Foto: Ricardo Stuckert |
“O humor é o sal, o mel e o vinho da vida” (Algum filósofo da Antiguidade deve ter pensado esta frase).
Vocês, desavisados leitores, vão me desculpar, mas na alegria do 8 de março de 2021, eu, que sou mais desafinado do que rangido de porta de mosteiro, compus a letra de um sambinha, seguindo uma melodia do compositor Tulio Piva sobre a conquista da Copa de 58*:
Do Oiapoque ao Chuí/Corre uma alegria/Como eu nunca vi/É que um juiz/Lá do alto do Planalto/Seguindo seu decoro/Acabou co’a festa do seu Moro.
Zanin com Valeska tabelava/E agora, o que a Globo fará?/Pois de novo, a torcida gritava:/ É nóis feliz, e o Lula lá.
Muita quilometragem de linhas serão escritas louvando, medindo, ou execrando a decisão do juiz Luis Edson Fachin. Há perguntas que não querem calar: o quanto a decisão de anular os processos e as condenações de Lula em Curitiba favorecem este, o quanto favorecem Moro, reabrindo o processo daquele, tentando zerar a conta deste?
Esta decisão de Fachin vai se sustentar, pois a PGR vai recorrer dela?
Como procederá o juiz de Brasília que será encarregado de reabrir o caso?
Como Lula tem mais de 75 anos, em breve as acusações contra ele vão prescrever?
O rosário de perguntas, todas pertinentes, e de respostas, nesta altura todas tateando o futuro incerto, não vai terminar tão cedo.
É claro que, pelo menos para leigos como eu em matéria jurídica, resta uma grande pergunta.
Cresci em meio católico, celebrando os Mistérios Gozosos, como a Anunciação à Virgem de que ela estava grávida; os Luminosos, como a Eucaristia na Santa Ceia; os Dolorosos, como o da Flagelação e Crucificação de Cristo; e os Gloriosos, como a da Ressurreição.
Mas nada se compara aos Mistérios Misteriosos do Poder Judiciário brasileiro. Para não falar apenas dos tortuosos e labirínticos meandros da Lava-Jato, manifesto minha total e leiga perplexidade diante de como, durante quatro anos ou mais, as turmas e o pleno do STF não conseguiram elaborar decisões ou indecisões que não aquelas que permitiram levar Lula ao cárcere e ao ostracismo político, contemporizando com o arremedo de justiça praticado pela República de Curitiba, para tudo se acabar numa segunda-feira, na penada de um único juiz, e logo um dos que costumavam votar sistematicamente contra Lula.
Por mais que eu revire a lógica aristotélica, a geometria euclidiana e a matemática quântica, não consigo entender.
Haverá aí o dedo de um Demônio da Perversidade, já que esta decisão monocrática implica na possibilidade de que a corrida presidencial para 2022, cuja pista já foi aberta, será acompanhada pelo desfiar monocromático das acusações frívolas (como dizem os advogados de Lula) e falsas contra o ex-presidente, de possuir um triplex que nunca foi dele, e de se beneficiar de reformas num sítio que também nunca foi dele? Houve também o crime da compra de um barco de alumínio por quatro mil reais, ousadia que transforma a aquisição de uma mansão em Brasília por seis milhões de reais cuja origem é mais misteriosa que os Mistérios de Elêusis, numa ninharia, uma nonada.
Apesar desta possibilidade não poder sair da raia das avaliações, deve-se reconhecer que a decisão da segunda-feira, 8 de março de 2021, jogou areia nos planos do atual ocupante do Palácio do Planalto, dos amantes da boquinha, fardados, de pijama ou em trajes civis, e jogou-os na areia movediça da incerteza.
Deve-se ressaltar também a velocidade retumbante com que a notícia da anulação das sentenças contra Lula correu as mídias mundiais que, já na noite de 8 de março, estampavam-na de modo estridente para quem não quisesse ouvi-la.
Se a dita decisão jogou areia nos planos futuros dos milicianos dos homens de bem, também jogou areia para o passado, maculando os trajes de quantos, na mídia, nos tribunais, nas casernas, nas bolsas de valores, nas catacumbas do poder e nos labirintos dos poderes financeiros, louvaram e incensaram a rapaziada de Curitiba e seus desmandos jurídicos como o milagroso elixir nec plus ultra da salvação nacional, além do mais receitado por um pastor expert em power point e um juiz que se deixou levar pelo ministério que passou em sua vida.
O que acontecerá daqui por diante? Como minha bola de cristal é mais achatada que a terraplana do filósofo da Virgínia, não vou prever nada.
Diz um psicanalista amigo meu que o Brasil é a Terra do Triz: tudo acontece por um triz. Seja a felicidade, seja a desgraça, ambas sempre acontecem por um triz. Então, enquanto o trem de uma desgraça não vem, celebremos o triz feliz que nos foi dado viver enquanto é tempo. Temos conosco um Lula novinho em folha, zero quilômetro, nem que seja para atormentar o sono dos injustos.
* Na sequência da vitória de 1958, o sambista e boêmio gaúcho Túlio Piva compôs esta homenagem ao nosso escrete, como se dizia então:
“Do Oiapoque ao Chuí
Corre uma alegria como eu nunca vi:
É que o Brasuik, lá nos campos da Europa,
Deu um baile, dançou samba e trouxe a Copa…
Zagallo tabelava com Pelé,
Didi, rei com a bola no pé,
Garrincha, tico-tico no fubá,
E a torcida gritava
Gol de Vavá”
Se alguém quiser se arriscar, me contacte por Whats App, que eu cantarolo a melodia, pois parece que sou um dos únicos coevos da composição que se lembra dela; e não ficou gravação.
* Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
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