Marisa Monte |
Não falemos da morte, que ensombrece nossos dias, mas não nos esqueçamos dela.
É tempo de cantar na língua dos animais. Ou, então, acreditar que a vida vai melhorar. Ou ainda, que existem portas de luz a serem abertas.
Quem oferece esse repertório de possibilidades humanas é Marisa Monte, em seu novo disco, “Portas”. Depois de dez anos sem lançar um álbum de canções inéditas, a cantora reúne sua turma, convida novos parceiros e oferece uma dádiva otimista. Não é pouco.
Quando o grito que se arma na garganta é de raiva e indignação, o poder de mobilizar sentimentos construtivos deve ser celebrado. Que esse gesto seja composto da seiva da canção popular, da mais leve dicção contemporânea e da possibilidade de flagrar, hoje, a possível alegria que nos redime. É uma conquista importante da arte.
O disco tem 16 canções, em parcerias com Arnaldo Antunes, Marcelo Camelo, Chico Brown, Seu Jorge, Flor, Silva, Nando Reis, Pedro Baby, Pretinho da Serrinha e Dadi. Uma reunião que evoca dos Novos Baianos ao samba portelense, do rock ao pop. A cantora convoca novos e antigos tribalistas. Fé na taba.
Os arranjos são esmerados, com cordas, metais, sopros e percussão na medida. Tudo para fazer brilhar as canções, alinhavadas pela voz de Marisa Monte. Há um perfume de continuidade – a marca MM – que não é, no entanto, repetição, mas confirmação de um projeto que habita a memória afetiva de quem se habitou a ouvir música popular brasileira nas últimas três décadas.
Quando a ordem geral das manifestações artísticas em todo o mundo, e especialmente no Brasil, é pelo engajamento estrito, em suas mais variadas e necessárias formas, manter certa energia otimista é um risco. Como falar do que vem depois – que precisa ser construído desde já – sem perder o contato com a realidade? Entre a utopia e a desilusão corre um rio.
Marisa Monte entrega aos brasileiros um disco bonito e consciente. Tem momentos de romantismo, de amor à natureza e de pura poesia. No lirismo das canções, há lugar para apostas, consagração das possibilidades de superação dos nossos dilemas, e até de certo sonho libertário, que nos olha lá da frente. O depois não é promessa vazia ou alienação que paralisa, mas compromisso. Precisamos nos mexer para merecer que amanhã seja, de fato, outro dia. Mas carecemos também da promessa da beleza, que nos lembre onde queremos chegar.
Quem não gostaria, em tempos de conflagração e isolamento, de “sair para passear ao sol, pisar no capim”, como propõe “A língua dos animais”? Quem não sonha com o que há por trás das muitas portas que se revezam frente ao pessimismo, como na canção que dá nome ao disco? Ou, ainda, que olhe para o horizonte em busca do sol que “vem derreter as nuvens negras”, como na mais cantante e descompromissada faixa, “Pra melhorar” que fecha o álbum.
Há muitas formas de mostrar coragem e desafiar as trevas. Podem ser mais diretas, como declara a canção “Calma”: “Eu não tenho medo do escuro. Sei que logo vem a alvorada. Deixa a luz sol bater na estrada. Ilumina o asfalto negro”. Em outras ocasiões, mais libertárias, quase psicodélicas: “E no meu caminho, encontrar um passarinho, para conversar sobre uns assuntos sobrenaturais”. Nem só de realidade é feito o real.
O novo disco de Marisa Monte mostra um tempo que não é o de agora, mas que habita suas evidências e justifica toda a luta que tem impulsionado as pessoas a sobreviver com dignidade. Desde que não deixem de lutar. Uma das formas inventadas pelos homens para cumprir esse destino é a arte. Que instiga, consola e encanta. E cura.
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