrabandear suas ideias infantis como sendo a tradução de nossos problemas de maturidade. Ou seja, pela boca da garota o artista traria, em linguagem de criança, as raízes de nossos dilemas. No entanto, e por isso Mafalda é tão próxima e real, o que a menina expõe são questões humanas que nos atormentam, às quais parecemos ter perdido a capacidade de ver e compreender.
Em outras palavras, sentimos uma amarga derrota existencial pelo fato de flagrar, nas raízes da nossa constituição, pecados e defeitos que sempre estiveram lá, aguardando o momento de se revelar. Mafalda, ao rejeitar a tristeza, a opressão, a injustiça, a violência, a família conservadora, a escola repressora e o estilo de vida burguês – e a sopa, é claro – mostra como deixamos passar a oportunidade de tomar a vida em nossas mãos.
Quando Quino decidiu, depois de 10 anos, que era hora de deixar Mafalda de lado e partir para outros projetos, não estava abrindo mão do passado ou renegando sua mais querida criação. Mas, talvez, reconhecendo que já havia muito o que fazer com o legado daquela década. Que, hoje, Mafalda ainda tenha tanto a nos dizer é mais um acerto, infelizmente, da capacidade do artista em diagnosticar nossas fraquezas.
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