domingo, 4 de outubro de 2020

Golpista brasileiro em palanque alemão

Por Manuel Domingos Neto

Apologia à truculência política é proibida na Alemanha, mas a embaixada alemã em Brasília promoveu debate virtual entre um militar defensor da tortura e dois professores, um alemão e um brasileiro. O evento está disponível na página eletrônica da Embaixada.

O oficial começou exibindo legitimidade hereditária, atributo incompatível com o Estado democrático: teria “nascido” no Exército. O recrutamento endógeno é anti-republicano e fere a “meritocracia” castrense. A Corporação proclamou a República sem admitir seus pressupostos. O general revelou ainda a separação nebulosa entre militares da ativa e da reserva. Em traje civil, disse continuar “vivendo no Exército”.

Assumindo ares de porta-voz do “pensamento das Forças Armadas” afirmou não admitir que civis “tenham que mandar nos militares”. Com isso resumiu a longeva crise de identidade dos enfileirados: vestem-se como militares, pensam como políticos e não abandonam a vocação policial. Comunicou que seus camaradas defendem a ideologia liberal: ao Estado, caberia o papel de “facilitador”, não de “gestor do progresso nacional”. E proclamou a isenção ideológica das corporações!

Disse que a nação é credora do Exército, mas logo desdisse: a corporação salvou a sociedade! O golpe de 1964 teria sido patriótico. (Não mencionou o conluio dos golpistas com Washington). Justificou e minimizou a bestialidade da ditadura. Os ditadores teriam permitido eleições livres e liberdade de expressão. A redemocratização teria sido concedida pelo quartel. Mas a democracia fracassou: “após 35 anos da chamada redemocratização ainda não somos uma democracia de fato”. A ditadura teria afastado a política dos quartéis e interrompido a rotina de crises político-militares.

Para o general, as instituições públicas, em particular o Judiciário, são corrompidas, carentes de “responsabilidade política e cívica”. Os líderes do país interpretam e manipulam as leis “segundo interesses pessoais e grupais”. Para não perder o poder e suas “injustas regalias”, atuam unidos contra “as atuais forças da mudança”. Há “um notório movimento” de juízes e políticos para barrar a apuração de crimes.

Vaticinou iminente anomia e a necessidade de as Forças Armadas atuarem como poder moderador nos moldes da monarquia brasileira do século XIX. Interpretando o artigo 142 da Constituição, disse que uma “intervenção militar” poderia não ser legal, mas seria necessária e legítima diante da “falência dos poderes da República”. Só um golpe garantiria “a estabilidade impedindo que o país mergulhasse no estado de anomia”.

Tal um carbonário convicto de que chegou a hora da revolução, falou em nome do povo: “É triste, mas a sociedade perdeu a esperança na transformação moral e ética política por vias legais”.

Os professores ficaram desconcertados. Como contrapor a chuva de disparates?

O acadêmico alemão, desajeitado, disse que em seu país os militares não exprimem posicionamentos políticos e são proibidos de agir no âmbito doméstico, excetuados os casos de catástrofes naturais ou atentados terroristas. Isso ocorrendo, auxiliariam as instituições da Lei e da Ordem. Militares alemães respeitariam a Constituição e as leis internacionais.

O professor brasileiro contraditou o general citando literalmente outros militares. Registrou surpresa com a atuação das Forças Armadas na conformação do quadro político brasileiro. Revelou que um colega do general conclamara a tropa para o engajamento na eleição de Bolsonaro. Ironizou a propensão dos oficiais para interpretar a Constituição. Lembrou suas pesquisas sobre as contendas nos quartéis. Registrou o confronto entre Geisel e Silvio Frota. Poupando maior vexame ao general, não declinou a luxuriante produção de jornalistas e acadêmicos que o desmentia. Assinalou ainda a identidade ideológica entre o alto comando e o governo.

O general se ateve a passagens secundárias de seus interlocutores. Disse que o professor alemão desconhecia os méritos do almirante que comanda o ministério de Minas e Energia. Ao brasileiro, falou que Carlos Prestes estava a um passo do poder em 1964.

Do rol de aleivosias, uma se destaca por ser assacada em ambiente virtual da embaixada germânica: as Forças Armadas “rechaçam ideologias radicais e utópicas de qualquer matiz” que comprometam a paz interna e dividam a “nação”. “Somos patriotas e nacionalistas”. Ignorou que entre seus anfitriões as palavras “nação” e “nacionalismo” evocam o esmagamento dos mais frágeis e o massacre de vizinhos. Na última vez em que germanos se mobilizaram pela pátria o planeta foi encharcado de sangue. Muitos alemães pronunciam com cuidado as palavras “pátria” e “nação”. Repudiando utopias desagregadoras, o general exaltou a utopia que mais desagregou na história!

Este evento ocorreu no dia 15 de setembro. Os protagonistas foram o general Luis Eduardo Rocha Paiva e os professores Carlo Masala (University of the German Armed Forces – Munique) e João Roberto Martins Filho (Universidade Federal de São Carlos).

O general não foi preso nem o embaixador alemão recebeu pedido de explicações.

O fascismo é assim, vai tomando conta de todos os espaços. A Embaixada pode não ter agido com más intenções, mas em muito contribuiria evitando armar palanques para inimigos jurados da civilização.

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