Que imagens ficarão nas nossas retinas tão fatigadas como marcas e cicatrizes deste 2020 tão pandêmico quanto pandemônico?
Vamos recorrer a certas – ou incertas – modalidades literárias para arriscar alguns palpites.
No palco trágico ficarão as fotos das covas rasas, improvisadas aos milhares em diferentes pontos do Planeta, devido à mortandade que a Covid-19 provocou, algumas vezes ajudada pela incúria genocida de governantes como Trump, Bolsonaro e inicialmente Boris Johnson.
Se nos movermos para o plano dramático, encontraremos aquilo que talvez venha a ser o símbolo dos paradoxos deste ano terrível: a máscara, incensada por muitos como o ícone do salvamento de vidas, condenada pelos negacionistas de todas as estirpes e pontos cardeais como a tenaz do autoritarismo estatal a cercear o campo das “liberdades individuais”, qual seja, neste caso o campo onde se manifesta o desprezo pela própria vida e sobretudo pela vida dos outros.
Não pode se perder de vista um aspecto irônico da obrigatoriedade do uso da máscara em diversas circunstâncias.
Esta obrigatoriedade veio na esteira das práticas islamofóbicas do melodrama “Cristão-Ocidental”, perseguindo e proibindo o uso de burcas, lenços e outras vestimentas das mulheres muçulmanas, muitas vezes por ocultarem os seus rostos.
Entrando na seara da tragicomédia, podemos privilegiar as frases toscas de Bolsonaro e Trump, um falando de “gripezinha” em relação à pandemia, obstinando-se em “desprestigiar” as vacinas, em especial a “inimiga” chinesa, e o outro, derrotado em parte pela sua incúria diante da catástrofe norte-americana, aferrando-se tenazmente à sua cadeira no Salão Oval da Casa Branca.
Assemelham-se ambos àqueles personagens que o filósofo Henri Bergson caracteriza como “autômatos” do baixo cômico, que reagem a tudo sempre da mesma maneira monocórdica e grotesca, negando o real do contexto em que estão, e vivendo no plano alternativo de seu narcisismo egocêntrico, opaco e obtuso.
Estivéssemos de fato num palco, teríamos uma comédia de fato satírica, prato feito para um Aristófanes, um Plauto, para encarnar o Soldado Fanfarrão da Commedia del Arte, ou, mais proximamente, para a comédia de costumes do nosso Martins Pena ou para o olhar mordaz de Oswald de Andrade em O Rei da Vela.
Como estamos no teatro da vida real, vemos que este automatismo bufo de ambos é um dos vetores da tragédia que estamos vivendo: daí, a sensação de tragicomédia. Ou até, no limite, de Teatro do Absurdo.
Passemos ao épico. Dois tipos de personagens concorrem – amigavelmente entre si – ao proscênio deste gênero. De um lado, estão os milhões de trabalhadores e trabalhadoras da área da saúde, lutando para salvar vidas, muitas vezes em condições adversas, pondo em risco as próprias. Do outro os milhões de militantes que, muitas vezes também pondo em risco a própria vida, se empenharam durante ano fatídico na luta contra o racismo.
No dia 25 de maio do corrente ano, o negro George Floyd foi assassinado na cidade de Minneapolis, estado de Minnesota, nos Estados Unidos, pelo policial branco Derek Chauvin com a cumplicidade de outros três colegas de farda. Floyd fora detido sob a acusação de passar uma nota falsa de 20 dólares ao comprar cigarros numa loja de conveniência. Algemado e derrubado no chão, foi sufocado pelo joelho do policial pressionando seu pescoço durante mais de 8 minutos.
A partir daí o movimento antirracista explodiu nos Estados Unidos e no mundo inteiro, sob a consigna “Black Lives Matter”, “Vidas Negras Importam”. A extrema-direita e seus governantes acusaram os manifestantes de “terrorismo”, acusando também do mesmo os manifestantes que se reuniam sob a bandeira do antifascismo.
As manifestações exigiam uma tripla coragem: a de desafiar a repressão policial, a de desafiar a pandemia e também a de manter as regras indispensáveis de proteção sanitária, ridicularizadas muitas vezes por aqueles mesmos governantes que acusavam os militantes de “práticas terroristas”.
Neste ano de 2020 a luta contra o racismo liderou a luta contra as outras formas de discriminação, aquelas contra outros grupos fragilizados, minoritários ou não, encarnando também, simbolicamente, a luta contra a discriminação social por condições adversas como pobreza, diferenças religiosas, culturais.
Se passarmos ao gênero lírico, as coisas se complicam.
Primeiro, porque vivemos todos, os imersos no Ocidente Capitalista Ampliado (porque inclui grande parte do ex-Leste Comunista Europeu), num estado de lirismo exaltado, de acordo com algumas versões modernas da Poética Clássica (consultemos Emil Staiger, Grundbegriffe der Poetik (1946), Conceitos fundamentais de Poética, Tempo Brasileiro, 1969).
Explico: para o filósofo suíço, o que define os gêneros literários clássicos é a relação entre a voz articuladora do texto (doravante chamada de “poeta”), o texto, e o leitor ou a audiência. Na tradição original do épico, a corte grega, poeta e audiência estão face a face, porque o poeta canta o “texto”, que não era escrito.
No gênero dramático, o poeta some atrás do “texto”, cujo proscênio é ocupado pelos personagens que se dirigem diretamente à audiência. No gênero lírico, acontece o contrário: a audiência some atrás do poema, porque o poeta parece se dirigir diretamente à fonte de seu poema, seja a Natureza, Deus, sua autoprojeção, o que seja.
Como Narciso, o poeta lírico se dirige à sua imagem, que assume e projeta a humanidade.
Hoje vivemos, neste Ocidente Capitalista Ampliado, densamente introvertido entre seus triunfos e crises, dominado pela percepção dos espaços celulásticos, smartfônicos, virtuais e televisivos, um momento de extremo narcisismo. As telas que nos cercam subsumem o Outro, a Alteridade.
Nada mais veementemente narcísico do que uma discussão pela internet. O nosso “poeta”, transfigurado em “internauta” ou o que seja, no fundo só enxerga a si mesmo na tela.
Por isto os textos se tornam tão agressivos, tão irritados quanto breves: não se vê o “Outro” e sua reação às nossas palavras candentes de subjetividade exaltada.
Plataformas como o Skype nos deram uma breve visão do rosto alheio, logo sumida na pequenez da telinha do Smartphone e do WhatsApp, ou nos labirintos de Facebooks, Instagrams, Twitters, etc.
Vivemos um tempo acelerado de reclamos permanentes, satisfações efêmeras e frustrações duradouras. Diz o ditado antigo que para o inglês, nada mais velho do que o “Times” de ontem; para o francês, nada mais envelhecida à tarde do que a baguete da manhã. Precisaríamos acrescentar: para nós, nada mais superado do que o post de duas ou três horas atrás.
Há quem possa sobreviver a este naufrágio no individualismo sem limites.
Para mim o ícone máximo desta sobrevivência foi a intervenção contínua em nosso 2020 por parte do Papa Chico I, com suas orações, homílias, encíclicas, sermões, frases cotidianas, o que seja. Chico I parece se dirigir diretamente à Natureza Ameaçada e por isto mesmo Ameaçadora, a Deus (o seu Deus Misericordioso, não o Ogro cultuado pela extrema-direita), a Humanidade Ampliada, que não se limita apenas ao universo católico ou cristão.
Leva consigo a palavra de tolerância contra a intolerância destes tempos individualistas que se agravaram depois da crise de 2008 e dos planos salvacionistas da austeridade neoliberal. Têm razão Steve Banner e o cardeal Raymond Burke quando consideram Chico I seu inimigo principal.
Sei que há muita gente que torce o nariz, alegando que a Igreja Católica continua a ter dogmas conservadores (o que é verdade) e que o Papa faz pouco contra isto.
Lembro, humildemente, que Chico I foi eleito Papa de Roma, não dirigente de uma célula de algum partido de extrema-esquerda na periferia de uma grande cidade. E que ele, ao contrário de muita gente que se acomoda, vem fazendo o que pode.
Fazer o que se pode, ambicionando poder fazer cada vez mais: quem sabe esta seja a lição profunda deste 2020 que começou mal, continuou mal e vai terminar nos deixando um legado de dúvidas e incertezas.
Estamos na condição daqueles marinheiros da expedição de Colombo, a certa altura do filme de Ridley Scott 1492, a Conquista do Paraíso: parados no meio do oceano, sem vento, com as tarefas do nosso cotidiano desorganizado se avolumando, se acelerando, sabendo de onde partimos, mas sem ter a menor ideia de para onde vamos.
Para agravar a nossa situação, nós, os espectadores do filme, sabemos que o chefe da expedição, o navegante Colombo (Gerard Depardieu), tem uma vaga ideia de para onde vai, mas que ela é completamente equivocada.
Que Chico I nos abençoe.
Vamos recorrer a certas – ou incertas – modalidades literárias para arriscar alguns palpites.
No palco trágico ficarão as fotos das covas rasas, improvisadas aos milhares em diferentes pontos do Planeta, devido à mortandade que a Covid-19 provocou, algumas vezes ajudada pela incúria genocida de governantes como Trump, Bolsonaro e inicialmente Boris Johnson.
Se nos movermos para o plano dramático, encontraremos aquilo que talvez venha a ser o símbolo dos paradoxos deste ano terrível: a máscara, incensada por muitos como o ícone do salvamento de vidas, condenada pelos negacionistas de todas as estirpes e pontos cardeais como a tenaz do autoritarismo estatal a cercear o campo das “liberdades individuais”, qual seja, neste caso o campo onde se manifesta o desprezo pela própria vida e sobretudo pela vida dos outros.
Não pode se perder de vista um aspecto irônico da obrigatoriedade do uso da máscara em diversas circunstâncias.
Esta obrigatoriedade veio na esteira das práticas islamofóbicas do melodrama “Cristão-Ocidental”, perseguindo e proibindo o uso de burcas, lenços e outras vestimentas das mulheres muçulmanas, muitas vezes por ocultarem os seus rostos.
Entrando na seara da tragicomédia, podemos privilegiar as frases toscas de Bolsonaro e Trump, um falando de “gripezinha” em relação à pandemia, obstinando-se em “desprestigiar” as vacinas, em especial a “inimiga” chinesa, e o outro, derrotado em parte pela sua incúria diante da catástrofe norte-americana, aferrando-se tenazmente à sua cadeira no Salão Oval da Casa Branca.
Assemelham-se ambos àqueles personagens que o filósofo Henri Bergson caracteriza como “autômatos” do baixo cômico, que reagem a tudo sempre da mesma maneira monocórdica e grotesca, negando o real do contexto em que estão, e vivendo no plano alternativo de seu narcisismo egocêntrico, opaco e obtuso.
Estivéssemos de fato num palco, teríamos uma comédia de fato satírica, prato feito para um Aristófanes, um Plauto, para encarnar o Soldado Fanfarrão da Commedia del Arte, ou, mais proximamente, para a comédia de costumes do nosso Martins Pena ou para o olhar mordaz de Oswald de Andrade em O Rei da Vela.
Como estamos no teatro da vida real, vemos que este automatismo bufo de ambos é um dos vetores da tragédia que estamos vivendo: daí, a sensação de tragicomédia. Ou até, no limite, de Teatro do Absurdo.
Passemos ao épico. Dois tipos de personagens concorrem – amigavelmente entre si – ao proscênio deste gênero. De um lado, estão os milhões de trabalhadores e trabalhadoras da área da saúde, lutando para salvar vidas, muitas vezes em condições adversas, pondo em risco as próprias. Do outro os milhões de militantes que, muitas vezes também pondo em risco a própria vida, se empenharam durante ano fatídico na luta contra o racismo.
No dia 25 de maio do corrente ano, o negro George Floyd foi assassinado na cidade de Minneapolis, estado de Minnesota, nos Estados Unidos, pelo policial branco Derek Chauvin com a cumplicidade de outros três colegas de farda. Floyd fora detido sob a acusação de passar uma nota falsa de 20 dólares ao comprar cigarros numa loja de conveniência. Algemado e derrubado no chão, foi sufocado pelo joelho do policial pressionando seu pescoço durante mais de 8 minutos.
A partir daí o movimento antirracista explodiu nos Estados Unidos e no mundo inteiro, sob a consigna “Black Lives Matter”, “Vidas Negras Importam”. A extrema-direita e seus governantes acusaram os manifestantes de “terrorismo”, acusando também do mesmo os manifestantes que se reuniam sob a bandeira do antifascismo.
As manifestações exigiam uma tripla coragem: a de desafiar a repressão policial, a de desafiar a pandemia e também a de manter as regras indispensáveis de proteção sanitária, ridicularizadas muitas vezes por aqueles mesmos governantes que acusavam os militantes de “práticas terroristas”.
Neste ano de 2020 a luta contra o racismo liderou a luta contra as outras formas de discriminação, aquelas contra outros grupos fragilizados, minoritários ou não, encarnando também, simbolicamente, a luta contra a discriminação social por condições adversas como pobreza, diferenças religiosas, culturais.
Se passarmos ao gênero lírico, as coisas se complicam.
Primeiro, porque vivemos todos, os imersos no Ocidente Capitalista Ampliado (porque inclui grande parte do ex-Leste Comunista Europeu), num estado de lirismo exaltado, de acordo com algumas versões modernas da Poética Clássica (consultemos Emil Staiger, Grundbegriffe der Poetik (1946), Conceitos fundamentais de Poética, Tempo Brasileiro, 1969).
Explico: para o filósofo suíço, o que define os gêneros literários clássicos é a relação entre a voz articuladora do texto (doravante chamada de “poeta”), o texto, e o leitor ou a audiência. Na tradição original do épico, a corte grega, poeta e audiência estão face a face, porque o poeta canta o “texto”, que não era escrito.
No gênero dramático, o poeta some atrás do “texto”, cujo proscênio é ocupado pelos personagens que se dirigem diretamente à audiência. No gênero lírico, acontece o contrário: a audiência some atrás do poema, porque o poeta parece se dirigir diretamente à fonte de seu poema, seja a Natureza, Deus, sua autoprojeção, o que seja.
Como Narciso, o poeta lírico se dirige à sua imagem, que assume e projeta a humanidade.
Hoje vivemos, neste Ocidente Capitalista Ampliado, densamente introvertido entre seus triunfos e crises, dominado pela percepção dos espaços celulásticos, smartfônicos, virtuais e televisivos, um momento de extremo narcisismo. As telas que nos cercam subsumem o Outro, a Alteridade.
Nada mais veementemente narcísico do que uma discussão pela internet. O nosso “poeta”, transfigurado em “internauta” ou o que seja, no fundo só enxerga a si mesmo na tela.
Por isto os textos se tornam tão agressivos, tão irritados quanto breves: não se vê o “Outro” e sua reação às nossas palavras candentes de subjetividade exaltada.
Plataformas como o Skype nos deram uma breve visão do rosto alheio, logo sumida na pequenez da telinha do Smartphone e do WhatsApp, ou nos labirintos de Facebooks, Instagrams, Twitters, etc.
Vivemos um tempo acelerado de reclamos permanentes, satisfações efêmeras e frustrações duradouras. Diz o ditado antigo que para o inglês, nada mais velho do que o “Times” de ontem; para o francês, nada mais envelhecida à tarde do que a baguete da manhã. Precisaríamos acrescentar: para nós, nada mais superado do que o post de duas ou três horas atrás.
Há quem possa sobreviver a este naufrágio no individualismo sem limites.
Para mim o ícone máximo desta sobrevivência foi a intervenção contínua em nosso 2020 por parte do Papa Chico I, com suas orações, homílias, encíclicas, sermões, frases cotidianas, o que seja. Chico I parece se dirigir diretamente à Natureza Ameaçada e por isto mesmo Ameaçadora, a Deus (o seu Deus Misericordioso, não o Ogro cultuado pela extrema-direita), a Humanidade Ampliada, que não se limita apenas ao universo católico ou cristão.
Leva consigo a palavra de tolerância contra a intolerância destes tempos individualistas que se agravaram depois da crise de 2008 e dos planos salvacionistas da austeridade neoliberal. Têm razão Steve Banner e o cardeal Raymond Burke quando consideram Chico I seu inimigo principal.
Sei que há muita gente que torce o nariz, alegando que a Igreja Católica continua a ter dogmas conservadores (o que é verdade) e que o Papa faz pouco contra isto.
Lembro, humildemente, que Chico I foi eleito Papa de Roma, não dirigente de uma célula de algum partido de extrema-esquerda na periferia de uma grande cidade. E que ele, ao contrário de muita gente que se acomoda, vem fazendo o que pode.
Fazer o que se pode, ambicionando poder fazer cada vez mais: quem sabe esta seja a lição profunda deste 2020 que começou mal, continuou mal e vai terminar nos deixando um legado de dúvidas e incertezas.
Estamos na condição daqueles marinheiros da expedição de Colombo, a certa altura do filme de Ridley Scott 1492, a Conquista do Paraíso: parados no meio do oceano, sem vento, com as tarefas do nosso cotidiano desorganizado se avolumando, se acelerando, sabendo de onde partimos, mas sem ter a menor ideia de para onde vamos.
Para agravar a nossa situação, nós, os espectadores do filme, sabemos que o chefe da expedição, o navegante Colombo (Gerard Depardieu), tem uma vaga ideia de para onde vai, mas que ela é completamente equivocada.
Que Chico I nos abençoe.
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