Por Marcelo Zero
Emerso de brumas medievais, nosso ponderado chanceler declarou, na recente formatura do Rio Branco, que o Brasil é pária mundial e que deve ostentar essa honrosa condição como uma medalha.
Ficamos um tanto surpresos.
Ignorantes que somos dos tortuosos silogismos do tomismo diplomático, que hoje domina corações e mentes da alta cúpula do Itamaraty, pensávamos que o objetivo maior da política externa, de qualquer política externa, era o de manter boas relações com todos os países e fortalecer o prestígio e o protagonismo de um Estado no cenário mundial.
Estávamos redondamente enganados. Ou melhor, estávamos “planamente” equivocados.
Ensina-nos o chanceler pré-iluminista que a finalidade principal da política externa brasileira é o isolamento. Assim, a boa política externa seria uma antipolítica externa.
Não entende essa aparente contradição aqueles que não estão acostumados com o arguto e percuciente cérebro de cinzenta matéria e sombrio espírito do nosso chanceler.
Na realidade, a antipolítica externa de isolamento e desprestígio faz pleno sentido, no contexto do governo Bolsonaro.
Afinal, esse é o governo das antipolíticas.
Tome-se o exemplo da política ambiental. Os incautos diriam que o objetivo de tal política seria defender o equilíbrio ambiental, combater as mudanças climáticas e promover o desenvolvimento sustentável.
Não é.
No Brasil, a política ambiental tem como claro objetivo promover ativamente os desequilíbrios ambientais e a emissão de gases do efeito-estufa, bem como deixar queimar biomas inteiros e “abrir a porteira” para a vitoriosa passagem de atividades predatórias.
Trata-se, portanto, de uma antipolítica ambiental, de enorme sucesso internacional, como a antipolítica externa.
O mesmo pode ser dito da política de saúde.
Os ingênuos afirmariam que a política de saúde teria de ter como finalidades o combate efetivo à Covid-19, com base em evidências científicas, o fortalecimento do SUS, o reerguimento do Mais Médicos, do Farmácia Popular etc.
Não é. O objetivo da política de saúde do governo Bolsonaro é o de promover a disseminação do vírus, tratar a doença com drogas sem comprovação científica, fragilizar o SUS e acabar com todos os programas destinados a prover tratamentos e remédios para os mais pobres. Assim, trata-se de antipolítica de saúde, destinada a promover doença.
Coisa semelhante pode-se afirmar da política de direitos humanos, da política social, da política de educação etc. Este é um governo de desconstrução; não de construção.
Estamos, portanto, muito confortáveis, orgulhosos e satisfeitos com nossa posição de pária.
Preocupa, contudo, nossa futura condição de órfão.
Nossa antipolítica externa é consequência direta da aliança com Trump e a extrema-direita norte-americana.
Entretanto, o novo Messias do Ocidente deverá perder as eleições para Biden, que lidera não apenas no geral, mas na maioria dos estados-chave.
Este ano de 2020 não será igual a 2016, quando os institutos erraram nas amostragens e houve muito absenteísmo. Há grande mobilização contra Trump e as pesquisas estão levando em consideração, na devida proporção, o voto dos homens brancos sem título universitário, segmento no qual o Messias é mais forte, sabe-se lá o porquê.
A perda do papai Trump, a quem Bolsonaro devota incondicional amor filial, tornará órfão o capitão.
As relações do governo Bolsonaro com um futuro governo Biden não deverão ser muito amistosas, por motivos óbvios.
Haverá pressões severas no campo ambiental e no campo dos direitos humanos. O apoio político escancarado e impudico do chanceler, do presidente e de seus filhos a Trump não contribuirá para boas relações bilaterais.
Não obstante, do ponto de vista geopolítico, não haverá mudanças substantivas na política dos EUA para a América Latina e o Brasil.
A doutrina atual de segurança nacional dos EUA, que colocou a grande disputa pelo poder mundial com China, Rússia e aliados no centro da geopolítica norte-americana, foi concebida na administração Obama e lançada em 2010.
Em 2017, Trump confirmou, em linhas gerais, tal política, retirando apenas as mudanças climáticas como uma das grandes ameaças à segurança dos EUA.
Haverá, portanto, a continuidade dessa política. Em política externa, nada mais semelhante a um republicano do que um democrata. À exceção de Sanders, é claro. Mas Biden não é Sanders.
Biden continuará a pressionar os países da nossa região a combaterem a influência de China e Rússia no subcontinente. É possível até que essa pressão aumente.
Regimes como o de Maduro, na Venezuela, a quem Biden chama abertamente de “ditador”, continuarão a serem vistos como ameaças aos interesses norte-americanos e, como tal, estarão sujeitos a sanções e pressões de toda ordem, inclusive militar. Em sua campanha presidencial na Flórida, estado-chave para as eleições, Biden prometeu aos anticastristas continuar a pressionar a “ditadura cubana”. Assim, até mesmo a détente de Obama em Cuba poderá ser comprometida pela nova administração democrata.
Para piorar o cenário, Biden deverá ser mais agressivo do que Trump em relação à Rússia e à Coreia do Norte, por exemplo. Seus laços com a Ucrânia poderão levá-lo a intervir mais fortemente num conflito geoestratégico que tem potencial para comprometer a segurança do mundo.
O Brasil, caso ainda tivesse uma política externa, poderia contribuir para limitar a pressão dos EUA sobre a região, voltando a apostar na integração regional, na reconstrução do Mercosul, da Unasul e da Celac, na não-intervenção, na solução pacífica dos conflitos etc.
Párias e órfãos, porém, pouco ou nada podem fazer. Vira-latas tampouco.
Uma coisa é certa: com Trump ou com Biden continuaremos a passar vergonha.
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