domingo, 9 de maio de 2021

Ódio e medo no planeta mídia

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

A imprensa familiar tem um histórico de desserviços à democracia brasileira. Sempre foi defensora do projeto das elites econômicas, esteve seguidamente ao lado de pretensões golpistas e de desestabilização das iniciativas populares e até mesmo timidamente socialdemocratas. Foi conivente com a ditadura militar (quando não colaboradora ativa), ajudou a sedimentar preconceitos, espalhar ideologias e fechou os olhos aos movimentos de resistência da sociedade.

Manipulou campanhas eleitorais em diferentes épocas, defendeu valores liberais como sendo expressão da racionalidade em si (e não de uma visão interessada). Criminalizou os movimentos sociais, introjetou a censura externa como autocensura voluntária até o limite de seu negócio, quando então passou a defender a liberdade de empresa, não de imprensa. Recheia seu cardápio de colaboradores de nomes conservadores, mantendo uma reserva progressista mínima para conquistar o álibi da pluralidade.

Estabeleceu parâmetros do que é notícia em todas as áreas, da política à economia, do esporte à cultura, da polícia ao meio ambiente, a partir de valores que vão além dos fatos. Para viabilizar sua visão de sociedade, edita sempre seu material a partir de um olhar plano e superficial, elitista, consumista, antipopular e de estímulo a soluções individuais e violentas. O mundo da imprensa gosta de palavras como centro, equilíbrio e imparcialidade, ações que, invariavelmente, não exerce: é majoritariamente de direita, tendenciosa e parcial.

Pacto antipetista, antipopular e neoliberal

Nada disso é novidade. O que parece estar mudando, hoje, é o sentimento de que tal projeto não se sustenta mais. Bolsonaro, que chegou ao poder exatamente pelo cumprimento do programa sistematizado e executado com tanto esmero pelos veículos hegemônicos, se tornou o efeito colateral desse processo. Ele era o que a mídia corporativa tinha em mãos para afirmar seu pacto antipetista, antipopular e neoliberal. Não era o ideal, era o possível útil. Pelo menos era o que parecia aos barões da imprensa.

O ex-militar era péssimo caráter, limitado intelectualmente, autoritário e despreparado. Defendia torturadores, a ditadura militar, não tinha cultura, empatia ou projetos de qualquer natureza, a não ser armar a população. Reduzia seu programa de governo arremedo de arminha feito com as mãos e consultas ao posto Ipiranga sobre o que não entendia – uma vasta ignorância. Em políticas públicas, era mais fácil: extinguir direitos.

O militar de baixa patente afastado do Exército nunca teve turma nem entre os fardados, estava isolado entre pares do baixo clero do Congresso e só encontrava interlocutores em setores ultrapassados da economia e da política. Mas não afrontava a turma do capital e deixava aparentemente aberto o canal de influência via os autodenominados “formadores de opinião”, que mexiam a boca para sair as palavras do patrão. Um figurante ideal para o momento de transição.

Mesmo com seguidos ataques à imprensa, que foram da destruição da comunicação pública, mudança de regras de relacionamento com o setor, corte de verbas e publicações oficiais, chegando às agressões diretas a profissionais, Bolsonaro ainda recebia atenção. A imprensa participou do show diário de humilhação no cercadinho do Planalto, ecoou suas cortinas de fumaça e volta e meia em vez de cravar que o presidente mentia, dizia que ele era polêmico.

Chegado ao paroxismo da barbárie, dos crimes ambientais, da destruição das políticas sociais, da crise econômica e do crime continuado do descaso com a vida dos brasileiros na ausência de política responsável para pandemia, a imprensa corporativa não teve outra saída que não passar a criticar o governo federal. Mas, o passado condena, já havia perdido a mão para exercer seu mandato como defensor da democracia nas sociedades liberais. Em vez de estabelecer critérios racionais, uma saudável autocrítica, ampliação de fontes, aprofundamento de pautas e investigação, a imprensa passou a exibir um comportamento seletivo.

Imprensa se moveu pelo pior tipo de mentira

Não é difícil criticar Bolsonaro e sua limitação. Mais fácil ainda é apontar a incompetência de seu governo. Bem como é transparente a inclinação autoritária, o militarismo, o moralismo, a regressividade cultural, a vizinhança com os estatutos velados do crime organizado, e o isolamento internacional. O abismo em que o país se meteu, com a contribuição dos meios de comunicação ditos profissionais, não será vencido com uma reação tímida que critique excessos nas bordas e feche os olhos para o centro do sistema. Bolsonaro é um método.

Nos últimos tempos estamos a assistir uma aparente reação desses veículos de imprensa e de alguns profissionais marcados indelevelmente por sua participação, entre outros processos, na elevação da lava-jato à purgação de todos os problemas do país, mesmo às custas da Justiça e da economia do país; ou ao impeachment da presidenta Dilma e à prisão de Lula, movidos pelo pior tipo de mentira: a do mentiroso que sabe que está mentindo.

Não foi diferente com a aprovação de medidas como o teto de gastos, a aniquilação do Mais Médicos, o desmonte das universidades, a agressão aos direitos trabalhistas e à legislação previdenciária, o atravessamento da boiada da série de desregulamentações que beneficiam o grande negócio. No campo político, foi a ação da mídia conservadora que criou uma espécie de valorização moral do centro como metáfora do equilíbrio.

Terceira via é falácia do fim da história

A busca de uma terceira via, que surge sempre como saída, na verdade é a anulação da harmonia dos contrários pela elisão da divergência e afirmação rediviva da falácia do fim da história. Nada mais operacional que jogar a esquerda democrática como avesso da ditadura. Nada mais falso que anular as regras do jogo afastando os jogadores adversários. Não podemos aceitar que a humanidade lutou tanto no campo político, desde os gregos, para chegar a Luciano Hulk ou ao Centrão...

Episódios recentes mostram como esse comportamento vem sendo transformado. Na verdade, mudando para que nada se altere. A crítica que parece cada vez mais acirrada por parte da imprensa burguesa se dirige ao presidente no que ele tem – e sempre teve – de indefensável. Não é mérito algum desancar quem é autoritário, grosso, ignorante, violento e defensor da tortura. Para se esconder do que fizeram no verão passado, os porta-vozes do mercado agora assumem um discurso moral e, no caso da pandemia, cientificista.

Os jornalistas e comentaristas da Globo News e CNN, por exemplo, podem fazer ordem unida em torno de valores pretensamente universais. São ardorosos em valorizar o conhecimento científico em ciências na natureza, enquanto viram as costas para a reflexão construída nas ciências humanas. Desancam a incompetência em saúde pública e comungam com o fortalecimento da desigualdade em favor dos interesses do mercado, tomado como universais.

Os mesmos profissionais que perseguiram os governos populares, os direitos das minorias e as medidas de distribuição de renda e incentivo ao crescimento, agora se arvoram em criticar o herdeiro de seus propósitos em outras áreas, como se fosse possível ser liberal em economia, no atual estágio, sem ser bolsonarista nos outros campos da administração pública.

Guedes não é menos alucinado que Damares, não é menos louco que Araújo, nem mais ético que Salles. São faces da mesma moeda do bolsonarismo. Míriam Leitão, Merval Pereira, Fernando Gabeira, Eliane Cantanhede e companhia fazem parte da mesma lógica: erram porque atacam de um lado o governo que defenderam de outro – e que ajudaram a eleger. Sempre faz bem ao ego falar em ética e ciência.

Diogo Mainardi, Pedro Bial e Alexandre Garcia

Diogo Mainardi, sendo Diogo Mainardi, desferiu ataques grosseiros a Fernando Haddad e ao advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, inclusive com uso de palavrões, em programa transmitido pela Cultura de São Paulo. Nada distante do que sempre fez e faz, continuadamente, na sua página de “notícias”. A reação do público levou ao seu pedido de afastamento do programa de nome arrogante e jeca. Nas palavras de Kakay, Mainardi não passa de um humorista sem graça e sem educação. O que significa dizer que talvez seja menos odioso que desprezível.

Pedro Bial também, exibiu seu ego inflado, no mesmo programa acima, dizendo que só entrevistaria Lula com auxílio de um polígrafo, depois de o presidente ter dito que gostaria de participar do programa ao vivo. O jornalista pode ter sentido uma ponta de ataque à credibilidade da edição de seu programa (a história da Globo credencia essa desconfiança), mas caberia a ele fazer o papel de polígrafo, não desacreditar previamente o entrevistado.

Além disso, em razão da reação a críticas feitas a ele por colunistas especializados em televisão, foi-lhe oferecido, sem que tivesse pedido, espaço nobre para rebater aos críticos, em outro veículo do mesmo grupo. A crítica foi no UOL e a resposta na Folha. Uma espécie de direito de resposta sem pedido, concedido por outro e sem direito a tréplica. Ficou claro que o apresentador não gosta de ser criticado, mas quando tem o direito de fazê-lo, como no caso de Lula, prefere recorrer ao polígrafo que à coragem ou ao preparo. Ou então a uma piada, o que é ainda pior.

Outro jornalista que também escreveu sua história de medo nos últimos dias foi Alexandre Garcia, ex-assessor do general Figueiredo durante a ditadura militar. Depois de décadas na Globo, se transferiu para a CNN, onde está liberado para fazer a cama do bolsonarismo sem qualquer compromisso com o jornalismo. Parece que profissionais como ele, que sempre tiveram equipes de produção à socapa, quando se vêm com suas próprias armas passam a desfilar sua incapacidade profissional travestida de raiva e preconceitos.

Com medo da CPI da pandemia, Garcia apagou suas postagens na rede, sobretudo aquelas que iam na contramão das recomendações científicas. Identificado com todo tipo de terraplanismo sanitário, o jornalista colaborou de forma criminosa com a disseminação de falsas notícias e recomendações capazes de colocar a saúde das pessoas em risco. Sem falar no papel de caixa de ressonância das mesmas opiniões por parte de seu guru. No jornalismo, a conivência com a desinformação é crime.

Sinuca de bico

A sinuca de bico da imprensa corporativa, percebida pelo cansaço do público em ouvir sempre a mesma notícia, comentada pelo mesmo especialista, é um sinal da necessidade de mudança no ecossistema da informação, que exige muito debate e elaboração, inclusive no terreno da legislação e da garantia do direito real à informação como bem público.

Mas também reforça o compromisso de todos os segmentos que defendem a democracia, como movimentos sociais, ONGs sindicatos, coletivos, institutos, universidades, artistas e militantes, para a construção de um novo paradigma de diálogo criativo no país. Não teremos uma democracia digna do nome sem uma imprensa plural, crítica e de qualidade. A que temos hoje, nos grandes meios empresariais, não é capaz nem mesmo de escrever seu obituário. Além disso, nascidos do ódio de classe eles estão com vergonha e com medo. Não sai boa coisa desses sentimentos.

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