segunda-feira, 21 de junho de 2021

A federação partidária e a democracia

Por Jorge Gregory, no site Vermelho:


A entrada do projeto de lei que institui as federações partidárias em regime de urgência coloca em pauta mais um capítulo da luta pela democracia no Brasil. Ao contrário do que afirma a grande imprensa e reverberam várias correntes políticas, de que é a tábua de salvação dos partidos nanicos, a proposta trata, na verdade, de assegurar umas das principais conquistas da redemocratização pós regime militar.

Desde 1985, antecedendo o processo constituinte, conquistamos o direito de ampla liberdade de organização partidária. Ou seja, liberdade para que as diferentes correntes de opinião possam se organizar nacionalmente, disputar pelo voto popular os cargos eletivos e interferir, na proporção de sua representatividade, pelas regras eleitorais vigentes, nos rumos da sociedade e do Estado Brasileiro. Natural, como em todo o processo, nossa democracia não nasceu pronta e está sujeita, em sua construção, a avanços e retrocessos.

A tão almejada representatividade, no entanto, encontrou e encontra diversas barreiras e, decorrente do sistema político que adotamos, a pouca efetividade que se obteve vem sendo permanentemente atacada. Algumas dessas barreiras advêm de heranças que não foram removidas pela Constituição de 1988.

A primeira delas decorre do fato de termos copiado o modelo federativo dos Estados Unidos e termos copiado também o regime presidencialista. Quanto a este aspecto, é importante sempre lembrarmos que a constituição do Estado americano é resultado da união de 13 colônias independentes. No caso brasileiro, ainda que inicialmente o território tenha sido dividido em capitanias, logo em seguida tais divisões foram submetidas a um governo geral central, caracterizando uma única colônia, de forma que as capitanias e as províncias que as sucederam se constituíam em meras organizações administrativas da colônia. Após a independência, durante todo o período monárquico, tal característica se manteve.

A divisão territorial administrativa gerou também interesses e oligarquias regionais. A excessiva centralização, que ocorreu tanto nos governos coloniais quanto nos governos monárquicos, foi fonte permanente de insatisfações. Dessa forma, ao proclamarmos a República, era natural que a primeira constituição estabelecesse uma descentralização do poder e das decisões. Nesse sentido, tendo também em conta a extensão territorial do Brasil, era compreensível que se adotasse em parte, a partir de 1889, o modelo federativo norte-americano.

A ideia de Montesquieu, de independência dos poderes e de pesos e contrapesos, que orientou a formação dos estados modernos, foi de maneira singular adotada nos Estados Unidos, onde foi constituído um poder executivo forte, comandado por um presidente com mandato determinado. A necessidade de um poder executivo forte se impunha para manter a unidade das colônias até então autônomas. Como contrapeso a este poder executivo forte e para preservar um grau relevante de independência dos estados federados, antigas colônias, idealizou-se um poder legislativo cujos membros, tanto na Câmara Alta quanto na Câmara Baixa, seriam representantes destes estados. Dessa forma, ainda que preconizasse ideais de liberdade, era um estado que não previa e não demandava a necessidade de partidos políticos. Por circunstâncias próprias da formação daquele estado, dois partidos hegemônicos se constituíram e, pelas regras do sistema, o poder, tanto no executivo quanto no legislativo, passou a ter a alternância entre estas duas agremiações, que também controlam o poder na totalidade dos estados.

Talvez por uma certa vocação ao caudilhismo, que busca a constituição de executivos fortes e predominantes, no Brasil, mesmo no pós regime militar, preservamos o sistema presidencialista. Em decorrência dos interesses regionais, mantivemos aquilo que copiamos do modelo americano para o legislativo, com deputados eleitos pelos estados e, portanto, mais que representantes de correntes partidárias, são representantes de seus estados. Desse modo, os eleitos passaram a atuar mais como despachantes dos interesses regionais do que defensores de ideais globalizantes e representantes de parcelas da sociedade. Ainda que afirmem que adotamos um sistema proporcional, na minha opinião, o que temos é um sistema misto, onde os estados se constituem em grandes distritos dentro dos quais a eleição é proporcional. Com boa vontade, talvez pudéssemos denominá-lo como um sistema proporcional regional onde, além de tudo, o voto é uninominal. Uma verdadeira jaboticaba.

Tais características, com a ampla liberdade de organização, levou a uma pulverização partidária, com a constituição de um enorme número de partidos sem nenhum ideal, além de a uma absurda mobilidade partidária, segundo as conveniências do momento. Constituímos, com isso, o que se convencionou chamar de presidencialismo de coalisão. No parlamentarismo, a constituição dos gabinetes de governo é resultado das correlações formadas nos parlamentos. No presidencialismo, o presidente compõe o governo segunda sua vontade, mas tem que governar com o parlamento eleito, de forma que, no tal presidencialismo de coalisão, tem que barganhar os ministérios em troca de apoio às suas proposições para garantir a governabilidade. Torna-se impossível a construção de um projeto de governo, pois a barganha é fragmentada. Em síntese, o presidencialismo puro não convive bem com o pluripartidarismo, não convive bem com a diversidade de ideias e de opiniões. É, na sua essência, um regime não democrático que só deu certo e não sofre grandes percalços nos Estados Unidos, em decorrência de um bipartidarismo existente na prática.

Diante de tais dificuldades, as forças hegemônicas do nosso país, tanto de direita quanto de esquerda, não admitindo sequer uma flexibilização do presidencialismo, procuram adotar normas eleitorais que façam uma filtragem, permitindo acesso ao parlamento de um número mínimo de partidos, de preferência, que somente restem dois, a exemplo dos Estados Unidos. Para tanto, impuseram as cláusulas de desempenho, bem como a proibição das coligações e ameaçam com a adoção do modelo distrital puro, ou seja, a eleição dos deputados por microrregiões, por meio do voto majoritário. Tais medidas reduzirão o número de partidos, mas não acabarão com o fisiologismo, tendendo até mesmo a aprofundá-lo, a barganha para a governabilidade continuará a mesma.

Nas características do modelo que adotamos até então, em especial o do sistema proporcional regional com voto uninominal, os mandatos que representam correntes de opinião acabam sendo minoritários, mas são exatamente esses mandatos, ocupados por comunistas, socialistas, ambientalistas e até mesmo por social-democratas e liberal democratas, que se colocam como contraponto aos ímpetos autoritários que por vezes tomam conta do Executivo. Um parlamento com 513 deputados, onde cada mandato representa 0,2% dos eleitores, tem plenas condições de abrigar todas as correntes de opinião da sociedade e é para isto que teoricamente serve o parlamento, para representar o conjunto da sociedade.

Ao se restringir o acesso à diversidade de opiniões existente na sociedade, reduzindo o parlamento a dois ou pouco mais partidos e, em especial, excluindo os partidos representantes de correntes de opinião, se estará pavimentado o caminho para o totalitarismo. Com as características brasileiras, e é sempre bom lembrar que não somos os Estados Unidos, o sucesso deste movimento restritivo levará à renovação, pelo voto, do ditador de plantão, colocando em risco inclusive a permanência do próprio sistema federativo, pois não somos um pais dividido em Estados controlados por republicanos ou democratas. Mais, iludem-se aqueles que acreditam que a esquerda terá vez neste pacto restritivo. Será varrida da vida institucional no médio e longo prazo.

Penso que o ideal, tendo em conta a cultura brasileira e nosso apego ao presidencialismo, seria que viéssemos a formular um presidencialismo misto – onde agregaríamos alguns mecanismos próprios do parlamentarismo –, que o sistema fosse proporcional global e que o voto fosse em lista. Somente desta forma conseguiríamos construir um presidencialismo capaz de conviver com o pluripartidarismo. No entanto, sendo realista, isso só seria possível com uma nova Constituinte e em outra correlação de forças. No momento, o único mecanismo que poderá assegurar a existência dos mandatos representantes de correntes de opinião e conseguirá frear o caminho autoritário que está sendo construído é a aprovação do projeto de lei que institui as federações partidárias. A sua aprovação é a única garantia de preservarmos minimamente a frágil democracia que conquistamos a duras penas em 1985.

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