Por Altair Freitas, no site da Fundação Maurício Grabois:
A invasão do Capitólio pela horda trumpista no dia 06 de janeiro, buscando evitar que uma sessão do Senado ratificasse a eleição do Colégio Eleitoral que deu esmagadora vitória ao Democrata Joe Biden sobre Donald Trump, é um fato bastante elucidativo de diversos elementos que compõem a política estadunidense. Para eles próprios e para uma parte das pessoas mundo afora, aquele país é o epicentro da democracia. Como costumam afirmar alguns jornalistas bem pagos pelos conglomerados midiáticos no Brasil, “o farol da democracia”. Não à toa, muitos desses jornalistas e analistas políticos manifestavam com real emoção o seu descrédito com o que estava ocorrendo. Quando se acredita demais em algo – tendo ou não base real – e essa crença desmorona com transmissão em tempo real via satélite, deve ser difícil mesmo.
Os EUA não são uma democracia. São, na verdade, uma plutocracia – domínio do sistema político pelos muito ricos – que criou uma estrutura política e eleitoral estável para garantir, acima de tudo, que os grandes grupos econômicos que o criaram e os conglomerados capitalistas que se desenvolveram sob o seu escudo posterior nos séculos que seguiram – e até hoje – envolvendo nessa estrutura parte do povo, de modo a legitimar, pelo voto, um regime político e social de intensa concentração de riqueza, renda e poder. Uma verdadeira ditadura, no sentido que Marx deu à palavra, ao analisar que todo Estado é, acima de tudo, uma ditadura de uma classe sobre outra (s), mesmo nas sociedades aparentemente mais democráticas. Ora, se tem uma ditadura que se encaixa à perfeição nesse conceito marxista, essa é a “democracia americana”, como eles gostam de se auto promover. E funcionou muito bem na maior parte do tempo, é bom que se registre.
Criado no final do século XVIII, na época da elaboração da sua Constituição, o sistema eleitoral dos EUA segue inalterado desde então. É importante destacar que lá na origem, diante das dificuldades para organizar um sistema eleitoral direto, com voto popular, definiu-se que cada Estado elegeria seus representantes, conforme o tamanho das suas populações e esses delegados passariam a eleger os presidentes. Muito além da praticidade da época, a manutenção desse sistema por 230 anos, possibilitou à classe dominante a exclusividade absoluta para a eleição do dirigente máximo da nação. É preciso sempre observar que não há classe dominante homogênea, existem frações de classe, interesses específicos, disputas entre essas frações, etc. Mas naquilo o que é fundamental, o que é essencial para a manutenção da hegemonia da classe dominante sobre a massa popular e para evitar a decomposição de um sistema que lhes garanta o controle sobre a economia e a política, a estrutura eleitoral criada é um primor.
Esse sistema eleitoral, como praticamente toda estrutura política nos EUA, funciona com o binômio “permissão e restrição”. Em nome das propaladas liberdades individual e coletiva, praticamente tudo é livre nos EUA, na mesma medida em que os elementos centrais que contribuem para a manutenção da hegemonia da classe dominante (inicialmente os grandes fazendeiros do Sul e os industriais do Norte, ao lado dos respectivos comerciantes e banqueiros) possuem um conjunto de requisitos que, na prática, restringem profundamente o exercício efetivo das liberdades. E o sistema político é um exemplo cristalino dessa dualidade: nos EUA existem cerca de setenta partidos ou grupos políticos legalmente constituídos sob a forma partido, com direito a disputar as eleições. No entanto, em função de um conjunto elevado de critérios para garantir a eleição dos parlamentares em todos os níveis, na prática, o sistema eleitoral de lá ficou submetido a uma verdadeira ditadura bipartidária que se renova desde 1852! Utilizando o sistema distrital – pelo qual o partido vencedor por maioria simples naquele distrito específico elege seus representantes sem margem de sobra para outros partidos – conjugado com um sistema de financiamento que possibilita a forte intervenção das empresas privadas para alavancar seus partidos e candidaturas de interesse – cristalizou-se por lá um bipartidarismo na prática. De novo, não há restrições legais para a formação de partidos – o direito à liberdade de organização – mas a estrutura montada impede na prática que outros partidos tenham ascensão política sobre a maior parte do eleitorado. Amarre isso com o fato de que o voto não é obrigatório, e as eleições se dão em dias normais de trabalho, tudo conduziu para a hegemonização do sistema eleitoral pelos partidos Republicano e Democrata, que se revezam no poder.
Só a título de ilustração, a campanha presidencial deste ano, que conduziu Joe Biden à presidência, teve custo estimado em U$ 14 bilhões (mais de R$ 70 bilhões aproximadamente!). Parte desse valor é obtido com contribuições individuais, até o limite de U$ 2.800 para cada candidatura. Parte vem de grupos privados organizados para arrecadar recursos e parte vem das grandes empresas, das grandes corporações, que investem pesadamente e, claro, estabelecem relações privilegiadas com os eleitos, sejam para quais cargos forem. É natural que seja assim: entre um micro investidor individual e um grande conglomerado financiador de campanhas, o fosso é gigantesco quando se trata de obter benefícios diversos dos eleitos e do sistema político como um todo. Isto posto, voltemos à invasão do Capitólio!
Os EUA convivem com uma crise econômica prolongada, estrutural, com ciclos de expansão e contração – crescimento, estagnação e crise – que remonta aos anos 70. Progressivamente, os EUA foram perdendo o papel de maior produtor mundial de bens de consumo e bens de capital, seja pelo desenvolvimento de novos atores nacionais no campo da produção, seja pelo deslocamento de parte do seu setor produtivo para outras nações, especialmente para a Ásia, nas décadas mais recentes. Apenas como elemento de comparação, nos anos 50 os EUA produziam cerca de metade dos bens de consumo e de capital, em escala global. Hoje, essa participação recou para menos de 20%. Nas últimas décadas, cidades anteriormente prósperas por abrigarem parques industriais imensos perderam sua força econômica, foram esvaziadas, literalmente. Há uma dívida interna gigantesca.
Esse progressivo declínio do poderio estadunidense se fez acompanhar de enormes agressões contra os povos do mundo, com guerras de ocupação e apoio de todos os tipos para a desestabilização e queda de governos considerados hostis por Washington. Todos esses movimentos foram antecipados por intensa propaganda ideológica de desgaste dos governos/países atacados, atribuindo a eles a pecha de “ditaduras”, enquanto os EUA, claro, se apresentavam como “libertadores campeões da verdadeira democracia”. A classe dominante estadunidense e seus falcões de guerra passaram a “exportar democracia”, movimento que vinha desde os anos 50 e que ganhou corpo nas décadas subsequentes. Um ponto elevado desse movimento anterior foi a Guerra do Vietnã ao lado do financiamento e sustentação das ditaduras militares na América do Sul. Nas décadas seguintes, vieram invasões icônicas da hipocrisia yankee, especialmente no Oriente Médio, no Leste Europeu e Balcãs e em ações coordenadas com grupos políticos internos na América Latina, especialmente no Brasil e Bolívia, em anos bem recentes. A máquina de guerra ideológica de Washington sempre foi eficiente na sua associação com grupos de comunicação nos diversos países com os quais tem relações abertas e no financiamento de grupos clandestinos nas nações com as quais tem suas divergências. Mas o sistema eleitoral deles seguia sendo apontado como a nata democrática!
Há um ponto de intensificação do declínio estadunidense e ele pode ser identificado de modo muito intenso com a grande crise instalada a partir de 2008, a chamada Crise Global Capitalista cujo epicentro foi o sistema financeiro. Não cabe aqui uma explicação sobre os aspectos daquela crise, mas ela intensificou de modo muito intenso as contradições que se vinham acumulando no território dos EUA. Desindustrialização acentuada, perda de influência em diversas áreas do mundo, crescimento espetacular da China e de outras nações asiáticas, mesmo que em simbiose com a economia estadunidense em algum grau. O país passou a acumular um crescente déficit orçamentário e uma dívida pública espetacular. Em 2020 o rombo no orçamento federal foi de U$ 3,1 trilhões. A dívida pública chegou à casa dos 102% do PIB, com um total de U$ 21 trilhões. A ONG estadunidense Poor People’s Campaign, revelou em audiência no Congresso em 2018, que 43% (140 milhões!) da população está abaixo da linha da pobreza e/ou tem dificuldades para pagar seus compromissos. Ainda que o número de desemprego seja baixo (cerca de 10 milhões estão oficialmente desempregados), uma parte significativa dos trabalhadores recebem baixos salários e não têm amparo da legislação trabalhista, que por lá nunca foi exatamente um primor, diferente de boa parte dos países europeus. A classe média é endividada, asfixiada por várias modalidades de financiamentos fáceis de obter e difíceis de quitar, para compra de imóveis, pagar a universidade dos filhos e aquisição de bens diversos.
Há um conjunto de outras contradições importantes nos EUA, país que detém o maior número de prisioneiros da Terra, com mais de dois milhões de cidadãos encarcerados, número absolutamente revelador do abismo social que se amplia no país do Tio Sam. Os problemas econômicos que se tornaram crônicos, as desigualdades sociais, o emprego precário, o endividamento crescente de largas parcelas da população, contrastam com o modo opulento de vida da classe dominante e de setores mais elevados da chamada classe média. Como sempre ocorre, a deterioração de uma potência econômica não atinge de modo igual, horizontal, o seu povo. Tudo isso criou um caldo de cultura de radicalização política, especialmente entre setores mais populares, das áreas rurais e das cidades pequenas e médias, geralmente as mais afetadas pelo declínio. Uma massa de trabalhadores (as) que antes vivam dos empregos disponíveis nas grandes fábricas que movimentavam a economia, viram boa parte daquelas empresas se deslocando para outras regiões do mundo, em busca de maiores vantagens produtivas. No seu conjunto, essa quase desesperança cristalizou uma profunda divisão do eleitorado do país, tornando as eleições presidenciais cada vez mais difíceis de identificar com alguma antecedência o resultado. Nas últimas eleições, no que diz respeito ao chamado “voto popular”, há praticamente um empate técnico entre Democratas e Republicanos, com os pleitos sendo definidos pela composição do Colégio Eleitoral, conforme o que foi exposto mais acima.
Tudo isso conduziu à vitória de Donald Trump em 2016, um notório empresário com duvidosos métodos para a aquisição de seu patrimônio, abertamente racista, machista, homofóbico, reacionário em todos os aspectos, mas que galvanizou as emoções de metade do eleitorado ao prometer que a “América será grande novamente”. Com uma plataforma claramente xenófoba, Trump passou a atacar o que ele chama de “Globalismo” – a globalização que foi deflagrada exatamente pelos EUA nos anos 90 após o colapso da União Soviética – com um discurso aparentemente nacionalista e prometendo empregos, prometendo trazer as empresas de volta. Progressivamente, retirou o país de tratados e acordos internacionais, promovidos anteriormente por Wasghington, sempre com uma retórica nacionalista, chauvinista. Sua política, seus atos e discursos passaram a ser taxados por diversos analistas como “neofascismo” e ele consolidou em torno de si um setor do povo estadunidense claramente comprometido com suas ideias e seu governo. Boa parte do seu eleitorado é composto por uma massa de trabalhadores (as) frustrados com a decadência do país e por setores da classe média, que já tinham uma forte tradição conservadora, muito vinculada às religiões neopentecostais que abundam por lá.
Elemento acostumado com os meios de comunicação desde muito antes de ser candidato, Trump soube estabelecer um contato direto com seus apoiadores, através do uso intenso das redes sociais, amparado por verdadeiros gênios da manipulação dos algorítimos, procedimento amplamente utilizado na sua campanha vitoriosa em 2016 e durante todo o seu mandato. Essa verdadeira máquina de propaganda “trampista” se fez presente novamente na eleição de 2020, mas não produziu a sua vitória, derrotado por Joe Biden, por estreita margem de votos na eleição direta. Em uma das eleições com maior participação do eleitorado – lembrem que o voto não é obrigatório – a diferença entre Biden e Trump foi de sete milhões num universo de mais de cento e quarenta milhões de votos computados. E, como vimos, à medida em que a apuração avançava, Trump passou a atacar sistemática e violentamente todo o processo eleitoral, consagrado há 250 anos! Ele e seus apoiadores tentaram de todas as maneiras parar o processo de apuração, passando a dizer abertamente que não aceitariam a derrota. A invasão do Capitólio no último dia 06 de janeiro, paralisando por horas a fio a última etapa do processo eleitoral – um ato formal de reconhecimento pelo Senado Federal da eleição pelo Colégio Eleitoral – foi o ponto alto, ao menos por enquanto, do intento de Trump em permanecer como presidente. Foi claramente uma tentativa de golpe!
A cortina rasgou. Muitos ficaram chocados. Mas a invasão do Capitólio, da forma como vemos as coisas, abre uma enorme fenda através da qual é possível enxergar o que os EUA são de fato, para bem além do sofisticado aparato ideológico e do seu “soft power”, da sua indústria cultural que dissemina pelo mundo um dos maiores mitos contemporâneos: “American Way Of Life” é a definitiva expressão da liberdade, progresso e democracia. Nunca foi. E cada vez, menos é!
* Altair Freitas é historiador, secretário executivo da Escola Nacional João Amazonas e secretário de organização do PCdoB da cidade de São Paulo.
Muito Obrigado..!
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