Os economistas adeptos da austeridade monetarista já estão arreganhando as suas presas para as novas medidas de política monetária a serem exigidas do Banco Central (BC) e do Comitê de Política Monetária, o famoso Copom. Na verdade, a reunião deste colegiado é quase uma redundância. Trata-se de um encontro ordinário, realizado regularmente a cada 45 dias, onde os mesmos 11 integrantes da diretoria do BC se reúnem sob o manto sagrado da determinação legal de deliberar a respeito da taxa oficial de juros.
Cabe ao Copom estabelecer o patamar da Selic, como sinalização para o mercado financeiro e para o conjunto da sociedade a respeito de qual é o diagnóstico da autoridade monetária sobre a conjuntura econômica. A institucionalidade jurídica determina que a única preocupação do Copom deve ser com a observância do ritmo de crescimento dos preços. Por isso, desde a edição do Plano Real em 1994, existe o regime de metas de inflação definido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e a Selic deve ser utilizada para evitar que o crescimento dos preços fique fora do intervalo estabelecido.
As referências oficiais para o presente ano estão determinadas pela Resolução 4.671 do CMN. O valores são as seguintes: inflação anual de 3,75% e intervalo de 1,5% para cima e para baixo. Assim, o limite superior para o período janeiro-dezembro de 2021 será de 5,25%. Um dos problemas que o modelo brasileiro oferece é essa obstinação monotemática com o regime de metas de inflação. Para aqueles que idolatram o modelo norte-americano, por exemplo, vale lembrar que o banco central daquele país, o FED, tem por missão observar a inflação e também o nível de atividade da economia - vale dizer, o nível de emprego ou desemprego. Assim, em uma situação em que se combinam, por exemplo, riscos de inflação e desemprego recorde, não seria trivial a opção declarada e apressada por uma elevação na taxa oficial de juros.
Financismo pressiona por novo aumento na Selic
Mas no caso brasileiro, o mandato restringe-se única e exclusivamente ao acompanhamento da meta de inflação. Pode-se até compreender essa preocupação à época do plano de estabilização, após várias tentativas fracassadas de plano anteriores e a convivência em ambientes de hiperinflação. Mas quase 3 décadas depois do estabelecimento do novo padrão monetária, está passada a hora de incorporarmos outras variáveis a serem observadas quando da definição da taxa de juros.
Enfim, mas o fato é que a imprensa especializada em economia e os grandes meios de comunicação passam a jogar seus holofotes sobre os anúncios recentes dos índices de preços. A divulgação mais recente do IPCA, o índice oficial da inflação e apurado pelo IBGE, incomodou os analistas que se preocupam em demasia com o crescimento dos preços, mas que não demonstram a mesma agitação quando se trata dos sucessivos recordes de desemprego anunciados de forma sistemática ao longo dos último 5 anos.
O IPCA de abril foi de 0,31%. Tomada isoladamente, a informação pode parecer pouco relevante. No entanto, esse valor mensal precisa ser incorporado ao ocorrido nos 11 meses anteriores para termos um balanço do ritmo anual da inflação. E assim o que se observa é que o IPCA de 12 meses está acumulando 6,76% de crescimento dos preços. Isso significa que o ritmo oferece o risco de uma superação do teto superior, definido em 5,25%.
O cardápio estreito do financismo já aponta sua solução. Como sempre, a recomendação é para que o COPOM aumente mais uma vez a SELIC em sua próxima reunião, prevista para ocorrer em 15 e 16 de junho. Na verdade, o comitê já vem elevando a taxa de juros em seus últimos 2 encontros. Em 17 de março, o colegiado elevou a SELIC de 2% para 2,75% e na reunião de 05 de maio subiu outra vez para 3,5%. É importante registrar que a taxa oficial estava no patamar de 2% desde agosto de 2020.
Ora, o recurso de aumento da SELIC não atende às características da elevação atual dos preços. Não se trata de um aumento da inflação causado apenas pela pressão da demanda. O país atravessa a maior recessão da sua História e a massa salarial está mais do que deprimida pelo desemprego e pela precariedade/informalidade no mercado de trabalho. Não resiste a qualquer análise séria essa hipótese, tão absurda quanto incoerente, de elevar juros para reduzir consumo agregado e reorientar recursos para poupança, como faz qualquer manual básico de macroeconomia tradicional.
População mais pobre sofre mais com inflação
Isso não significa que o problema de preços não exista e não deva ser solucionado. Como sempre, a divulgação do índice oficial da inflação reflete uma abstração. O IPCA é uma média e, como tal, incorpora realidades muito distintas de crescimento dos preços. São diferenças entre as múltiplas cestas de consumo e segundo as várias disparidades regionais. É sabido que a população de baixa renda acaba sofrendo muito mais os efeitos da inflação do que a média nacional ou do que os setores do topo da pirâmide da desigualdade.
A desagregação dos 6,76% anuais segundo os itens de consumo deixa essa realidade bem evidente. Os itens que compõem os grupos “alimentação”, “artigos de residência” e “transportes” subiram bem mais do que a média. São elementos de despesa sobre os quais não existe espaço para redução de demanda da forma tradicional, uma vez que a população já está no limite da subsistência. Vale recordar que o Brasil voltou ao mapa da fome e os bolsões de miséria só fazem aumentar a cada dia em nosso País. Não vai ser elevação da SELIC que provocará alguma redução nos índices de inflação de tais grupos. O contrário ocorre com os itens como “vestuário”, “educação” e “despesas pessoais”, que estão todos bem abaixo da média geral. A tabela abaixo exibe essas diferenças.
IPCA – 12 meses - %
Caso o governo estivesse realmente interessado em minimizar os efeitos da inflação, bastaria identificar os setores que mais contribuíram para o estado de coisas atual. E ali perceberia que os alimentos (15%) pesam bastante, assim como os combustíveis (35%) e os produtos eletroeletrônicos (17,7%). No quesito da alimentação sobressaem itens básicos como arroz (57%), feijão (42%) carne (35%), óleo de soja (82%), entre outros.
Aumento da Selic não é solução
Esse é o resultado da política criminosa de aprendiz de liberalismo de botequim, que recomendou o fim dos estoques reguladores de alimentos que o governo federal sempre manteve no passado. Exatamente em função de fatores como as sazonalidades provocadas pelas quebras de safra, pelas colheitas espalhadas ao longo do ano e a pela própria atividade especulativa, o governo manteria estiques para atuar nesses momentos desabastecimento, aumentando a oferta dos produtos e reduzindo as tendências altistas nos preços.
No caso dos preços dos combustíveis, é conhecida a opção também pela retirada da presença da Petrobrás como agente estratégico de oferta de produtos e regulador de preços. Ao impor o alinhamento de preços internos dos derivados do petróleo ao movimento no mercado internacional da especulação, o Brasil deixa de aproveitar sua condição especial de potencial soberania energética e passa a importar os derivados produzidos no exterior. Uma loucura!
Enfim, não estamos diante de nenhum quadro catastrófico a exigir medidas duras de arrocho monetário, como sugerem os especialistas de plantão, sempre a soldo do financismo. A elevação de preços existe, mas não se trata de nenhum processo inflacionário incontrolável. Bastaria o governo assumir as rédeas do jogo e deixar de acreditar na fadinha mágica da liberdade de oferta e demanda como eterna solução de conflitos de renda e de interesse.
Enfim, frente a esse quadro complexo, resta uma certeza: a solução NÃO passa pela promoção de mais um aumento da SELIC. Essa medida só promoverá um agravamento na condição do nível já crítico de endividamento das famílias e das empresas, ao tempo em que aumentará o grau de concentração de renda e de poder do sistema financeiro no conjunto da sociedade.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal
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