Com provas testemunhais e documentais, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, em curso no Senado Federal, vem demonstrando a conduta negligente e danosa do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia do novo coronavírus. A resultante dessa política genocida é trágica. Até esta quarta-feira (7), 528.611 brasileiros morreram em consequência da doença.
Segundo o epidemiologista Pedro Hallal, o governo poderia ter evitado cerca de 400 mil dessas mortes se tivesse adotado com maior rigor as medidas preventivas recomendadas pela ciência. Bolsonaro, ao contrário, não cumpriu seu dever constitucional de assegurar aos brasileiros o direito à vida e à saúde.
Em diversos países, temas estratégicos como a vacinação contra a Covid-19 se tornaram até vitrines de governo – símbolos do êxito administrativo no controle da pandemia. Mas no Brasil, ao menos no que se refere à gestão federal, a vacinação, além de não ter tido prioridade, está no centro de sucessivos escândalos de corrupção. Os depoimentos à CPI não deixam dúvidas: com negociações sabidamente ilícitas para a compra de imunizantes, o Ministério da Saúde se entregou à disputa entre grupos de interesses, com o constrangedor envolvimento de alguns militares.
O desgaste das Forças Armadas sob o governo Bolsonaro atingiu um novo patamar nesta quarta-feira (7), com a ida do ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias à CPI. Ex-sargento da Aeronáutica, Dias foi exonerado da pasta após ser acusado de pedir propina para fechar contratos de aquisição de vacinas contra a Covid-19. Na CPI, ele mentiu por diversas vezes, o que levou o presidente da Comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), a lhe dar voz de prisão por crime de perjúrio.
Mas não foi só. Aziz aproveitou para lamentar as denúncias contra militares que atuam no governo – e que, segundo ele, desonram a imagem das Forças Armadas. Como expoentes desses desvios, o senador citou o general da ativa Eduardo Pazuello e o coronel da reserva Élcio Franco, que foram, respectivamente, ministro e secretário-executivo da Saúde no auge da crise sanitária.
“Os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia. Fazia muito tempo, muitos anos, que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”, desabafou Aziz. “Haja envolvimento de militares.”
O presidente da CPI partilhou um ponto de vista majoritário na opinião pública. Conforme pesquisa XP/Ipespe divulgada no mês passado, a confiança nas Forças Armadas despencou de 70% para 50% desde o início da gestão Bolsonaro. Já o Datafolha indicou, em maio, que 54% dos brasileiros se opõem à nomeação de militares para cargos no governo.
Mas o comando das Forças Armadas conseguiu piorar ainda mais a situação ao ignorar a realidade e tentar defender canhestramente sua imagem. O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e os comandantes Almir Garnier Santos (Marinha), Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (Exército) e Carlos de Almeida Baptista (Aeronáutica), divulgaram uma deplorável nota conjunta para reagir às declarações.
O texto é um tiro coletivo no pé. Num ato falho, como se já reconhecesse os escândalos que envolvem militares, a nota diz que Aziz acabou “generalizando esquemas de corrupção”. Com isso, antes mesmo de Bolsonaro, as Forças Armadas admitem que, sim, os “esquemas de corrupção” existem.
Embora Aziz tenha se referido especificamente à atuação de um “lado podre” dos fardados, as Forças Armadas prometeram não aceitar “qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. Nesse ponto, em especial, a nota se converteu numa inaceitável afronta à Constituição Federal.
Ora, a quem realmente interessa intimidar o Poder Legislativo – no caso, o Senado – e impedi-lo de exercer sua prerrogativa constitucional de fiscalizar o Executivo? Se a CPI foi instituída nos marcos do regimento interno do Senado e da Constituição, o que temem os militares? Qual é a verdadeira razão para que não se queira investigar todo e qualquer cidadão, militar ou civil, acusado de participar de atos tão ilícitos?
O próprio Aziz, tachando a reação militar de “muito desproporcional” e enaltecendo o papel constitucional da Forças Armadas, reafirmou suas preocupações: “Minha fala, hoje, foi pontual – e reafirmo o que disse na CPI. Podem fazer 50 notas contra mim. Só não me intimidem”, afirmou o senador.
A ABI (Associação Brasileira de Imprensa) lembrou: “A CPI da Pandemia não fez qualquer acusação ao Exército, à Marinha ou à Aeronáutica. Simplesmente está apurando os fatos, que são gravíssimos, trazendo elementos para posteriormente responsabilizar quem cometeu atos de corrupção. Sejam civis ou militares”. Para o grupo Prerrogativas, “é inaceitável que as Forças Armadas continuem a se arvorar como reserva moral da nação e guardião da ordem. Tal propósito não encontra guarida em nossa Constituição”.
Que esses militares metidos em escândalos da vacina e em outros crimes respondam por seus atos – e que haja um basta à politização das Forças Armadas. Em março, quando Bolsonaro mudou o ministro da Defesa e o comandante das três Forças, os sinais de crise institucional pairavam no ar. Infelizmente, a nota contra Omar Aziz reforça as piores suspeitas de que o presidente quer subordinar as Forças Armadas ao seu projeto autoritário de poder.
É o que diz a deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), vice-líder da Oposição: “O tom de ameaça contido na nota contra uma instância do Congresso Nacional, que tem legitimidade constitucional para apurar atos de corrupção, confunde a opinião pública e reforça não apenas posições partidárias do presidente Bolsonaro, mas também seus indisfarçáveis sinais de golpe contra a democracia”.
Num contexto de permanente ameaça ao regime democrático por parte do presidente da República, não se pode subestimar esse ato de desrespeito e intimidação ao Poder Legislativo. As forças democráticas e progressistas, bem como todos e todas que prezam a democracia, devem repelir a ofensiva inconstitucional e intimidatória das Forças Armadas, além de defender o Poder Legislativo como pilastra do regime democrático.
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