terça-feira, 30 de março de 2021

Cavalo de Troia pode deixar militares a pé

Arte: Gladson Targa
Por Maria Inês Nassif, no Jornal GGN:

É falsa a imagem construída de Jair Bolsonaro, de líder popular de extrema-direita que ganhou as eleições e escolheu militares para ocupar a avassaladora maioria das posições de comando de seu governo. Um raciocínio invertido pode tornar muito mais compreensível a crise militar que eclodiu dentro do gabinete do presidente-capitão, com a demissão do ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva.

Na verdade, a história recente dá precedência aos generais na tomada do poder civil. Eles foram os criadores. Bolsonaro, a criatura. Generais da ativa da mesma geração atuaram em conjunto para viabilizar o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e ascenderam ao poder em 2018 por meio de uma campanha ganha com destruição de reputações, fake news da pior espécie e pressão direta sobre o Supremo Tribunal Federal.

Some-se a isso um duvidoso atentado contra o candidato apoiado por eles, que virou a eleição quando o petista Fernando Haddad ascendia nas pesquisas. A vitória do capitão não foi simplesmente produto da sua popularidade ou de uma ofensiva bem-sucedida da extrema-direita, mas um verdadeiro trabalho de contrainformação, especialidade de uma geração de generais formada nos anos 70, quando a corporação moldou jovens militares a uma ideologia anticomunista exacerbada e fanática.

Esse contingente foi centralmente treinado no combate à guerrilha e na repressão política, segundo explicação do coronel da reserva Marcelo Pimentel em entrevista ao podcast Roteirices, veiculada nos dias 17, 18 e 19 de março (acessível pelo Spotify). O coronel Brilhante Ustra não os envergonha, mas é uma referência ideológica para eles.

Na expressão feliz do coronel reformado, Bolsonaro foi o cavalo de Troia que, na sua barriga, trouxe o Exército para a Esplanada dos Ministérios e permitiu à corporação capturar o poder civil. Agora, diz o coronel, Bolsonaro tornou-se o incômodo, o “espantalho” daqueles que articularam sua candidatura dentro dos quartéis.

Bolsonaro não seria eleito sem os militares. A alta hierarquia militar empreendeu uma “guerra híbrida” para radicalizar a sociedade civil, tirar Lula do páreo nas eleições de 2018 e conseguir o número de votos necessário para colocar na Presidência um deputado fascista que, após 27 anos como deputado federal integrando o mais duvidoso baixo clero, foi vendido ao eleitorado como o inaugurador de uma “nova política”, que se mostra com uma qualidade também pra lá de duvidosa.

O que não deu certo na articulação militar foi o cálculo de que poderiam dominar Bolsonaro. Os governos de inspiração fascista historicamente giram em torno de um líder com apelo popular que seja capaz de arregimentar adeptos civis, de preferência no lumpesinato (a parcela dos rejeitados por suas próprias classes e uma massa de manobra passível de engrossar milícias armadas). Essa massa de desajustados sociais (isso tem pouco a ver com riqueza ou pobreza) é mais susceptível à adesão incondicional a um líder com a cara deles.

Bolsonaro era o substrato do pó de traque da política tradicional; no Congresso, pertencia ao baixo clero, cuja importância é apenas o voto individual do parlamentar, que o negocia por pequenos favores. Não seria um exagero dizer que Bolsonaro ascendeu de uma espécie de lumpesinato parlamentar, grupo engrossado enormemente nas eleições de 2018. Os deputados do baixo clero são carne de sua carne.

Bolsonaro também não fugiu ao figurino do líder fascista quando submetido a um exame psicológico. Seu extremismo é alimentado por característica de personalidade também extremas: carrega um alto grau de paranoia, que exacerba sua ignorância sobre governar e dificulta o entendimento das consequências de suas decisões voluntariosas. Bolsonaro é, decididamente, paranoico e voluntarioso. O general Fernando Azevedo e Silva deve a isso a sua demissão.

O presidente é paranoico o suficiente para perceber que estava em andamento uma articulação militar para livrar-se dele sem sair do governo. O primeiro objetivo era (e ainda continua) dissociar a imagem do Exército do genocídio cometido contra a população civil, levada a termo por decisões tomadas por Bolsonaro, mas executada por um militar da ativa, sem que o Partido Militar esboçasse a mínima reação contrária; e de uma administração desastrosa do país, governado majoritariamente por oficiais do Exército.

A operação, segundo o coronel Marcelo Pimentel, é bastante similar à que se iniciou antes do governo Dilma e levou Bolsonaro ao poder: uma parte do grupo fica no governo; a outra sai e encena a dissidência. Ambos se unem no momento seguinte, com um governo eleito por eles.

A operação militar em curso vazou notícias de uma dissidência entre os que permaneceram e os que saíram do governo e simultaneamente, todos unidos, a articulação de uma “terceira via” como alternativa a Bolsonaro em 2022, de preferência uma opção entre eles: o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi demitido da Secretaria de Governo e tornou-se um militante opositor do governo nas redes sociais. Essa seria uma opção de manter o controle sobre a sociedade civil sem lançar mão de intermediários. A designação “terceira via” acena para a direita não extremista.

O golpe de mão desferido por Bolsonaro nos seus condôminos de poder, ao demitir o ministro da Defesa, é um recado muito claro a eles. Os militares ficam no governo se submeterem-se aos seus desígnios, inclusive, se ele quiser, usando a força contra a população civil. Se não, ele faz isso com as polícias, onde tem uma enorme popularidade junto à tropa, e com milícias armadas. A criatura devorou seus criadores. E ambos devoram a sociedade civil.

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