Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Nunca uma eleição americana foi tão importante para nós. Nem é preciso explicar por quê. O brasileiro acompanhou a disputa nos Estados Unidos com um olho (ou dois!) cravados aqui no Brasil. Era como se estivéssemos diante de uma antevisão do drama que viveremos nas nossas próprias eleições presidenciais em 2022, momento em que o Trump tropical também tentará a sua reeleição.
“Antevisão” é exagero nosso, certamente. Mas do ponto de vista emocional é isso mesmo que vivenciamos. Pode até ser que o Trump daqui, ainda mais rastaquera que o de lá, não alcance as eleições de 2022. Mas essa esperança parece ser frágil, lamentavelmente. A maior parte da oposição já se posiciona para disputar a eleição contra ele. Alguns, mais afoitos, lançam nomes e até chapas completas. Ejaculação precoce, sem dúvida. Seja como for, o cenário central, no momento, é o seguinte: Bolsonaro chega ao segundo turno, restando saber quem chega junto com ele. Um candidato de esquerda? Ou um candidato neoliberal?
Cabe frisar: cenário central do momento. Previsões em política são, como se sabe, ainda mais precárias do que em economia. A profecia de hoje difere da previsão de ontem. Pode até ser que Bolsonaro sofra impeachment ou renuncie. Quem sabe? Motivos não faltam.
Mas fecho esse parêntese esperançoso e volto à eleição dos Estados Unidos. Alguns espíritos eminentemente céticos alertam contra comemorações. Ora, ora, a vida é curta e dura, e nunca se deve deixar passar em branco uma oportunidade para celebrar. E não temos então motivos para comemorar? É mais uma boa notícia que nos chega do exterior: Bolívia, Chile e agora a vitória de Biden.
Escrevo “vitória de Biden” e me apresso a retificar – é a derrota de Trump que estamos comemorando. Biden não inspira entusiasmo. Mesmo assim cabe a comemoração. Basta imaginar, leitor, como estaríamos hoje obrigados a digerir a notícia desastrosa da reeleição de Trump. Basta lembrar o que representaria a sua reeleição para os Estados Unidos e para o resto do mundo, especialmente para os países que embarcaram em alguma variante do trumpismo. Entre esses países, o Brasil se destaca. Fora os próprios americanos, seríamos talvez os mais prejudicados pela confirmação dos quatro anos de retrocesso, ignorância e barbárie que marcaram a presidência de Donald Trump.
Quem é Biden? Não vamos pré-julgar, nem descartar completamente um cenário de mudanças positivas para o Estados Unidos. Não há dúvida, porém, de que Biden é um homem do establishment democrata, um político de tipo tradicional, inclinado à rotina. Estará à altura dos desafios do momento? Terá condições de se reinventar minimamente? Talvez não.
Não quero dar palpite na vida dos outros. Mas alguns traços da situação americana parecem evidentes. Primeiro, Trump foi derrotado, sim, ainda que não queira reconhecê-lo – mas não fragorosamente. A vitória de Biden foi apertada, bem mais do que previam as pesquisas de intenção de voto. E as eleições para o Congresso confirmaram o quadro de profunda divisão e polarização do país. Tudo indica que o trumpismo continuará, mesmo sem Trump.
Segundo ponto: a ascensão de Trump não foi uma simples aberração ou um mero acidente de percurso. Foi um desastre longamente preparado. O trumpismo é anterior a Trump. Eu morava em Washington no período em que o processo lançava suas raízes e não me escapava a verdadeira mutação em curso naquele país. Barack Obama é que foi um ponto fora da curva.
A ascensão do trumpismo foi o resultado da crise do neoliberalismo, isto é, o resultado de décadas de concentração da renda e da riqueza, de instabilidade financeira, de desprezo e descaso da elite globalizada pelo cidadão médio, de transformação da democracia em plutocracia. A vocação autoritária e antidemocrática do neoliberalismo ficou escancarada. Além disso, a degradação do Partido Republicano, a hegemonia nesse partido de um conservadorismo estreito e ignorante, a maneira destrutiva como fizeram oposição à presidência moderada, com pretensões “bipartidárias”, de Barack Obama – tudo isso antecedeu a chegada de Trump, tudo isso a preparou e a favoreceu.
Seria preciso, então, reconhecer que o paradigma neoliberal fracassou e que tentar ressuscitá-lo com Biden não livrará os Estados Unidos da ameaça de regressão representada pelo trumpismo. A pergunta pertinente talvez seja a seguinte: terá o establishment americano como se reinventar? Ou o governo Biden será uma tentativa de voltar à “normalidade” neoliberal, ao paradigma que prevaleceu, como pequenas variações, desde Reagan até Obama? Se for isso, as chances de sucesso são pequenas. E o trumpismo continuará vivo, pois suas raízes sociais e econômicas não terão sido cortadas.
No Brasil, em certos meios de direita ou, vá lá, de centro-direita, é mesmo a vitória de Biden que está sendo celebrada – e não apenas a derrota de Trump. A esperança desse pessoal é que se possa repetir a façanha aqui – derrotar Bolsonaro com um candidato conservador, mantendo a agenda neoliberal intacta. Aqui como lá, a turma da bufunfa está em oposição ao trumpismo/bolsonarismo. Aqui como lá, as classes dirigentes tradicionais se dão conta de que não é viável governar com tanta ignorância e despreparo.
Só que, no caso brasileiro, o bolsonarismo tenta, via Paulo Guedes, acolher a agenda neoliberal. Tenta. Mas sem convicção, sem consistência de propósito – para desespero dos endinheirados e seus porta-vozes omnipresentes na mídia.
O nosso neoliberalismo consegue ser pior, mais doutrinário, mais resistente à mudança do que o neoliberalismo na matriz. Nos Estados Unidos, os setores mais esclarecidos da elite parecem ter se dado conta de que o modelo neoliberal excludente e elitista não tem condições de continuar. Precisa, no mínimo, de alguns retoques. Aceita-se cada vez mais que a redistribuição de renda e da riqueza precisa entrar na agenda política.
Por aqui, as preocupações sociais são mais hipócritas e mais vazias. O que a turma da bufunfa tupiniquim quer mesmo é destruir o pouco que temos de Estado de bem-estar social, em nome do ajuste fiscal e das reformas modernizantes. E o suposto “centro” da política não passa, no mais das vezes, de uma versão edulcorada da extrema-direita.
* Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista “Carta Capital” em 13 de novembro de 2020.
* Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.
E-mail: paulonbjr@hotmail.com
Twitter: @paulonbjr
Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br
Portal: www.nogueirabatista.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: