Por Mariana Serafini, no site Carta Maior:
A Justiça britânica negou o pedido de liberdade de Julian Assange sob fiança na última quarta-feira (6). Preso há quase dez anos, o único crime do jornalista co-fundador do Wikileaks foi revelar a violência, os abusos e as torturas cometidos pelas autoridades dos Estados Unidos nas guerras no Iraque e no Afeganistão. Ao escolher salvá-lo da extradição e mantê-lo preso nos cárceres britânicos, a juíza Vanessa Baraitser o condena pelo exercício do jornalismo e abre precedente para que qualquer jornalista seja perseguido por cumprir sua função: divulgar informações de interesse público.
“Nunca aceitaremos que o jornalismo seja um crime neste país, ou em qualquer outro”, declarou a advogada e companheira de Assange, Stella Morris, segunda-feira (4), após a sentença de não extradição. Diante de jornalistas de todo o mundo, assim que saiu do tribunal acompanhada de Kristinn Hrafnsson, porta-voz do Wikileaks, jornalistas e autoridades defensores desta causa, ela deu início à campanha pelo perdão a Assange. Com o olhar fixo nas lentes, pediu, com a tranquilidade de quem está do lado certo da história: “Eu peço ao presidente dos Estados Unidos, acabe com isso agora. Senhor presidente, deixe que os meninos tenham seu pai de volta. Liberte Julian, a imprensa e a nós todos”.
Horas depois, publicou em seu perfil no Twitter o link do site #PardonAssangeNow (https://pardonassange.com). A página ajuda a mobilizar uma campanha global para exigir que o presidente dos Estados Unidos perdoe Julian. Faltam poucos dias para a transição de governo e cada minuto conta. Qualquer pessoa comprometida com a democracia, a liberdade de imprensa e os valores humanitários que foram violados neste caso, pode participar enviando um tweet às autoridades com poder de influenciar Donald Trump. O inferno ao qual Assange foi submetido por revelar os crimes de guerra da maior potência do mundo nunca esteve tão perto - e tão longe - de chegar ao fim.
O argumento da Justiça britânica para não conceder liberdade condicional neste caso foi o de que, em outras etapas do processo, Assange desrespeitou acordos e regras. O que a juíza parece não ter levado em conta é que ao longo destes quase dez anos preso, a situação dele mudou completamente. Hoje Assange está com a saúde física e mental extremamente debilitadas e precisa ter condições para se recuperar e então se defender. Além disso, no período que passou refugiado na Embaixada do Equador na Inglaterra, ele constituiu uma família com Stella e agora duas crianças, Max (2) e Gabriel (1), esperam pelo pai na casa onde eles vivem em Londres. A última coisa que poderia acontecer seria uma fuga, Assange não tem porque se esconder, ele tem a seu favor a verdade. Os criminosos são os que tentam condená-lo.
Belmarsh, a "Guantánamo britânica”
As últimas pessoas que encontraram Assange ficaram preocupadas. O relator especial da ONU sobre tortura, Nils Melzer, disse que o jornalista “apresenta sinais de tortura psicológica”. Os olhos curiosos, o bom humor, o jeito meio atropelado de falar enquanto os braços gesticulam muito desapareceram. Julian está perturbado, ausente e nitidamente abalado. Mais de uma vez os interrogatórios precisaram ser adiados porque ele não tinha condições de responder. Perdeu a noção de tempo e chegou ao ponto de não saber dizer nem mesmo o próprio nome.
A prisão de segurança máxima de Belmarsh, localizada ao sudeste de Londres, é famosa por abrigar presos políticos, criminosos considerados de alta periculosidade e homens condenados por “terrorismo”. Assim como Guantánamo, o calabouço do terror norte-americano, a penitenciária britânica também acumula denúncias de tortura e maus tratos no interior de seus muros intransponíveis.
Neste um ano e meio em Belmarsh, pouquíssimas pessoas tiveram acesso ao jornalista de 49 anos. E os relatos que chegam são tão assustadores que soam como uma distopia de mau gosto. Durante os interrogatórios, Assange fica preso em uma jaula de vidro blindada e isolada de som e eventualmente é acionado para atender seus algozes. Equipes medicas que acompanham o caso alertam também sobre o risco de contaminação de covid-19, que para o organismo de Assange poderia ser devastador. O vírus que abalou o mundo também atravessou a segurança máxima de Belmarsh e já atingiu centenas de detentos e funcionários da penitenciária.
"É certo. Eu vi com meus próprios olhos como o jornalista e fundador do WikiLeaks foi tratado de forma desumana por forças poderosas e onipresentes que tentaram por todos os meios silenciá-lo, neutralizá-lo e destruí-lo. Eles não tiveram sucesso. É a luta do próprio Davi contra Golias que temos travado para combater a impunidade dos Estados Unidos”, afirmou o chefe da equipe de defesa de Assange, Baltasar Garzón.
A CIA espionou Assange todo o tempo na Embaixada
Em agosto de 2012, depois de protagonizar o maior vazamento de documentos de guerra da história, Julian se tornou o jornalista mais procurado do mundo, alvo do Governo dos Estados Unidos. Para evitar uma extradição, se refugiou no prédio da Embaixada do Equador em Londres, e de lá pediu asilo político ao país sul-americano.
A América Latina vivia outro momento, era o auge da chamada “onda progressista”, e mais de dez países da região tinham governos de esquerda ou centro-esquerda, comprometidos com a integração e desenvolvimento regional, de forma a se impor de maneira altiva e soberana no cenário global. Foi assim que o Equador, do dia pra noite, virou manchete nos jornais de todo o mundo.
A imprensa democrática saudava aquele pequeno país da periferia do mundo que tinha tido a coragem de abrigar um dos maiores inimigos dos Estados Unidos do século. Rafael Correa havia concedido asilo político a Julian Assange e ele só precisava do salvo-conduto da Inglaterra para se deslocar da embaixada até o Aeroporto Internacional de Londres e voar para os trópicos.
Isso nunca aconteceu. A Inglaterra não permitiu que Assange colocasse nem o nariz na janela da embaixada. Sem ter como sair do prédio, durante sete anos ele viveu entre dois ou três cômodos, sem ar fresco e sem espaço para praticar qualquer atividade. Ainda assim, o lugar virou o principal ponto de encontro de intelectuais comprometidos com as causas justas de todo o mundo.
Ativistas, artistas, intelectuais, jornalistas e militantes políticos… de Noam Chomsky a Pamela Anderson, Assange recebeu centenas de pessoas. Fez debates, participou de entrevistas, gravou música, passou horas e horas conversando com as maiores personalidades do mundo contemporâneo sobre política, crises humanitárias, democracia, imperialismo e controle. Nada escapou do faro jornalístico do criador do Wikileaks.
Em alguns momentos o trabalho dele de dentro da Embaixada causou complicações diplomáticas para o Equador. Nestes casos, a internet era suspensa para evitar mais problemas. Entretanto, ao longo deste período, o país sul-americano se destacou no cenário global como o governo que teve ousadia de enfrentar a maior potência do mundo para salvar a vida de um jornalista.
Entretanto, com o fim da gestão de Rafael Correa, em 2017, acabou também a segurança do fundador do Wikileaks. O novo presidente, Lenín Moreno, não teve a mesma coragem e entregou o jornalista à justiça Britânica. A notícia caiu como uma bomba sobre os que defendem a democracia.
O embaixador do Equador que mais conviveu com Assange foi Fidel Narváez, ele esteve no tribunal da última semana para prestar apoio e condenou a diplomacia de Lenín: “eu tenho muito orgulho do meu país que protegeu Julian Assange por tantos anos, e contra a pressão internacional. E agora eu sinto vergonha da decisão do governo do Equador de entregar Assange para os americanos e para os britânicos”.
O que ninguém sabia é que mesmo sob a tutela do governo do Equador, Assange foi espionado pela CIA durante todos esses anos. Não com a ajuda do governo, que de fato comprou briga para defendê-lo. O método usado foi um pouco mais “rudimentar”, podemos dizer.
A Agência de Inteligência norte-americana usou o “chão de fábrica” da embaixada, não corpo diplomático, mas a empresa de defesa e segurança espanhola Undercover Global S.L. (UC Global), para monitorar a vida de Assange 24 horas por dia, entre 2012 e 2017. Vídeos, documentos, imagens, até as latas de lixo, tudo era revirado, analisado e transformado em relatórios enviados periodicamente para os Estados Unidos.
Uma investigação recente do jornal americano New York Times revelou que Assange virou um alvo prioritário da CIA sob o mandato de Mike Pompeo, que foi diretor da agência entre 2017 e 2018. Este é o desdobramento mais recente da saga de Assange e tudo que ele vem enfrentando ao longo destes dez anos sob a mira do império. O caso que envolve quebra de sigilo, espionagem, tráfico de informação e violação da soberania de outro país está sendo investigado na Espanha.
O maior vazamento de documentos de guerra da história
Assange foi preso por ousar revelar a verdade num sistema onde informação é usada como arma por corporações e países poderosos para manipular a opinião pública. Com o Wikileaks, ele reuniu jornalistas de todo o mundo que trabalharam por meses a fio processando milhares e milhares de documentos oficiais de Estados, cujo conteúdo ameaçou as grandes potências. O resultado foi o maior vazamento da história.
Inicialmente com a ajuda de cinco jornais influentes - The Guardian, New York Times, Le Monde Diplomatique, El País e Der Spiegel - o Wikileaks vazou mais de 250.000 telegramas do Departamento de Estado, das embaixadas e dos consulados dos Estados Unidos datados entre 1966 e 2010. Além disso, foram publicados mais de 90 mil documentos relacionados à guerra no Afeganistão (2001) e outros 400 mil sobre a Guerra do Iraque (2003-2011). Os relatos, que incluem vídeos, revelaram ao mundo as torturas, abusos e assassinatos arbitrários cometidos pelos militares norte-americanos nos territórios ocupados, inclusive contra contra civis.
Daí em diante, outras centenas de jornais independentes e jornalistas se uniram à causa e ao trabalho de denunciar os crimes de guerra da potência norte-americana. Mas não demorou para que os Estados Unidos lançassem suas garras e toda sua influência global para deter esse movimento. Assange virou o inimigo número um. E a ex-soldado americana, Chelsea Manning, que foi quem vazou boa parte do material ao Wikileaks, foi presa, torturada e permaneceu anos nos porões do brutal sistema carcerário de seu país.
O “crime" de Assange foi cumprir seu papel de jornalista de forma ética, com proteção às fontes, e revelando informações de interesse público. Sob a Lei de Espionagem de 1917 dos Estados Unidos, ele é enquadrado em 17 crimes, e mais um relacionado à contribuição técnica com Chelsea para proporcionar o vazamento dos documentos. Está claro que Julian não é um criminoso e não merece nada menos que liberdade plena e perdão.
Em uma das tantas visitas na embaixada, ele recebeu a banda porto-riquenha Calle 13, com quem gravou a música Multiviral. Em sua participação, fez um chamado: "Do Cairo a Quito um novo mundo está se formando. O poder do povo armado com a verdade”. A verdade é a única arma capaz de derrotar o inimigo neste momento que tentam calar o mensageiro. #PardonAssangeNow
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