A sociedade brasileira sofre degradação profunda e generalizada. O processo segue em passo acelerado, sem dar sinais de que será contido. E, verdade seja dita, não chegamos nem perto do fundo do poço. Está em crise o Brasil, está em crise a civilização brasileira. E qualquer civilização cabe nos abismos da História.
Digito essa abertura apocalíptica e paro. Não vou continuar nessa toada. Não quero contribuir para o desânimo geral. E nem tenho fôlego para tratar da civilização brasileira ou dos abismos da História. Escrevi acima: “verdade seja dita”. Ora, sinceramente, o que é “a verdade”? A resposta mais interessante a essa pergunta impossível foi dada por Cristo a Pilatos – Cristo que, não sendo apenas humano, pôde responder: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”.
Economistas no mundo da lua
Mas estou divagando. Deixo essas questões maiores de lado e fico no campo estreito da economia. A política econômica brasileira não poderia ficar de fora da degradação geral, até porque os seus descaminhos são parte integrante e destacada do processo.
Alguma dúvida? Basta considerar o seguinte. O mundo ainda não superou a maior crise de saúde pública dos últimos 100 anos. O Brasil figura entre os países que pior lidaram com a pandemia da Covid-19. Entre os maiores, o Brasil se revelou o mais incompetente – perigosa e fatalmente incompetente. E não falta muito para que o gigante Brasil, totalmente desgovernado, seja visto como ameaça para o resto do mundo – no campo da saúde pública e, também, no campo climático. Graças ao despreparo e à irresponsabilidade do governo Bolsonaro, o País vai ficando cada vez mais na condição de pária nesses dois campos cruciais.
Repare bem, leitor, a armadilha em que estamos caindo. Temos o pior presidente da nossa história, incapaz de fazer frente aos grandes desafios que preocupam o Brasil e o mundo. Tanto no campo climático como no da pandemia, o Brasil se vê sujeito a crescentes críticas externas, correndo o risco de amargar restrições e sanções variadas e, no limite, de sofrer uma intervenção estrangeira “politicamente correta” – realizada em nome dos interesses maiores de uma humanidade ameaçada ao mesmo tempo pela pandemia e mudanças do clima planetário.
Pois então, apesar disso tudo, qual a preocupação central, quase obsessiva, dos economistas locais? Pelo menos daqueles que integram o governo, trabalham no setor financeiro e dão os seus pitacos na mídia corporativa? Como sempre, o ajuste do déficit público. A suposta emergência fiscal se sobrepõe à emergência social e de saúde pública. Tudo se passa, leitor, como se esses economistas vivessem em outro planeta. Estão dispostos a sacrificar tudo no altar das contas governamentais.
Heterodoxia de galinheiro também não!
Não quero passar a impressão de que é irrelevante a preocupação com as finanças públicas. Em qualquer governo, em qualquer momento, a política econômica tem que ser conduzida com um olho na evolução das contas. Não procede, no meu entender, a visão heterodoxa extremada de que, num país que emite moeda própria, o déficit pode ser negligenciado. Não vamos agora, pelo amor de Deus, migrar da ortodoxia econômica de galinheiro hoje dominante para o se poderia chamar, também, de heterodoxia de galinheiro – uma versão caricatural e simplificada das teses defendidas pela economia política crítica.
Por exemplo, cabe reconhecer que, em determinadas circunstâncias, um déficit público em alta pode, sim, superaquecer a economia, contribuindo para pressões inflacionárias e desequilíbrios no balanço de pagamentos. Uma política de ampliação de gastos ou redução da carga tributária pode ampliar a demanda agregada no momento errado, gerando aumento da inflação e importações excessivas. Não é o caso do Brasil atualmente. A capacidade produtiva ociosa e as taxas de desemprego estão em níveis elevados. O balanço de pagamentos em transações correntes continua sob controle, respondendo à combinação de economia em recessão com depreciação externa da moeda nacional. Porém, mesmo com a economia desaquecida, uma crise de confiança dificultaria o financiamento em bases adequadas do déficit, contribuindo para o encurtamento da dívida e para a instabilidade cambial. Quando os números pioram muito, o cuidado precisa ser redobrado. Foi o que aconteceu no Brasil em 2020: o déficit do governo subiu rapidamente, a dívida cresceu como proporção do PIB e os seus prazos médios encolheram.
Natureza da nossa emergência atual
Feitas essas ressalvas, permanece, a meu ver, o fato de que a economia e as contas públicas brasileiras apresentam pontos fortes, entre eles a já mencionada posição do balanço de pagamentos em conta corrente, o regime de câmbio flutuante, o peso reduzido da dívida externa e, em especial, as elevadas reservas internacionais do País. Graças a isso a política econômica tem alguma margem de manobra. Já tive ocasião tratar desses pontos em artigos recentes nesta coluna.[1] Não existe emergência fiscal – pelo menos não uma emergência que se sobreponha à emergência da pandemia.
Não era preciso, portanto, abandonar a toque de caixa, em nome da responsabilidade fiscal, o auxílio emergencial e outras medidas de combate à crise sanitária. Nem argumentar que a retomada do auxílio só é possível com a aprovação de uma reforma do regime fiscal constitucional. Chega a ser um insulto à inteligência a pretensão da equipe capitaneada por Paulo Guedes de condicionar a concessão do auxílio por alguns meses, com valor menor e redução do número de beneficiários, a emendas constitucionais socialmente regressivas e quem podem dificultar o manejo da política fiscal, enfraquecer o Estado brasileiro e solapar o desenvolvimento do País. Felizmente, a falta de apoio no Congresso evitou algumas ideais danosas do Ministério da Economia, tais como a supressão dos recursos permanentes para o BNDES e dos pisos de gastos para educação e saúde.
No momento em que concluo este artigo, a “PEC emergencial” foi aprovada no Senado e seguiu para a Câmara, substancialmente desidratada. Houve controle de danos. Ficaram, é verdade, mudanças constitucionais que não são urgentes e nem sequer bem pensadas, mas as piores ideias parecem ter sido descartadas. A ironia é que a PEC dita “emergencial” só tem uma medida que é de fato urgente: a retomada do auxílio interrompido em janeiro. As demais mudanças, inclusive os gatilhos fiscais, só têm repercussões práticas no médio prazo. Aos trancos e barrancos, sem oferecer mais do que paliativos, as negociações no Congresso bem ou mal contiveram os arroubos fundamentalistas do Ministério da Economia.
Ninguém pode, em sã consciência, ser contra a responsabilidade fiscal. Cabe defender as contas públicas, sim. Mas sem apelar para o terrorismo e lançar mão de propostas extravagantes de reforma constitucional. A emergência é social, não fiscal.
Nota:
[1] Ver, por exemplo, “Teto de gastos – manifestos pró e contra”, 8 de setembro de 2020; e “Colapso das finanças públicas?”, 13 de julho de 2020, artigos disponíveis no meu portal na internet: <https://www.nogueirabatista.com.br/category/artigos-de-jornal-revista/economia/>.
* Versão ampliada de artigo publicado na revista “Carta Capital” em 5 de março de 2021.
* Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.
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