Ilustração: HanLin |
Até a sua independência, a Índia tinha um sistema de patentes, obviamente calcado no modelo inglês, o qual assegurava a patenteabilidade de muitos processos e produtos.
No entanto, após a sua independência, a Índia iniciou progressivamente um processo para tornar a sua normativa sobre propriedade intelectual um “instrumento do desenvolvimento nacional”.
O objetivo geral era o de estimular as indústrias nacionais emergentes a produzirem novas tecnologias ou adaptarem tecnologias importadas, num processo típico de substituição de importações.
No campo médico, o objetivo específico era essencialmente o de assegurar preços baixos de medicamentos para a população indiana e de prover, eventualmente, drogas em larga escala para o enfrentamento de epidemias.
Em 1950, a lei de patentes indiana foi emendada para permitir a licença compulsória para produzir medicamentos protegidos por direitos de propriedade intelectual, sem a necessidade de autorização por parte do detentor da patente.
Em 1970, foi dado um passo ainda maior com a aprovação da nova lei de patentes da Índia, que entrou em vigor em 1972. Essa nova lei de patentes excluía medicamentos e quaisquer produtos farmacêuticos do mecanismo de patenteamento.
Na realidade, a lei excluía do patenteamento quaisquer processos destinados ao tratamento, cura e profilaxia da pessoa humana, bem como os processos com a mesma finalidade aplicáveis aos animais e plantas. A normativa também proibia o patenteamento de processos destinados ao incremento do valor da produção agrícola.
Com esse novo marco legal, começou a se desenvolver uma dinâmica indústria de medicamentos genéricos, baseada na engenharia-reversa e na criação de processos de baixo custo de produção.
No entanto, a Índia, que participou ativamente da Rodada Uruguai, assinou o TRIPS, em dezembro de 1994. Obviamente, isso a obrigou a reformular a sua normativa sobre propriedade intelectual.
Contudo, a Índia, aproveitando-se da flexibilidade conferida por este acordo da OMC aos países em desenvolvimento, só modificou a sua lei de patentes em 2005, ao final do prazo previsto (10 anos). Ademais, a lei sobre propriedade intelectual aprovada nessa nova conjuntura incorporou todas as flexibilidades asseguradas no TRIPS.
Pois bem, o grande resultado prático dessa estratégia da Índia relativa à propriedade intelectual é que esse país tem hoje a segunda maior indústria farmacêutica do mundo em volume de produção.
Além disso, a Índia é também um grande exportador de produtos farmacêuticos, principalmente de medicamentos genéricos para países em desenvolvimento.
Em 2008, ano pré-crise, a Índia exportou US$ 5,77 bilhões em produtos farmacêuticos.
Saliente-se que tal desempenho exportador assegurou à Índia um saldo comercial positivo, nesse setor específico, de US$ 3,9 bilhões.
Atualmente, a Índia é o maior exportador mundial de drogas genéricas, responsável por 20% do total das exportações mundiais. Em 2017, a produção farmacêutica da Índia já tinha ascendido à cerca de US$ 20 bilhões.
É preciso observar também que, embora o modelo indiano de indústria farmacêutica e de biotecnologia tenha se baseado historicamente na engenharia-reversa, atualmente há indústrias farmacêuticas indianas, inclusive 5 estatais, que investem bastante em inovação.
Somente nos 18 primeiros meses após a promulgação da nova lei indiana sobre propriedade intelectual, cerca de 6.500 pedidos de patentes sobre medicamentos chegaram aos escritórios da Índia. O acúmulo gerado pela indústria de genéricos criou uma massa crítica que permite, agora, o surgimento de uma incipiente, porém significativa, indústria inovadora.
E o Brasil? O Brasil seguiu um rumo diferente.
Com o predomínio do paradigma neoliberal no país, que começou a se firmar ao final da década de 80, o Brasil abandonou progressivamente quaisquer tentativas de implantar uma indústria de fármacos nacional.
Além disso, após ter assinado o TRIPS, em dezembro de 1994, o Brasil, em vez de ter esperado, como a Índia, 10 anos apara aprovar uma lei nacional adaptada às diretrizes daquele acordo da OMC, precipitou-se em promulgá-la já em 1996.
O resultado dessa política, ou da falta de política para o setor foi, além do já mencionado aumento dos preços dos medicamentos no mercado interno, a geração de uma grande dependência da saúde pública brasileira, relativamente à produção da indústria farmacêutica internacional.
A indústria de genéricos brasileira, embora tenha tido êxito relativo na diminuição de preços de certos fármacos, especialmente os destinados ao tratamento da AIDS, ainda é muito incipiente, comparativamente às indústrias assemelhadas de outros países.
Em nosso país, a indústria de genéricos responde por aproximadamente 20% do mercado de medicamentos. Na Índia, mesmo após a nova lei de patentes adaptada às diretrizes do TRIPS, os genéricos nacionais ainda satisfazem 88% da demanda interna por medicamentos.
Na Espanha, França, Alemanha e Reino Unido, a participação desses medicamentos é de 30%, 35%, 61% e 60%, respectivamente. Nos EUA, o índice é também de aproximadamente 60%.
Em relação à Índia, o Brasil entrou tardiamente no mercado de genéricos e teria, agora, de desenvolver uma indústria nacional de fármacos dinâmica.
Trata-se de um processo bem mais custoso e difícil, pois não temos mais as liberalidades pré-TRIPS, que permitiam o uso generalizado da engenharia reversa e da quebra de patentes. Perdemos uma oportunidade histórica que foi bem aproveitada pela Índia. O esforço teria de se concentrar, agora, na inovação tecnológica, mas com uma base produtiva ainda incipiente.
Essa miopia neoliberal revela-se, agora, nefasta para a saúde pública do Brasil, no atual quadro sanitário mundial.
Com efeito, a terrível epidemia do Covid-19 vem expondo, de forma dramática, os obstáculos à saúde pública criados pela globalização assimétrica e pelo predomínio dos direitos de propriedade intelectual no sistema internacional de comércio.
Países detentores de direitos de propriedade intelectual na área da saúde e que têm indústrias farmacêuticas e de equipamentos hospitalares robustas enfrentam em condições bem melhores a pandemia e instauram processos de desenvolvimento e produção de vacinas e/ou de tratamentos eficientes para o combate ao Covid-19.
Já países que não estão nessas condições, como o Brasil, têm dificuldade até mesmo de ter à disposição respiradores, máscaras e cilindros de oxigênio em número suficiente para o enfrentamento da pandemia.
Dessa forma, a pandemia desnudou a insegurança sanitária e médica gerada pela globalização assimétrica e o predomínio dos direitos dos detentores de patentes sobre os direitos dos países ao desenvolvimento e ao bem-estar de suas populações.
Para agravar a cena, como boa parte dos processos de desenvolvimento de vacinas ou de tratamentos são desenvolvidos por grandes empresas privadas, sem compromissos efetivos com a saúde pública, criou-se uma grave assimetria na produção e distribuição de vacinas, que favorece, obviamente, os países mais ricos.
Em sentido contrário, a Organização Mundial de Saúde (OMS), apoiada, entre outros, pelo governo da China, propugna pela tese de que quaisquer vacinas ou tratamentos para o Covid-19 sejam declarados patrimônios públicos mundiais, de forma a beneficiar todos os países do planeta e combater com eficiência muito maior a pandemia.
A iniciativa Covax visa justamente democratizar, em escala mundial, a distribuição de vacinas.
Afinal, como se trata de uma pandemia, assimetrias na disponibilidade de vacinas e tratamentos acabariam por prejudicar não apenas a população de países mais pobres e vulneráveis, mas também todo o planeta, pois esses países continuariam a ser focos de disseminação do Covid-19 e de eventuais novas mutações do vírus.
Mas isso é apenas o começo de um jogo duro que deverá antepor, nos próximos meses e anos, os interesses dos países mais desenvolvidos e dos detentores de patentes contra os interesses dos países menos desenvolvidos e os direitos das populações à saúde.
Não é segredo para ninguém que os países mais desenvolvidos e as grandes companhias farmacêuticas internacionais vêm pressionando, há muitos anos, em todos os foros negociadores, para que os países em desenvolvimento adotem medidas denominadas “TRIPS-plus”.
Tais medidas visam enrijecer ainda mais o sistema internacional de proteção da propriedade intelectual, inclusive no que tange às liberalidades asseguradas pela mencionada “Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública”.
Assim, os poucos ganhos assegurados na OMC para a saúde pública no TRIPS poderão ser completamente revertidos.
Por isso, seria importante se utilizar do mecanismo do licenciamento compulsório assegurado pelo TRIPS, em caso de crises sanitárias.
O artigo 31 do TRIPS, sob a luz da Declaração de Doha, permite o licenciamento compulsório, ou seja, a quebra de patentes sem a licença do detentor do direito de propriedade intelectual, em caso de emergência nacional e pelo bem do interesse público. Tal previsão também consta no art. 71 da Lei 9.279/96, nossa lei de propriedade intelectual.
Alguns países, como Alemanha, já estão utilizando ou ameaçando utilizar o mecanismo do licenciamento compulsório.
O problema, para o Brasil se utilizar desse mecanismo, refere-se a outra consequência da miopia neoliberal: o massivo desinvestimento em ciência e tecnologia, que vem se avolumando nos últimos anos, particularmente desde o golpe de 2016.
Em 2015, os investimentos em ciência e tecnologia, chegaram a quase R$ 14 bilhões (deflacionados pela IPCA).
Já em 2019, ficaram em cerca de R$ 5 bilhões.
Para este ano (2021), o Orçamento prevê apenas R$ 2,7 bilhões.
A Alemanha está investindo US$ 2,3 bilhões em novas pesquisas sobre a Covid-19. O Brasil mal investe US$ 0,1 bilhão.
A ciência brasileira, administrada atualmente por um vendedor de travesseiros, está sendo simplesmente extinta.
Há um processo brutal de sucateamento de todas as instituições científica do país.
Nesse contexto, num país que não produz sequer o IFA, insumo básico para a produção de vacinas, fica difícil utilizar, com êxito, o licenciamento compulsório, no curto prazo.
Não obstante, a pandemia do Covid-19 cria a oportunidade para que países como Brasil deem um salto produtivo e tecnológico para se tornarem autossuficientes na produção de fármacos e de insumos hospitalares.
Ademais, a pandemia gera a oportunidade e a necessidade de o país investir em maior universalização do SUS e no aprimoramento de sua qualidade.
O investimento em saúde pública poderá ser tornar um dos vetores mais importantes da superação da crise e da retomada de um ciclo de desenvolvimento sustentável, apoiado em inovação tecnológica e produção nacional.
Essa é uma das propostas do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, que o PT lançou em setembro do ano passado.
Para tanto, o Brasil teria de se livrar dos míopes vendedores de travesseiros da NASA e da soberania nacional.
A escolha está posta.
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