segunda-feira, 26 de abril de 2021

Queimas de arquivo rondam a casa de vidro

Do blog Viomundo:

Três revelações feitas sobre interceptações telefônicas conduzidas pelo Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro remetem ao “cara da casa de vidro”, identificado pelo Intercept como o presidente Jair Bolsonaro, que mora no Palácio do Alvorada e trabalha no Palácio do Planalto.

Ao menos dois assassinatos são apontados como possíveis queimas de arquivo relacionadas ao esquema que funcionava no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a Alerj.

Em 7 de fevereiro de 2007, Flávio fez um discurso improvisado no plenário da Alerj em que elogiou as milícias.

"Imaginem se acabassem com o tráfico na Rocinha. O que o Viva Rio vai fazer lá dentro? Não vai ter mais função. Como irá justificar a quantidade de recursos financeiros públicos e privados que recebe para exercer esse trabalho social entre aspas naquele lugar? Então, para essas ONGs, não interessa ter milícia. Se não houver violência, miséria, morte, bala perdida, estupro, eles não terão o que fazer lá, afirmou na ocasião."

Disse mais:

"Mas uma coisa deve ser levada em consideração: não podemos simplesmente generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão. A diferença é que eles têm sua origem nesses locais e estão preocupados sim, em permanecer ali e combater como eu falei, o que há de pior na criminalidade, seja com a ajuda do batalhão da região, seja com a ajuda de outros policiais colegas de farda. Não importa."

No mês seguinte, Flávio instalou o subtenente da Polícia Militar do Rio, Fabrício José Carlos de Queiroz, como chefe de seu gabinete.

Uma das primeiras ações de Queiroz, no dia 06 de setembro de 2007, foi contratar Danielle Mendonça da Costa Nóbrega, esposa do então capitão PM Adriano Magalhães da Nóbrega, com passagem pelo BOPE, para o gabinete de Flávio.

Posteriormente, Queiroz também contratou a mãe de Adriano, Raimunda Veras de Magalhães, como “funcionária fantasma”, no chamado esquema de rachadinhas com dinheiro público, que é alvo do inquérito que o hoje senador está tentando extinguir através da anulação de provas.

Flávio sempre atribuiu a Queiroz a responsabilidade pelas contratações, mas ele e o pai certamente conheciam Adriano.

Em outubro de 2003 e em agosto de 2005, Flávio havia proposto respectivamente menção honrosa e medalha Tiradentes a Adriano, a mais alta condecoração da Alerj.

Esta segunda honraria foi dada quando Adriano estava preso, acusado do homicídio de um flanelinha.

A medalha foi entregue a pedido de Jair Bolsonaro — segundo ele próprio admitiu.

Bolsonaro defende Adriano na Câmara Federal

Em 2005, quando já estava no quarto mandato de deputado federal, Bolsonaro fez um discurso em defesa de Adriano na Câmara Federal, confessando que pela primeira vez tinha comparecido ao julgamento de um policial.

Ele defendeu o PM com veemência.

Adriano foi posteriormente absolvido.

Pai e filho, em sua defesa, disseram que é comum deputados homenagearem policiais e que não podem ser responsabilizados se Adriano passou para a banda do crime.

Porém, a mãe e a então ex-mulher de Adriano só foram demitidas do gabinete de Flávio na Alerj em 13 de novembro de 2018, cerca de quatro anos depois de Adriano ser demitido da Polícia Militar por envolvimento com a contravenção.

Num depoimento dado à Polícia Civil do Rio, em 2008, Rogério Mesquita, apontado como administrador das fazendas de Waldemir Paes Garcia, o Maninho, bicheiro assassinado no dia 28 de setembro de 2004 na Zona Oeste do Rio, contou que em 2005 tentou arranjar um emprego para Adriano.

Indicou o capitão do BOPE para fazer a segurança do irmão de Maninho, Alcebíades Paes Garcia, o Bidi, em 2005.

Adriano estava preso à época e indicou um colega.

Notem a coincidência: Flávio e Jair agiram para tirar Adriano da cadeia em 2005.

Carlos Bolsonaro havia assumido pela primeira vez como vereador do Rio em 2001.

Flávio Bolsonaro assumiu pela primeira vez como deputado estadual na Alerj em 2003.

Os bicheiros sempre foram tradicionais financiadores de campanha em troca de proteção.

Bidi, que vivia em Roraima, voltou para o Rio para disputar o espólio de seu irmão Maninho, um bicheiro milionário, financiador do Acadêmicos do Salgueiro.

Em 2008, Bidi acusou sua sobrinha, Shanna Harrouche Garcia, filha de Maninho, de tentar desviar bens do espólio.

A esta altura, Adriano trabalhava como segurança, mas de Shanna e seu marido, conhecido como Zé Personal.

Em 2008, Adriano foi acusado de ter participado de uma tocaia que fracassou no assassinato de Rogério Mesquita, o pecuarista que controlava parte dos bens de Maninho e que supostamente tinha indicado Adriano para trabalhar com a família.

Com Adriano teria participado da tocaia o PM Felipe Martins, o Orelha. Ambos foram absolvidos da acusação.

Rogério Mesquita foi morto em janeiro de 2009, quando andava a pé perto da praia de Ipanema, por um homem que desceu de uma motocicleta, disparou um tiro na nuca e deu dois de “confere” quando ele estava caído.

A guerra familiar, repleta de intrigas e traições, seguiu.

O marido de Shanna, José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, foi assassinado dentro de um centro de umbanda, em setembro de 2011.

O irmão de Shanna, Myro Garcia, filho caçula do bicheiro Maninho, foi assassinado depois de um sequestro em abril de 2017, que a polícia acredita ter relação com a disputa pelo espólio de Maninho, estimado em R$ 25 milhões

Em outubro de 2019, Shanna escapou de um atentado. Levou dois tiros ao sair de uma BMW na Zona Oeste do Rio. Ela acusou o ex-cunhado Bernardo Barboza de tentar matá-la.

Bernardo, casado com a irmã gêmea de Shanna, Tamara, era parte da disputa pelo espólio.

Foi por sua participação na guerra envolvendo a família de Maninho que o capitão Adriano foi expulso da PM, em 2014.

Em 2015, a família Bolsonaro expandia seus horizontes: Eduardo Bolsonaro assumiu pela primeira vez como deputado federal eleito por São Paulo.

A investigação da PM sobre Adriano diz que ele serviu como matador de aluguel para Shanna e Zé Personal. Teria cometido nove homicídios só entre 2006 e 2009.

As alegações do clã Bolsonaro de desconhecer o envolvimento de Adriano com o crime organizado são difíceis de acreditar.

Desde que Jair Bolsonaro assumiu o cargo de vereador no Rio, em janeiro de 1989, e aumentou seu poder com a eleição dos três filhos para cargos públicos, os quatro tiveram relações íntimas com policiais.

Em 9 de fevereiro de 2020, Adriano foi morto na Bahia, no que se acredita ter sido uma queima de arquivo. Ele era acusado de participação no esquema de rachadinhas do gabinete de Flávio, através da mãe e da irmã.

A PM da Bahia diz que apenas reagiu a tiros disparados pelo ex-PM. Mas um cerco preventivo poderia ter levado à captura de Adriano vivo.

A morte de Adriano foi providencial para impedir que ele abrisse o bico.

Enquanto isso, Queiroz era protegido pelo advogado Frederico Wassef, que ainda hoje assessora Flávio Bolsonaro informalmente.

O elo financeiro mais flagrante de Queiroz com o clã foi a transferência de R$ 89 mil para a conta bancária da primeira dama Michelle Bolsonaro.

O presidente disse tratar-se de um empréstimo que havia recebido de seu subordinado.

O MP do Rio também apurou enriquecimento de Flávio Bolsonaro superior ao possível por seu salário de deputado e movimentação atípica de dinheiro vivo na loja de chocolates mantida pelo filho do presidente em um shopping do Rio.

Em outras palavras, a loja rendia muito mais do que o registrado efetivamente em vendas de chocolate.

Paralelamente, a briga pelo espólio de Maninho seguia.

Bidi, o tio de Shanna, com quem ela havia se desentendido no passado, foi morto a tiros em 25 de fevereiro de 2020, diante do condomínio onde morava, na Barra da Tijuca.

Em interceptação telefônica feita depois da morte de Adriano, em 2020, as duas irmãs dele, Tatiana e Daniela, conversaram sobre o irmão.

“Não era miliciano, mas sim bicheiro”, disse Tatiana.

De fato, foi como “assessor” de Zé Personal que o capitão Adriano começou a alçar vôos mais altos.

Mais tarde, foi formalmente acusado pelo MP carioca de agiotagem e grilagem de terras públicas nas comunidades de Rio das Pedras e Muzema, na Zona Oeste do Rio.

De acordo com o Intercept, os grampos feitos pelo MP de parentes e comparsas de Adriano, com autorização da Justiça, tiveram de ser suspensos depois que algumas conversas sugeriram que personagens da trama teriam tentado se comunicar com “o cara da casa de vidro”, supostamente Jair Bolsonaro.

O MP do Rio não tem autonomia para investigar o presidente da República.

Em dia 9 de fevereiro ano passado, um dia depois da morte de Adriano, Ronaldo Cesar, o Grande, conversando com uma mulher não identificada, disse que teria de ligar para “o cara da casa de vidro” depois da morte de Adriano, porque “a parte do cara tem que ir”.

Não se sabe se ele estava se referindo ao espólio de Adriano.

No dia 13 de fevereiro, o pecuarista Leandro Abreu Guimarães e sua esposa Ana Gabriela Nunes, que esconderam Adriano em sua propriedade na Bahia, se referem em duas conversas distintas a um certo Jair.

Às 8h46m da manhã, Ana fala para uma certa Nina que o marido Leandro está querendo falar com Jair.

Às 8h51m, Ana avisa ao próprio Jair que Leandro está querendo falar com ele.

Grande dá o aviso

Às 12h34m do mesmo dia 13, Ronaldo Cesar, o Grande, avisa um homem não identificado que está tendo problemas com a divisão do espólio de Adriano. Entre parênteses, aparece a menção a PRESIDENTE.

Em fevereiro deste ano, o MP carioca denunciou a viúva de Adriano, Júlia Lotufo, e os policiais militares Rodrigo Bittencourt Rego e Luiz Carlos Felipe Martins, o Orelha, pela posse e transações envolvendo bens obtidos ilegalmente por Adriano.

Júlia foi acusada de fazer a contabilidade do marido. O MP diz que foram R$ 1,8 milhão em aluguéis em Rio das Pedras só em maio de 2019. Na agiotagem, Adriano cobrava juros de 22%.

O MP descobriu um e-mail em que Júlia orientava Orelha e outro PM, Odimar Mendes dos Santos, o Marreta, que morreu de covid.

A mensagem trata de uma possível venda de 86 bois que renderia R$ 224,9 mil.

Dois dias antes de ter prisão decretada a pedido do MP, Felipe Martins, o Orelha, foi assassinado em Realengo, na zona Oeste do Rio.

Outra forte suspeita de queima de arquivo.

Quando depôs sobre a morte do marido, em setembro de 2011, Shanna, a filha do bicheiro Maninho, havia contado a policiais que cinco meses antes seu marido Zé Personal havia demitido Adriano por suspeita de que ele desviava bens do casal.

Ela confirmou que Adriano ajudava o marido a tocar máquinas de caça-níqueis - o “jogo do bicho” em versão modernizada - e administrava o Haras Modelo, mantido pelo casal em Guapimirim.

Também disse que Adriano foi, com Orelha e outros comparsas, até a propriedade da família, de onde retirou animais e fez a ameaça de que ela não deveria denunciá-lo, “se quisesse ver os filhos crescer”.

Orelha não era apenas parceiro de Adriano no crime.

Em 2003, ele também recebeu moção de louvor de Flávio Bolsonaro.

Em 2005, quando o deputado federal Jair Bolsonaro foi defender Adriano na Câmara, estava defendendo Orelha indiretamente.

A acusação de homicídio contra o flanelinha Leandro dos Santos Silva, de 24 anos, que levou Adriano a julgamento e condenação em primeira instância, também incluía Orelha.

A pergunta de 20 milhões de dólares: o milionário Adriano lavava apenas o próprio dinheiro?

Ou, como outros envolvidos nesta trama, era laranja de terceiros?

De acordo com o MP, Adriano transferiu ao menos R$ 400 mil para Queiroz.

Era pagamento por proteção? Ou rendimento dos crimes que cometia em associação com terceiros?

A tecnologia de lavar dinheiro Adriano conheceu bem, durante o período em que trabalhou com os herdeiros de Maninho.

Em Pindorama do Tocantins, através de um laranja, Adriano comprou uma fazenda de 834 hectares por R$ 938 mil. Fã de vaquejadas, comprou um único cavalo quarto de milha por R$ 150 mil.

Ele investia em cavalos de raça, uma forma tradicional de lavar dinheiro.

Adriano era um milionário, cuja fuga para a Bahia deixou claro que dispunha de um forte esquema de proteção.

A disputa pelo espólio do ex-capitão do BOPE segue.

Mas, Adriano está morto.

E seu principal parceiro, o Orelha, também.

Ronaldo Cesar, o Grande, e Leandro Abreu Guimarães, deveriam ser capazes de identificar quem é “o cara da casa de vidro” e o certo Jair mencionado nas mensagens divulgadas pelo Intercept.

Ambos fizeram parte do esquema de proteção a Adriano, além do vereador Gilsinho da Dedé, eleito pelo PSL em Esplanada, Bahia, dono do imóvel em que o ex-capitão do BOPE foi morto.

O PSL é o partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu em 2018.

Em tese, o áudio em que consta a anotação PRESIDENTE poderia ser periciado para a comparação de vozes.

De acordo com o Intercept, a Procuradoria Geral da Justiça não confirma se recebeu ou não os dados enviados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

Se a apuração seguir o ritmo das que foram feitas no passado a respeito dos crimes cometidos por Adriano a serviço de Zé Personal e sua viúva, no Rio de Janeiro, é pouco provável que a trama seja completamente elucidada.

Vários inquéritos relativos a Adriano e comparsas passaram anos comendo poeira nas gavetas.

É possível supor que, de alguma forma, ele comprou “proteção” para seus atos criminosos.

Se isso se deu através da relação com o clã Bolsonaro, só o tempo vai esclarecer.

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