O participante de um BBB é um gladiador moderno. O gladiador era um escravo lutador na Roma Antiga. Numa época em que a maioria dos romanos viviam na miséria, essa era uma atividade de recreação muito atrativa para o grande público. Combatentes se enfrentavam na arena e a luta só terminava quando um deles ficava desarmado, gravemente ferido ou morto. O responsável pela luta determinava se o derrotado deveria morrer ou não. O povo influenciava muito na decisão. Da plateia, manifestavam se queriam ou não a morte do derrotado – como quem vota pela internet hoje em dia.
Uma arena especial para esse tipo de espetáculo foi construída: O Coliseu de Roma. O palco de massacres épicos é hoje considerado, ironicamente, uma das 7 maravilhas do mundo moderno. Os lutadores, apesar de escravos, eram tratados como atletas, tinham treinamento e cuidados. Ou seja, ser gladiador era melhor do que ser um escravo comum e ainda havia a possibilidade de ficar famoso.
A luta de gladiadores representava muito ao Império Romano. Os Imperadores faziam grandes investimentos nos espetáculos. Era uma estratégia deliberada de tirar a atenção da população da situação grave em que vivia. Essa prática ficou famosa como a “política do pão e circo”. Os governantes distribuíam pão durante as lutas. O entretenimento bestial misturado ao trigo gratuito foi a receita da manipulação das massas por muitos anos.
Os que mais ganhavam com as lutas, os Imperadores Romanos, não eram alvo de fortes sentimentos do povo. Já os lutadores, sim. Uns amados, outros odiados, lutavam e se matavam entre si, para o deleite fetichista da sociedade romana.
O BBB nunca foi um programa de entretenimento apenas, assim como nada na TV o é. Eu nunca entendi a alegria de muitos colegas em comemorar a presença de um ou outro irmão preto na jogatina. Mas não acho que devemos criminalizar, criticar e muito menos romantizar seus participantes. “Guerreiros são pessoas, são fortes, são frágeis”, dizia Gonzaguinha. São pessoas levadas à uma arena de luta e expostas a um Coliseu faminto por sangue.
No caso específico desta edição 2021, os imperadores romanos pegaram a onda do debate sobre racismo e organizaram a arena para polemizar a partir do tema. Um picadeiro proporcionalmente dividido entre pretos e brancos, com estímulos propositais (vide o áudio vazado de Boninho). Parece que deu certo: Altíssima audiência, desinformação e deseducação racial, humilhação, tortura psicológica e muito engajamento ao espetáculo de golpes sangrentos protagonizados pelos pretos entre si. Enquanto isso, os participantes brancos descansam sua imagem sóbria, como falsos coadjuvantes.
Publicações viralizadas em redes sociais, comentários e manchetes estampam os nomes e os rostos dos gladiadores. Mas não de todos. Expostos estão: um menino preto de periferia, de movimento social, que comete erros e excessos, como qualquer pessoa comum, aliás, comportamento esperado e desejado pelo Coliseu. Ele é psicologicamente torturado ao vivo em rede nacional e, ao assumir sua bissexualidade, sofre mais repressão e violência. Tudo isso com a cumplicidade ativa e criminosa da emissora. Derrotado, mas aplaudido pela multidão, pede pra sair.
Expostos também estão um grupo de jovens artistas, profissionais liberais, famosos, reconhecidos, referências em suas áreas de atuação mas que, apesar de negros, são forjados pela sociedade racista que conhecemos. Suas condutas demonstraram a assimilação de valores autodestrutivos que os levam a tratar seus iguais da mesma maneira estereotipada que a branquitude o faz. Deslumbrados, equivocados, sendo horríveis, cruéis e pedantes. Uma geração de jovens negros da qual talvez até possamos nos orgulhar pela altivez com que enfrentam o racismo em suas vidas, mas absolutamente influenciados pela perspectiva da atuação individual, cravada na autoproclamação, no ideal liberal da superação, com pouca ou nenhuma trajetória ou compromisso com organizações do movimento negro. Ou seja: iguais a maioria. Nem melhor, nem pior. Oferecem o que tem pra dar.
Não se trata aqui de eximir responsabilidades. Trata-se de dividi-las. A educação para a cidadania e para a defesa dos direitos humanos é responsabilidade de toda sociedade. Individualizar a culpa, fomentar o punitivismo e replicar o tão debatido cancelamento seria usar veneno como remédio. Para quem interessa a propagação da imagem de negros desiquilibrados e vilões? Fico me perguntando como seria um Coliseu com metade liberal-mbl, ou de esquerda PUC-USP, ou neopentecostal, ou judia, ou católica-canção-nova, para que pudéssemos assistir também o quanto todos podem ser escrotos, horríveis e cruéis. E pagar por seus excessos, óbvio. Mas não! A brincadeira tinha que ser com os estigmatizados de sempre.
Só se fala dos gladiadores. Quase não se fala do Império. Da responsabilidade do Império. A Globo e seus imperadores são responsáveis pelo Coliseu que meu povo adora. A Rede Globo é responsável pelas cenas de tortura, pelo sofrimento e mortes psíquicas, pelo desgaste e falência das carreiras, dos sonhos e por muito do que poderá ocorrer na vida dos pretos e pretas desta edição do programa. Mas também me pergunto o quanto nós, a plateia da barbárie, temos responsabilidade sobre a longevidade dos nossos Coliseus.
Como parte da responsabilidade que me cabe, desejo paz e cura para todos os Lucas deste país e seus familiares, que encaram a violência racial cotidiana apenas com seus próprios corpos. Desejo que as irmãs e irmãos pretas e pretos que foram cruéis na arena, que sigam sua vida com sucesso e realizações, mas que façam autocrítica, que assumam responsabilidades, e que se coloquem ao mundo para além de suas limitadas existências. Quanto à Globo, apoiarei para que seja punida e para que arque com indenizações pelos danos individuais e coletivos causados por esta edição de seu programa. Aos romanos – quer dizer, aos brancos, peço que sejam coerentes e pratiquem seu antirracismo, se é que são sinceros nesse desejo. E ao meu povo negro, convoco para que se levante da frente da TV e lute! Temos fome. E precisamos de vacina.
E que possamos todos aprender, melhorar, evoluir.
Evoluir.
* Douglas Belchior é professor e defensor de direitos humanos, integra a UneAfro Brasil, entidade que compõe a Coalizão Negra Por Direitos.
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