Dentre as diversas concepções de política, destacamos duas, por sua acentuada diferença: a aristotélica, que a vê como o modo de organização coletiva destinado a realizar o bem comum e a boa vida, e a do jurista nazista Carl Schmitt, que a apreende como uma arena de antagonismo entre grupos, estruturada na dicotomia pública entre amigo e inimigo. Nesse sentido, o grau máximo de intensidade do antagonismo político é a eliminação do outro, sem restrições quanto à validação dos meios, pois a política é uma esfera de ação distinta da moral, da estética e da economia. Essa concepção schmittiana assenta-se em uma profunda crítica ao liberalismo, considerado como uma abordagem despolitizada da política.
O ex-juiz Sergio Moro e a força-tarefa da Operação Lava Jato colocaram em prática no Brasil a concepção schmittiana do campo político. Em nome do combate à corrupção, a liderança lavajatista e os atores a ela coalizados desde o início, grande mídia à frente, protagonizaram, antes de tudo, encenações espetaculosas, para conquistar plateias de massa, visando, através da deterioração “justificável” do Estado de Direito, visto, em vários aspectos, como um obstáculo ao combate ao “crime de colarinho branco”, escandalizar e criminalizar a política, mas, acima de tudo, Lula e o PT. Sergio Moro e seu séquito, em que se alinharam Bolsonaro e os militares, operaram como um centro de gravidade grávido de tragédias sequencialmente paridas, destacando-se a deposição presidencial de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a emergência da extrema-direita, que se beneficiou com a vaga política aberta em 2018 pela crise do PSDB e do MDB. Mesmo que nem todos os resultados tenham sido antecipados pelos atores, eles nutriram-se na histeria anticorrupção, que se confundiu com o antipetismo.
A chamada República de Curitiba, de natureza oligárquica, organizou-se como um Estado-partido no Judiciário e no Ministério Público Federal da capital paranaense, dotado de efetivo poder decisório, e instrumentalizou o Direito e as instituições judiciais para viabilizar, a qualquer preço, destacando-se a destruição das grandes empresas nacionais de engenharia e o enfraquecimento da cadeia produtiva de petróleo e gás, a perseguição ao ex-presidente Lula, considerado o inimigo público número um da casta juristocrático-salvacionista. Sabemos que sua prisão, em abril de 2018, visou retirá-lo da disputa presidencial, na qual despontava como favorito. Para quem tinha dúvida, isso ficou comprovado pela Operação Spoofing, fonte da divulgação das mensagens trocadas entre juristas da 13ª Vara Federal de Curitiba e do MPF.
Ao condenar à prisão o grande líder petista, por “atos de ofício indeterminados”, Moro arvorou-se como o soberano schmittiano, aquele que decide sobre o estado de exceção. Em seguida, aceitando o convite para comandar o Ministério da Justiça no governo do então recém-eleito presidente Jair Bolsonaro, principal beneficiado pela exclusão de Lula das eleições, o ex-juiz despiu-se do disfarce ilusionista, a toga, e desnudou-se como ator político, escancarando o vale-tudo mobilizado contra o inimigo e os interesses ideológicos e de poder que alavancaram sua aberrante processualística penal.
Por mais uma das ironias da história, coube a Bolsonaro, atuando em causa própria e dos filhos, liderar a desarticulação da Lava Jato. Primeiramente, retirou o Coaf do Ministério da Justiça, chefiado pelo então ministro Moro; depois, negou apoio ao projeto de lei anticrime desse mesmo aliado-chave (no qual se admitia a prova ilícita de boa-fé); tergiversou sobre uma possível indicação do ex-juiz ao STF; e, mais ainda, nomeou para a PGR, desprezando a lista tríplice do MPF, o procurador Augusto Aras, um crítico da Lava Jato, a operação que lhe havia garantido viabilidade na competição eleitoral.
Sucessivamente frustrado pelo ex-capitão, Moro, após apenas pouco mais que um ano na pasta da Justiça, demitiu-se do governo, aos apupos das hostes bolsonaristas, que, até então, ovacionavam-no. O encerramento oficial da Lava Jato, em fevereiro de 2021, consolidou a ruptura do governo Bolsonaro com as lideranças lavajatistas. Paralelamente, a divulgação de farta documentação digital de conversas entre os membros da força-tarefa e o ex-juiz, obtidas por um hacker, revelava em detalhes a fraude processual, as práticas criminosas, os objetivos escusos e as articulações internacionais e entreguistas de que se valeram Moro, Dallagnol & Cia para condenar injustamente o ex-presidente Lula.
Mas a conjuntura tem dado voltas, como o mundo as dá. O mesmo STF que abriga magistrados alinhados ao populismo jurídico salvacionista-lavajatista; que impediu Lula de tomar posse como chefe da Casa Civil da ex-presidente Dilma Rousseff, por suposto desvio de finalidade e motivação de obstrução da justiça, mas que deixou Michel Temer nomear Moreira Franco para a Secretaria Geral da Presidência da República; que avalizou a legalidade do golpe da deposição presidencial e que, entre tantos outros comportamentos críticos, acovardou-se diante de mensagem no Twitter de Villas Bôas, em 2018, na véspera do julgamento de um habeas corpus da defesa de Lula, enfim, esse mesmo STF vem sendo motivado e pressionado a reagir – sobretudo desde o ano passado, em função dos ataques que passou a ser objeto por grupos de extrema-direita – à deterioração do Estado de Direito no Brasil, retomando, em certa medida, a defesa de princípios liberais da Constituição de 1988 perante o iliberalismo e o autoritarismo schmittianos, que emergiram com força no processo político e nas ruas, principalmente desde a Lava Jato, reunindo adeptos em um amplo campo de interesses, os da esfera econômica (pró-políticas públicas neoliberais), como o Grupo Globo e outros setores empresariais, os militares, os conservadores (líderes evangélicos, grupos de classe média) e assim por diante. Mas, como vários desses atores sociopolíticos não abriram mão da instrumentalização mormente antipetista do poder coercitivo das instituições judiciais e essa perspectiva têm adeptos no STF, a vigilância da liberdade e dos direitos civis e políticos, tão cara aos liberais, depende hoje muito do espectro ideológico que vai da centro-esquerda à esquerda. Quando a Justiça voltará não propriamente a ser cega, mas ao menos tornará seu estrutural viés de classe menos ostensivo ao campo popular?
O momento-chave das contradições e reações do campo judicial liberal foi o posicionamento formal do ministro Luiz Edson Fachin, tomado no âmbito de um pedido de habeas corpus, anulando todas as decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba referentes às ações penais contra o ex-presidente Lula, inclusive as respectivas condenações, devendo os quatro processos correspondentes serem reiniciados na Justiça Federal do DF: tríplex do Guarujá, sítio de Atibaia, sede do Instituto Lula e doações a esse instituto. O magistrado entendeu que os fatos apresentados nas ações não têm relação com as investigações de corrupção na Petrobras. Em decorrência da anulação das decisões desses processos, Lula recuperou seus direitos políticos, o que representou, além de uma virada no sentido do resgate do Estado de Direito, um fato novo e de forte impacto na conjuntura nacional, recolocando a esquerda petista e seus aliados no debate público. Na mesma decisão, Fachin entendeu que a ação da defesa de Lula sobre a suspeição do ex-juiz Moro perdia seu objeto, devendo ser arquivada.
No entanto, esse não foi o entendimento da maioria da Segunda Turma, que, reunida em 9 de março, no dia seguinte à decisão de Fachin, decidiu dar continuidade ao julgamento da suspeição de Moro, já iniciado anteriormente. Mas, mais que isso, o resultado final desse julgamento foi 3x2 contra Moro. Destacamos dois votos, um favorável a Lula, dado pela ministra Cármen Lúcia, outrora uma das mais ferrenhas partidárias do ex-juiz e ex-ministro; e outro contrário, o de Kassio Nunes, o mais recente membro do STF, indicado por Bolsonaro.
Essas águas de março banham a conjuntura de abril, duas torrentes decisórias de impacto, que podem mudar a relação de forças e ensejar uma recomposição das alianças políticas entre os principais atores. Mantida a entrada de Lula em campo, os parâmetros do jogo eleitoral e político em geral modificam-se bastante.
Mas a intensa luta política em torno das instituições e decisões do Estado não cessa. A Procuradoria-Geral da República recorreu contra a decisão de Fachin, pediu que o plenário do STF retroceda à situação anterior dos processos contra Lula, mantendo a competência da 13ª Vara Federal, os atos processuais e as condenações. Luiz Fux agendou o recurso da PGR para 14 de abril, quando, na verdade, o Estado de Direito será julgado. A decisão de Fachin será confirmada pelo plenário do STF? O devido processo legal será efetivamente libertado da deterioração schmittiana de acentuação marcadamente antipetista? Valerá a ordem jurídica ou o espírito do estado de exceção continuará a assombrar, acovardar e seduzir o STF? A lei é igual para todos ou prosseguirá sendo objeto da apropriação casuística, como aconteceu nos últimos anos?
Coerentemente, o jornalista Merval Pereira, para citar apenas um nome do jornalismo do Grupo Globo, inconformado com a decisão de Fachin, aventou a possibilidade de ele ter feito uma manobra arriscada para evitar que a suspeição de Moro tivesse prosseguimento, mas acabou falhando na aposta. Há também desconforto entre alguns generais, por considerarem que a decisão de Fachin trará de volta a polarização e os “extremismos”. Nessa equação absurda das direitas que buscam o centro perdido, Lula é quase igual a Bolsonaro, a não ser pelo fato de que o apoio ao primeiro é inconcebível, mas não ao segundo.
A pandemia está descontrolada por culpa de um governo negacionista e irresponsável. Se os atores institucionais aptos a resistirem ao caos nacional não assumirem plenamente seu papel em todas as frentes de ação, sobretudo, nesse momento, o STF, guardião da Constituição, a quem cabe firmar-se na rota de defesa dos direitos civis e políticos e da democracia, o estado de natureza schmittiano, berço das tendências neofascistas que temos observado, vai prosseguir devorando a nação. A atual PGR já deixou claro que, estando instrumentalizada pelo bolsonarismo, quer que o lavajatismo sobreviva seletivamente contra Lula. O poder da caneta está nas mãos do STF.
* Felipe Maruf Quintas é mestre em Ciência Política pela UFF; Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da UFF.
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