Por Armando Boito, no site A terra é redonda:
Há conexões e comparações a serem feitas entre os acontecimentos dos Estados Unidos e a conjuntura brasileira. Diria que, tanto num caso como no outro, a conjuntura é muito crítica e até ameaçadora. No Brasil e nos Estados Unidos temos duas das maiores lideranças da extrema direita contemporânea. Em minha opinião, ambas devem ser caracterizadas como neofascistas.
O que nós vimos lá foi sim – na minha avaliação – uma ofensiva golpista do presidente Donald Trump. Muitos dizem que não, que ninguém pode dar um golpe de Estado com algumas centenas de aloprados ocupando a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Acontece que não podemos separar esse episódio final do processo em seu conjunto.
Cabe então lembrar que Donald Trump vem, desde antes das eleições, criticando sistematicamente o processo eleitoral, procurando desacreditá-lo. Após as apurações, ele não aceitou o resultado. Entrou com dezenas de ações judiciais para anular as apurações e próprio processo eleitoral.
Adotou uma série de outras iniciativas e, finalmente, fez uma pressão pesada e sistemática sobre o vice-presidente Mike Pence para que este virasse a mesa na sessão que deveria ser confirmar a vitória do Joe Biden. E, por último, ele próprio estimulou os manifestantes que acabaram ocupando o Capitólio. Manifestantes, aliás, que denominou de “cidadãos de bem”, ao manifestar sua solidariedade para com eles. Então tivemos aí uma ofensiva golpista, uma tentativa de perpetuação no poder, a despeito dos resultados eleitorais.
No caso do Brasil, alguns acontecimentos recentes são preocupantes. Em junho de 2020 a direita tradicional havia, por intermédio de pressões do STF, do TSE e do Congresso Nacional brecado uma ofensiva política autoritária de Bolsonaro e de seus apoiadores. Mas desde dezembro, Jair Bolsonaro mostra-se disposto a retomar a iniciativa. Ele fez uma peregrinação pelos quartéis – comparecendo em cerca de quinze unidades militares – disseminando sua agitação antidemocrática.
Em janeiro, Bolsonaro passou a dar declarações e adotado iniciativas, no mínimo, preocupantes. Suspendeu a compra de vacinas e depois a compra de seringas. Fez a extravagante declaração de que o Brasil estaria falido e que ele não poderia fazer nada e, mais recentemente, editou a Medida Provisória (MP) que, na prática, impede que algum estado inicie o processo de vacinação contra a Covid-19. Essa mesma MP permite que ele requisite, confisque, vacinas e seringas compradas pelos estados.
Sete estados já providenciaram a compra ou a encomenda de vacinas e seringas. Esses setes estados ficariam impedidos de dar sequência nas medidas de prevenção contra a epidemia. O alvo principal é o estado de São Paulo, que prevê iniciar a vacinação no dia 25 de janeiro. O governo Doria reagiu, entrando com uma ação no STF, prontamente acolhida pelo ministro Ricardo Lewandowski. Está impedido assim o confisco de vacinas e seringas desse estado da Federação.
O Ministério da Saúde, no entanto, se manifestou afirmando que essa MP concede ao governo o poder de impedir que Doria ou outro governador inicie o processo de vacinação. Temos aí um impasse a ser resolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O STF, por sua vez, é muito suscetível às pressões do estamento militar. Lembremo-nos de abril de 2018, quando o então comandante do Exército, General Eduardo Vilas Boas, se manifestou publicamente exigindo que o STF não concedesse o habeas corpus ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Essa decisão foi um fator decisivo para impedir a candidatura de Lula e garantir, portanto, a vitória do Jair M. Bolsonaro.
Como o STF tem sido muito suscetível à pressão das Forças Armadas, podemos estar presenciando o início de uma escalada. Nesse momento Bolsonaro adota um discurso demagogicamente popular: quer impedir que um ou outro estado (ele está pensando fundamentalmente em São Paulo) tenha o privilégio de ter sua população vacinada antes do conjunto da população brasileira.
Cabe aqui uma ponderação. Muitos pretendem resolver a complexa equação da probabilidade de um golpe de Estado indagando acerca da posição das Forças Armadas. A maioria entende – sem muita informação confiável penso eu – que as Forças Armadas não estariam dispostas a perpetrar um golpe e deduzem daí que, portanto, o golpe não seria viável. Esse raciocínio não é correto. O processo político não emana meramente da intenção dos agentes nele envolvidos. Muitas vezes ele apresenta desfechos que não foram concebidos ou perseguidos por nenhum dos agentes políticos.
Os militares podem decidir – sem qualquer intenção golpista –pressionar o STF para revogar a decisão do Ministro Lewandovski favorável a Doria. A motivação poderá ser, simplesmente, salvar a imagem do inepto General Pazuello. Tal iniciativa, todavia, pode desencadear um jogo de ações e reações que os leve a ir muito além daquilo que pretendiam inicialmente. O requisito básico eles possuem: são profundamente autoritários.
As duas conjunturas, como disse, são críticas, preocupantes. A conjuntura brasileira sofre, inclusive, o impacto dos acontecimentos nos Estados Unidos. O principal deles Bolsonaro a tomar medidas autoritárias. Suas ações no primeiro semestre de 2020 permitem inferir que, quando ele se sente cercado, tende a tomar medidas autoritárias e, inclusive, medidas para as quais não possui força suficiente. Mesmo que não tenha força e apoios para desferir um golpe de Estado, Bolsonaro pode tentar fazê-lo porque ele já revelou que, quando se sente cercado, pode iniciar ações voluntaristas.
Bolsonaro está se sentindo cercado. Trump foi derrotado nas urnas, a perspectiva de eleição para presidência da Câmara Federal brasileira lhe é muito desfavorável. Por fim, João Dória evidenciou que o Pazuello é um inepto e que o governo Bolsonaro é, na verdade, contrário à vacinação. Isso somado está configurando uma situação cada vez mais complicada para ele. Sentindo-se cercado, ele pode sim partir para medidas aventureiras, mesmo que não disponha de força para tanto.
* Armando Boito é professor titular de ciência política na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp). Texto estabelecido a partir de entrevista concedida à rádio da Universidade Federal do Piauí em 07 de janeiro de 2021.
O que nós vimos lá foi sim – na minha avaliação – uma ofensiva golpista do presidente Donald Trump. Muitos dizem que não, que ninguém pode dar um golpe de Estado com algumas centenas de aloprados ocupando a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Acontece que não podemos separar esse episódio final do processo em seu conjunto.
Cabe então lembrar que Donald Trump vem, desde antes das eleições, criticando sistematicamente o processo eleitoral, procurando desacreditá-lo. Após as apurações, ele não aceitou o resultado. Entrou com dezenas de ações judiciais para anular as apurações e próprio processo eleitoral.
Adotou uma série de outras iniciativas e, finalmente, fez uma pressão pesada e sistemática sobre o vice-presidente Mike Pence para que este virasse a mesa na sessão que deveria ser confirmar a vitória do Joe Biden. E, por último, ele próprio estimulou os manifestantes que acabaram ocupando o Capitólio. Manifestantes, aliás, que denominou de “cidadãos de bem”, ao manifestar sua solidariedade para com eles. Então tivemos aí uma ofensiva golpista, uma tentativa de perpetuação no poder, a despeito dos resultados eleitorais.
No caso do Brasil, alguns acontecimentos recentes são preocupantes. Em junho de 2020 a direita tradicional havia, por intermédio de pressões do STF, do TSE e do Congresso Nacional brecado uma ofensiva política autoritária de Bolsonaro e de seus apoiadores. Mas desde dezembro, Jair Bolsonaro mostra-se disposto a retomar a iniciativa. Ele fez uma peregrinação pelos quartéis – comparecendo em cerca de quinze unidades militares – disseminando sua agitação antidemocrática.
Em janeiro, Bolsonaro passou a dar declarações e adotado iniciativas, no mínimo, preocupantes. Suspendeu a compra de vacinas e depois a compra de seringas. Fez a extravagante declaração de que o Brasil estaria falido e que ele não poderia fazer nada e, mais recentemente, editou a Medida Provisória (MP) que, na prática, impede que algum estado inicie o processo de vacinação contra a Covid-19. Essa mesma MP permite que ele requisite, confisque, vacinas e seringas compradas pelos estados.
Sete estados já providenciaram a compra ou a encomenda de vacinas e seringas. Esses setes estados ficariam impedidos de dar sequência nas medidas de prevenção contra a epidemia. O alvo principal é o estado de São Paulo, que prevê iniciar a vacinação no dia 25 de janeiro. O governo Doria reagiu, entrando com uma ação no STF, prontamente acolhida pelo ministro Ricardo Lewandowski. Está impedido assim o confisco de vacinas e seringas desse estado da Federação.
O Ministério da Saúde, no entanto, se manifestou afirmando que essa MP concede ao governo o poder de impedir que Doria ou outro governador inicie o processo de vacinação. Temos aí um impasse a ser resolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O STF, por sua vez, é muito suscetível às pressões do estamento militar. Lembremo-nos de abril de 2018, quando o então comandante do Exército, General Eduardo Vilas Boas, se manifestou publicamente exigindo que o STF não concedesse o habeas corpus ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Essa decisão foi um fator decisivo para impedir a candidatura de Lula e garantir, portanto, a vitória do Jair M. Bolsonaro.
Como o STF tem sido muito suscetível à pressão das Forças Armadas, podemos estar presenciando o início de uma escalada. Nesse momento Bolsonaro adota um discurso demagogicamente popular: quer impedir que um ou outro estado (ele está pensando fundamentalmente em São Paulo) tenha o privilégio de ter sua população vacinada antes do conjunto da população brasileira.
Cabe aqui uma ponderação. Muitos pretendem resolver a complexa equação da probabilidade de um golpe de Estado indagando acerca da posição das Forças Armadas. A maioria entende – sem muita informação confiável penso eu – que as Forças Armadas não estariam dispostas a perpetrar um golpe e deduzem daí que, portanto, o golpe não seria viável. Esse raciocínio não é correto. O processo político não emana meramente da intenção dos agentes nele envolvidos. Muitas vezes ele apresenta desfechos que não foram concebidos ou perseguidos por nenhum dos agentes políticos.
Os militares podem decidir – sem qualquer intenção golpista –pressionar o STF para revogar a decisão do Ministro Lewandovski favorável a Doria. A motivação poderá ser, simplesmente, salvar a imagem do inepto General Pazuello. Tal iniciativa, todavia, pode desencadear um jogo de ações e reações que os leve a ir muito além daquilo que pretendiam inicialmente. O requisito básico eles possuem: são profundamente autoritários.
As duas conjunturas, como disse, são críticas, preocupantes. A conjuntura brasileira sofre, inclusive, o impacto dos acontecimentos nos Estados Unidos. O principal deles Bolsonaro a tomar medidas autoritárias. Suas ações no primeiro semestre de 2020 permitem inferir que, quando ele se sente cercado, tende a tomar medidas autoritárias e, inclusive, medidas para as quais não possui força suficiente. Mesmo que não tenha força e apoios para desferir um golpe de Estado, Bolsonaro pode tentar fazê-lo porque ele já revelou que, quando se sente cercado, pode iniciar ações voluntaristas.
Bolsonaro está se sentindo cercado. Trump foi derrotado nas urnas, a perspectiva de eleição para presidência da Câmara Federal brasileira lhe é muito desfavorável. Por fim, João Dória evidenciou que o Pazuello é um inepto e que o governo Bolsonaro é, na verdade, contrário à vacinação. Isso somado está configurando uma situação cada vez mais complicada para ele. Sentindo-se cercado, ele pode sim partir para medidas aventureiras, mesmo que não disponha de força para tanto.
* Armando Boito é professor titular de ciência política na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp). Texto estabelecido a partir de entrevista concedida à rádio da Universidade Federal do Piauí em 07 de janeiro de 2021.
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