Na guerra contra a ciência movida por Bolsonaro e seus apoiadores, uma manobra importante é o controle das universidades.
Não discutirei aqui e agora as razões que movem os ocupantes do Planalto a odiar a produção do saber. Apenas registro a necessidade de estudá-las, caso se deseje compreender a onda negacionista em que surfam o Presidente, seus generais e pastores.
Comunidades acadêmicas, em qualquer lugar e desde sempre, buscam viver sem outras amarras que não as suas próprias. É da índole de quem produz saber desafiá-lo permanentemente, o que desagrada poderes estabelecidos. A postura desafiadora mantém-se até no instante derradeiro, sugeriu Jacques-Louis David, em “A Morte de Sócrates”, tela hoje exposta no Metropolitan de Nova Iorque. O filósofo aproveitou a hora da partida para dar sua última aula. No relato de Platão, o homem estaria se liberando de amarras!
A escolha dos dirigentes de instituições acadêmicas é sempre um problema para o poder político ciente de que não pode suprimir radicalmente a liberdade. Daí o governante buscar um ponto de equilíbrio. Obviamente, não é este o caso de Bolsonaro, como se viu pela escolha de seus ministros da Educação e de titulares de postos-chave da pasta. O homem se orienta pela vontade de destruir o que foi erguido ao longo de mais de um século.
Sabendo da potencialidade subversiva do ensino superior, a Coroa portuguesa foi peremptória: nada de gente com grandes conhecimentos e vastas elaborações intelectuais em sua mais lucrativa colônia. Dom Pedro II empenhou-se em construir a imagem de protetor das ciências e das artes, mas não relaxou no controle das instituições que beneficiava nem ousou criar uma universidade.
Os militares que o destituíram louvavam o conhecimento, desde que rigorosamente bitolado. O positivismo era avesso ao espírito criador. Nas primeiras décadas da República sugiram diversas escolas militares especializadas, mas nenhuma universidade digna do nome. O ajuntamento protocolar de faculdades a que Epitácio Pessoa, em 1920, deu o nome de Universidade do Rio de Janeiro ganhou estofo institucional apenas sob o Estado Novo, com o nome de Universidade do Brasil. Antes disso, dentre as providências para disputar a hegemonia política, a elite paulista derrotada pelas armas em 1932 criara o IPT e a USP.
Os generais que subverteram a ordem em 1964 imaginaram construir, ao custo de pancadas, uma “grande potência”. Eram homens formados entre as duas guerras mundiais, quando ficou evidenciado que o mando pertenceria aos detentores de saber científico e tecnológico. Quem dispusesse do mais avançado conhecimento seria rico e forte, submetendo os demais.
Os generais criaram universidades, deixando-as nas mãos de prosélitos fieis, mandões provincianos que passaram a nomear professores e funcionários devidamente liberados pelos serviços de informação.
Na redemocratização, a comunidade acadêmica lutou por sua autonomia e obteve do Constituinte o Artigo 207. Abriu-se o capítulo da escolha autônoma dos reitores e de chefias departamentais. Nos acirrados debates entre as correntes internas, as concepções da vida acadêmica foram sendo refinadas e planos foram estabelecidos.
O processo de escolha dos dirigentes não estava bem definido quando foram criadas dezenas de instituições federais de ensino superior e centenas de programas de pós-graduação. Somadas às instituições estaduais, o Brasil passou a formar contingentes de doutores que lhe permitiram disputar a produção do saber com países classificados como desenvolvidos.
Tudo aconteceu sem tempo de amadurecimento. A juvenil comunidade acadêmica, deslumbrada, inventou até um título não reconhecido além-fronteiras, o de “pós-doutor”.
Escrevo ao saber que, com a escolha da reitora da Universidade Federal de Sergipe, Bolsonaro, pela décima nona vez, age como governante absoluto. A professora nomeada, Liliádia da Silva Oliveira Barreto, nem mesmo participou da consulta aos professores, estudantes e funcionários.
O caso sergipano é simbólico: o Presidente ignorou a comunidade acadêmica, pareceres do Ministério Público e decisões judiciais.
Sua audácia motivou uma reação coletiva dos reitores eleitos e preteridos. Perigosamente, não despertou reações massivas e contundentes. Estados catatônicos podem ser interrompidos explosivamente.
Será isso o que deseja o Presidente, seus generais e pastores? Estimulam a explosão coletiva para exercitar o Braço Forte?
* Manuel Domingos Neto é doutor em História pela Universidade de Paris. Foi vice-presidente do CNPq.
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