terça-feira, 10 de novembro de 2020

EUA: o neofascismo perde seu farol

Charge: Luc Vernimmen/Bélgica
Por Luiz Filgueiras e Graça Druck, no site Outras Palavras:


Na recente eleição nos EUA, muito mais importante do que a vitória de Joe Biden foi a derrota de Donald Trump. Por um motivo evidente: o impacto desse evento, tanto no plano mundial quanto na América Latina, em especial no Brasil, se fará sentir em todos os âmbitos das sociedades (na economia, na política, na cultura etc).

Desde 2008, a partir da avassaladora crise geral do capitalismo e da democracia liberal (que já vinha dando sinais de falência muito antes), a extrema direita ganhou a cena nos quatro cantos do mundo: autoritarismo político, defesa radical do “livre mercado”, certo tipo de nacionalismo, xenofobia (contra os imigrantes), racismo, misoginia, homofobia, fundamentalismo religioso, valores culturais e morais pré-modernos, negacionismo do conhecimento científico-especializado e da gravidade de eventos como a crise climática-ambiental e a atual pandemia, culto a um passado idealizado (que nunca existiu) e ódio generalizado contra o “outro”. Em suma, belicosidade, violência, intolerância, “teorias da conspiração” e a prática de mentir despudoradamente em todas as esferas da vida política e social — que contaminou todas as relações sociais, fraturando até mesmo amizades e o convívio no interior das famílias.

No plano mundial, a expressão maior dessa nossa realidade tóxica se corporificou em Trump e no seu Governo. Um sujeito polêmico em toda a sua trajetória de bilionário, celebridade e posicionamentos políticos contraditórios, tendo acumulado inúmeros processos nos mais distintos âmbitos de sua vida (na esfera familiar, como empresário e no exercício profissional na mídia); mas que conseguiu submeter o Partido Republicano e empurrá-lo ainda mais para a direita, dele se apropriando e transformando-o em instrumento de seu narcisismo, de sua megalomania e, principalmente, de seus valores e crenças reacionários e de extrema-direita. Como todos os fascistas, do passado e do presente, cristalizou a sua falseada imagem como um personagem outsider, antissistema e antiestablishment, apesar de ter construído toda sua vida no seu interior.

Mas, como diz o ditado, Trump, assim como outros, era “o sujeito certo na hora certa”: a crise de hegemonia do neoliberalismo, estreitamente relacionada à crise da democracia liberal, “pariu” o neofascismo em várias partes do mundo e, com ele, personagens como Trump, Bolsonaro, Erdogan (Turquia), Orbán (Hungria), Salvini (Itália), Abascal (Espanha), Le Pen (França), Duterte (Filipinas), entre outros. Com variações de estilos e circunstâncias nacionais que lhes são próprias, todos eles fazem parte da onda neofascista que vem varrendo o mundo nas duas primeiras décadas do século XXI. Trata-se, portanto, de um fenômeno Mundial.

E é mundial porque é resultado do mundo que o capitalismo começou a construir desde a segunda metade da década de 1970, erguido sobre a crise do regime de acumulação fordista, da social-democracia e do keynesianismo. Um “novo mundo” produto de um processo que uniu uma reestruturação produtiva radical dos sistemas produtivos (com destaque para as novas tecnologias da informação e da comunicação e novos modos de gestão da força de trabalho), uma nova onda (a derradeira) de mundialização e financeirização do capitalismo (que se impôs globalmente) e a ascensão político-ideológica do neoliberalismo (primeiro na Inglaterra e EUA e, depois, no resto do mundo).

O resultado decorrente desse “novo mundo” (de suas reformas e políticas econômico-sociais) já é largamente conhecido: aumento colossal da concentração da riqueza e da renda, ampliação das desigualdades entre os países do centro e da periferia do sistema capitalista e no interior de cada país, crescimento do desemprego, da informalidade e da precarização do trabalho, aumento da pobreza, instabilidade e insegurança crescentes, espalhamento da economia do crime; enfim, exclusão social e esgarçamento das relações sociais. Essa obra, do capital financeiro e do neoliberalismo colocou em xeque a legitimidade da democracia liberal, mesmo nos países (EUA e os da Europa) nos quais se achava que ela estava consolidada.

O neofascismo, portanto, não é a causa da crise, mas resultado e produto dela; surge como uma suposta solução para remediar os males produzidos pelo capitalismo neoliberal financeirizado, mas que na verdade aprofunda o problema, aguçando ainda mais a crise: a sua agenda econômica é uma radicalização do neoliberalismo (mais do mesmo do que já vem sendo feito há quatro décadas, uma espécie de ultraneoliberalismo), cujas reformas e políticas econômico-sociais produziram as sucessivas crises localizadas (em países e regiões) ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000 e, finalmente, a crise mundial de 2008. Na verdade, a pseudossolução oferecida é o ataque à democracia liberal e as suas instituições, através da constituição e mobilização de um movimento de massa (típica de todos os fascismos), do uso de milícias digitais e da propagação de mentiras e confusão nas redes sociais (típicas do neofascismo) – tudo isso soldado por uma agenda cultural e moral retrógrada, pautada no fundamentalismo evangélico (em especial o neopentecostal) de natureza pré-moderna.

Desse modo, a derrota de Trump tem uma importância política que não pode ser minimizada, pois impacta além das fronteiras dos EUA; ela expressa a derrota da extrema-direita e de seus valores regressivos no plano mundial. É a culminância de uma série de derrotas anteriores sofridas na Argentina e, mais recentemente, no Chile e na Bolívia. Mas, por outro lado, deve se destacar o óbvio: é o enfraquecimento do neofascismo no mundo, mas não imediatamente do neoliberalismo e do imperialismo.

Joe Biden se elegeu na onda de rejeição a Trump que varreu os grandes centros urbanos dos EUA (nas 50 maiores cidades, Trump ganhou apenas em cinco), que se expressou particularmente em grandes manifestações de rua contra o racismo, tendo por motivo desencadeador mais um assassinato grotesco de um cidadão negro por um policial. Essas mobilizações, direcionando-se contra o Governo Trump e denunciando suas políticas discriminatórias em relação aos imigrantes e as chamadas “minorias” em geral, impuseram-lhe um enorme desgaste. Esse movimento, nas eleições, reforçou a campanha para exercer o direito do voto, claramente associada à retirada de Trump; o recorde histórico do número de votantes evidenciou o seu sucesso, bem como explica a tentativa de Trump em “melar” as eleições, pressionando para paralisar a contagem dos votos e acusando a existência de fraudes, que em momento algum foram comprovadas. Nessa circunstância, Biden e o seu governo serão objeto de grande pressão, tanto dos segmentos sociais que foram às ruas e foram decisivos para a sua vitória, quanto da militância neofascista inconformada com a derrota de Trump.

Além disso, jogou decisivamente contra Trump a forma irresponsável como tratou a pandemia, que serviu de exemplo a Bolsonaro; não por uma mera coincidência os EUA e o Brasil são os dois países mais afetados pela Covid-19 (número de contaminados e de óbitos). Por fim, uma das suas principais promessas durante a campanha eleitoral de 2016, a volta da indústria e dos empregos para os EUA, não se concretizou – o chamado “cinturão da ferrugem”, região afetada pela desindustrialização, maiores índices de desemprego no país e aumento da pobreza, não teve uma volta ao passado ou uma volta aos bons tempos.

Na verdade, Biden é um político tradicional do establishment dos EUA; situado na ala direita do Partido Democrata, elegeu-se senador defendendo os interesses dos bancos e apoiou decididamente a invasão do Iraque. Não se pode alimentar ilusões a seu respeito: o seu governo não alterará, no fundamental, a agenda econômica neoliberal já consolidada e consensual de ambos os partidos (Democrata e Republicano), nem tampouco as relações do seu país com o resto do mundo. Basta lembrar que foi no Governo de Barack Obama, tido como mais “progressista” e à “esquerda” do que Biden, que a ex-presidente Dilma Rousseff, assim como outros governantes (Ângela Merkel, por exemplo), e a Petrobrás foram alvos de escuta e vigilância ilegal. Um claro exemplo do uso das atuais tecnologias de informação e comunicação como instrumento de ataque e defesa do imperialismo, fazendo parte de um novo tipo de guerra, denominada de “guerra híbrida” – que explora as fragilidades internas de outros países, desestabilizando-os através do incitamento de suas populações contra os seus governos. Expediente bastante utilizado na Bolívia e no Brasil para a deposição de seus respectivos presidentes, bem como na tentativa golpista na Venezuela.

Isso significa que a crise de hegemonia do neoliberalismo (determinada por suas reformas e políticas regressivas e a exclusão social que promove), assim como o descrédito da democracia liberal, continuarão em andamento e, admitindo-se que o neoliberalismo e o imperialismo não se reformarão endogenamente, necessitando por isso cada vez mais de governos autoritários e Estados de exceção, a extrema-direita, em particular o neofascismo, continuará a fazer parte da paisagem política mundial. De qualquer sorte, embora a derrota de Trump e o enfraquecimento da extrema-direita no plano mundial não signifique o começo da superação da crise do capitalismo neoliberal, fortalece, sem dúvida, as forças políticas democráticas, na sua luta contra o neofascismo e o neoliberalismo.

No que se refere ao Brasil, amplia-se, internacionalmente, o isolamento político de Bolsonaro e de seu governo em todo continente americano (norte e sul); a sua política externa subserviente aos interesses dos EUA, tal como traduzidos pelo Governo Trump, e que jogou no lixo a tradição da diplomacia brasileira, perderá o seu guia e farol – o que, provavelmente deverá implicar em algum tipo de mudança. A mesma dificuldade afetará a sua política ambiental destrutiva, assim como a forma como vem enfrentando a pandemia internamente. No plano interno, fica evidente a perda da grande referência de Bolsonaro e do movimento neofascista, enfraquecendo-os política e ideologicamente, bem como na dimensão simbólica, ao mesmo tempo em que dá um novo alento para o campo político antineofascista e antineoliberal.

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