quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Ascensão da nova direita nas redes sociais

Por Ronaldo Pagotto, no site A terra é redonda:

Falar sobre a atuação da direita nas redes sociais é falar, de certa forma, de um elemento novo na conjuntura. Se pensarmos que até dez anos atrás o máximo que existia de rede social com alguma força era o Orkut e que a comunicação virtual se dava por correio eletrônico, percebemos como esse fenômeno hoje é muito mais complexo e envolvente. Existem diversos setores da população que estão sem acesso a uma série de coisas, mas têm um telefone celular na mão, recebem e passam informações, se comunicam muito por ele.

Para falar sobre o tema – ascensão da nova direita nas redes sociais – este artigo será dividido em três blocos. O primeiro deles vai tratar de questões gerais, de contexto. Mas vamos apenas anunciar, não aprofundar essas questões. Depois o tema em si, a direita nas redes sociais, a construção histórica até aqui. E por fim, como terceiro elemento, falaremos de alguns desafios, propostas de ações, a partir de elementos recolhidos em diversos espaços de atuação coletiva.

Contexto geral ou o tempo do capitalismo sem promessas

Estamos vivendo um período histórico, não só no Brasil, que talvez seja o de maior hegemonia do ponto de vista das ideias dominantes que a humanidade já viu. E de ideias, valores e visões de mundo conservadoras. No caso do Brasil, há uma concentração dos meios de comunicação imensa e histórica. Essa concentração, que se repete também no caso das redes sociais, entra como eixo fundamental da dominação ideológica. Além da concentrados, esses grandes meios de comunicação são capazes, em segundos, de fazer uma única mensagem chegar em todo canto do mundo, o que era muito mais difícil no período anterior.

A era do rádio foi uma novidade que permitiu também maior acesso à informação e maior exercício dessa disputa ideológica. A da TV também. Hoje estamos em uma nova fase, em que essa concentração se expressa de forma inédita. É a maior hegemonia ideológica da história. Isso é um capítulo que pesa sobre nós.

Outro fato, é que estamos vivendo um período muito especial do ponto de vista de quem acredita nas mudanças políticas e sociais. Foi com a Revolução Francesa que a humanidade passou a entender que tudo era possível. A Revolução Francesa trouxe essa novidade, de dizer que o futuro não é decorrente da vontade de um Deus. Ainda que as pessoas sejam crentes, tenham suas predileções religiosas ou não, ali se diz: o futuro não é obra da vontade divina, não é obra da vontade de um rei, não é obra do acaso, da sorte. O futuro é obra da ação humana. E foi um período intenso, de acreditar que o ser humano podia transformar absolutamente tudo.

Agora estamos num período de absoluta descrença e ceticismo. Esse período não é de hoje, igualmente não vem de 2014 ou 2016, ele é mais longo, vem principalmente desde a queda do muro de Berlim, desde o fim das experiências de construção rumo ao socialismo, no Leste Europeu. Nesse período, gostando-se ou não da União Soviética, existia uma fonte de utopia, de esperança. Independente da opinião de cada um sobre o que foram essas experiências, elas representavam uma ideia de que existe alternativa ao capitalismo.

Em suma, o tema aqui é destacar que vivemos um período novo, pós queda do muro. Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, dizia: não há mais alternativa, é o fim das alternativas. Então, vivemos um período de hegemonia capitalista nas ideias e de profunda arrogância, porque quando o capitalismo tinha que disputar com o bloco socialista, era obrigado a fazer mais concessões do que hoje. Agora temos um capitalismo absolutamente arrogante e bruto, muito mais que no período anterior. É um capitalismo sem promessas.

Outras questões importantes que dizem respeito a esse período em que vivemos: é um tempo de fragmentação das relações sociais, em todos os sentidos. Há uma ascensão do individualismo quase como pilar de sustentação da sociedade atual. Tudo é individual. Cada um com o seu telefone, com o seu veículo de transporte, com sua televisão em casa. Tudo é particionado. Se pensarmos em 30, 40 anos atrás, havia os espaços de compartilhar. Desde uma igreja, aos espaços do entorno do trabalho, às praças, aos clubes, dos mais elitizados aos mais populares, existiam tais espaços. Tudo era mais coletivo. Hoje vivemos uma época em que tudo é mais individual, e isso inclusive é parte de uma ideologia. Tratar os problemas coletivos como individuais é uma forma de mascarar os verdadeiros problemas e suas causas. Nesse sentido, falta de emprego é problema da pessoa, que não se esforça. Falta de emprego qualificado é porque ela não estudou devidamente. Não consegue entrar na universidade é porque ela não se preparou, “a disputa é igualitária”. Entre aspas, com todas as aspas e grifo nelas. É a igualdade formal e a meritocracia como justificações para tudo.

Se a gente pensar a comunicação, que é o tema aqui, como era feita no período da ditadura militar? Havia censura prévia, controle da informação. Agora não tem controle da informação, temos informação até em excesso. Uma pessoa com excesso de informação acaba apreendendo o que lhe interessa. Então, inverteu-se a lógica. Hoje, com o excesso de informações, excesso de notícias, as pessoas ficam como? Atônitas. E elas formam uma visão caótica e desconexa da realidade. Não conseguem associar as coisas. Enumeram-se um monte de fatos, não produzindo associação deles. A visão geral é um caos. E a visão caótica é absolutamente funcional. Ela é útil porque o sujeito não consegue fazer uma reflexão sobre o futuro, sobre o conjunto dos acontecimentos. Ele não associa; não tem tempo de fazer isso.

Desse modo, hoje não precisa de uma censura oficial nos meios de comunicação. Eles apenas evitam tratar de temas que são do interesse das classes populares brasileiras. Tanto é que o espectador não vai ver os movimentos populares aparecerem para fazer algum tipo de denúncia, a não ser nas páginas criminais. Existe um nível de restrição, que até podemos chamar de censura, mas não é aquela de antes. Hoje o mecanismo é o excesso de informações e a visão caótica. Assim não se forma a base do senso crítico, a base de uma visão mais aprofundada da realidade.

Somada essa construção de visão caótica com a ideia da ausência de alternativa, temos uma sociedade que forma pessoas estimuladas a pensar que não é possível mudar as coisas. Para o sistema dominante é ótimo ter as pessoas, que são sujeitos do processo histórico, como passivas, como espectadoras da história. Isso é muito útil para exercer a dominação política. A visão caótica é estratégica. É bom ter indivíduos que não conseguem fazer associações, que não conseguem entender a causa e efeito das coisas. Então, nós estamos num tempo em que acreditar em algo é completamente fora de moda.

E essa descrença também é útil. Porque quem não acredita em nada pode acabar caindo no canto de um salvador qualquer, de um falso profeta, de um fascistoide, por exemplo.

Todo esse individualismo, somado à falta de capacidade de associação, vai gerar o quê? A naturalização dos problemas sociais. As pessoas são estimuladas a tratar as coisas como sendo naturais. Você anda em São Paulo, por exemplo, nesse tempo de pandemia, principalmente, e ter essa quantidade de pessoas vivendo em situação de rua deveria ser motivo de indignação e revolta. Mas as pessoas assimilam, naturalizam aquilo. Desviam de quem dorme nas ruas e pronto. Naturalizar os graves problemas sociais no Brasil é uma forma de criar indiferença, criar o ceticismo, criar uma visão de que as coisas são assim e continuarão assim. É ótimo para o exercício da dominação social, a criação de espectadores. No máximo as pessoas estão – sem diminuir – empenhadas e preocupadas em salvar-se e salvar os seus pares, seus familiares, o seu círculo muito próximo. Politicamente isso é muito útil para quem quer dominar a sociedade e manter a maioria submetida a uma dominação em que ela assiste a tudo, aparentemente, silenciosa. Isso é um movimento, um processo, que se enraíza cada vez mais no Brasil, a naturalização dos gravíssimos problemas. E tudo isso se soma com características brasileiras, muito específicas do Brasil.

No Brasil existe um reacionarismo, um conservadorismo, profundamente preventivo. A direita brasileira incute na população um medo profundo de mudanças. O temor preventivo tem sempre como justificativa ampla o comunismo [i]. Consegue incutir esse medo do comunismo inclusive em quem precisa e se beneficiaria de mudanças. A direita alimenta o medo, o pavor, cria histórias de conspiração. Antigamente havia a União Soviética e seus planos secretos, mas como a União Soviética não existe mais, cada hora encontram uma figura para colocar nesse lugar da ameaça externa, tanto quanto no de ameaças internas também.

Somado a essa construção de um medo sem lastro do comunismo, a democracia brasileira é de intensidade baixíssima. O povo é convidado a participar a cada dois anos de maneira muito passiva, muitas vezes escolhendo o menos pior. E aqui não é uma crítica genérica. Nós somos um país que acabou de passar por um golpe, em 2016. Essa democracia frágil precisa ser preservada e defendida, mas é necessário olhar para ela também com uma visão mais distanciada e crítica. Ela é de baixíssima intensidade. As pessoas são convidadas a participar a cada dois anos indo lá escolher num leque de opções com muita demagogia, muito proselitismo, que é o que a direita faz.

Há no Brasil um crescimento das correntes conservadoras nos últimos 15 anos. Tais correntes conservadoras são novas? Existiam antes? Claro que existiam. O Brasil sempre conviveu com correntes conservadoras – especialmente no interior –, correntes fortíssimas. Anticomunistas, antirrevolucionárias, contra sindicato, contra movimento de mulheres, contra movimento LGBT, contra todo tipo de movimento que envolve o povo, exceto movimento para manter as coisas como estão. Por exemplo, movimentos de filantropia a direita aprova, porém movimentos para transformar os problemas que causam a fome, que causam os problemas sensíveis que atingem o país, aí ela não concorda. E isso só é possível porque temos uma muito presente, muito forte.

O Florestan Fernandes, um mestre que faria 100 anos em 2020 [ii], dizia que a classe dominante brasileira é profundamente antipopular. Ela não gosta do povo brasileiro. Faz uso das manifestações culturais, das tradições, mas a cabeça dela está nos Estados Unidos e na Europa. Antigamente estava na França, em Paris. A referência vai mudando. De forma que é uma classe dominante profundamente mesquinha, antipovo, e que nem cuidou de desenvolver um projeto nacional, respondendo aos interesses nacionais. É uma classe dominante que não é elite em nada. Só é rica e vive de defender os seus interesses mesquinhos e de classe.

No entanto, essas correntes conservadoras ganharam destaque no último período, com as mesmas bandeiras de sempre. Vou falar algumas delas, sem querer eliminar as demais. Primeiro, ela usa o termo patriotismo, pátria, defesa nacional para atacar o Brasil. A classe dominante brasileira é das mais entreguistas que existem. Quer privatizar tudo para empresas internacionais, não está preocupada se irá entregar para o capital internacional, muito menos controlá-lo. Quer vender para os EUA, para as grandes corporações, quer que as grandes corporações tomem conta do território. Ela usa a bandeira nacional contra o Brasil. Usa o anticomunismo para criar terror, enraizado inclusive nas camadas populares. Fala dos governos do PT como se fossem governos comunistas. Sendo que era um governo de composição de classes, um governo que defendia um projeto nacional neo-desenvolvimentista – mas nem isso ela tolerava, chamava aquilo de uma experiência rumo ao comunismo. Assim, o que temos é algo amalucado e sem lastro. Outro tema caro à elite brasileira é o da corrupção, que ela sempre usou como instrumento para promover sua ofensiva antipopular. E também os temas tabus, que são questões relacionadas a sexo, ao aborto, religião, por exemplo.

Tudo isso não seria assim, como estamos acompanhando, se nós também tivéssemos, pelos movimentos, pela esquerda brasileira, um melhor tratamento do ponto de vista da luta ideológica e batalha das ideias. A esquerda deveria fazer uma profunda autocrítica sobre o lugar que a luta ideológica ocupou na política nos últimos 40, 50 anos. Os esforços que a esquerda empreendeu até hoje e empreende na atualidade são minúsculos diante da dimensão e importância do tema. Minúsculos. Houve períodos em que a esquerda tinha jornais diários e era mais efetiva. Não é idolatria, idealização do passado, é história do Brasil.

A nova direita nas redes sociais – a comunicação sem regras e como guerra

A direita tem um diferencial nesse tema da disputa ideológica e batalha das ideias. Ela não tem problema em ser preconceituosa, em mentir, discriminar, propagar notícias falsas, pelo contrário. Nenhuma regra vale para direita. Seja essa regra de origem ética, seja de origem legal. Ela não respeita absolutamente nada. A direita explora o machismo, para exercer mais dominação; explora a lesbofobia, a LGBTfobia. Ela aproveita das contradições no seio do povo. Essas questões que para nós são um problema – a presença do racismo, da homofobia, no seio da sociedade – para ela é uma potencialidade. Enquanto nós queremos lidar com isso para transformar, para aumentar o respeito, ter igualdade de condições e respeito a todas as diferenças, ela explora, e muito, todas essas lutas, pautas e bandeiras.

A direita hoje empunha as bandeiras de que as minorias querem virar dominantes. É uma coisa maluca. Por exemplo, na cabeça da direita, ou no discurso que ela faz, o Brasil daqui a pouco viraria uma ditadura gay. Isso não tem pé nem cabeça, mas muita gente acredita. Inocentes, pessoas que não conseguem compreender o quanto isso é uma maldade, o quanto isso é uma irrealidade. A realidade, para a direita, é só um componente a mais. Se ela se baseasse só nos problemas reais, o quadro seria outro. Não. Ela amplifica, ela usa a comunicação como guerra. Comunicação da direita é aquela em que nenhuma regra vale.
A ascensão da direita

Agora vamos falar da história da ascensão em si. Antes de tudo, é importante destacar a importância de conhecer e estudar esse tema. Não podemos subestimar o que a direita faz nos dutos das redes sociais, mas também não podemos superestimar. Não podemos achar que tudo se resolve, que tudo se dá nesse plano. Ele é grande, é importante, mas se ele não acontece com uma série de questões que são mais profundas, e estão além das redes sociais, não se realizaria. Então, as advertências para nos aproximar desse tema são: nem podemos tratar como algo normal, como mais do mesmo; nem tratar como sendo este tema a centralidade de tudo na política, a forma de agir e de disputar. Nem subestimar, nem superestimar.

Um segundo elemento inicial é o dinheiro. A direita tem poder econômico, para essa atuação, praticamente de maneira ilimitada; ela tem fundos, formas de captar. É um terreno que ela tem uma tendência a ser beneficiada, a ter vantagem. Vamos pensar em outra época, por exemplo no período da imprensa escrita. Essa diferença econômica poderia fazer com que a direita tivesse um jornal de mais bonita apresentação. Mas ela ia ter que fazer esse jornal chegar em cada cidadão. Ela ia precisar mobilizar mundos e fundos para isso. E a esquerda podia fazer isso, porque estava na porta da fábrica, estava no bairro popular, levando a sua mensagem, levando o seu jornal. A direita não conseguia competir com essa mesma agilidade. Os jornais da direita das décadas de 20, 30, 40, 50, 60, tinham mais dificuldade de chegar no povão, na grande massa, era uma disputa difícil. Hoje a direita tende a ter mais facilidade para fazer essa disputa nas redes, assim como ocorreu no período do rádio e da TV.

Uma terceira observação inicial, as redes sociais, apesar de não serem exatamente novidade, agora permitem a possibilidade de coletar como o público usuário pensa. É possível mapear como as pessoas pensam, se elas têm alguma predileção por ideias mais radicais ou não, se elas acreditam em organizações, se elas fazem parte de algum coletivo ou partido. Tudo isso é possível extrair com os chamados big datas. Os big datas são mecanismos que hoje conseguem fazer um mapeamento da população e organizar as pessoas em grupos. E o que a direita faz com isso? Segmenta a mensagem. Então ela não vai mandar mensagens para pessoas que são muito religiosas apelando para causas que são muito distantes disso. Ela vai aproveitar aquela característica, aquela informação fornecida pelas pessoas nas andanças virtuais.

Então quando estamos usando as redes, usando o celular para mandar uma mensagem, para mandar um e-mail, para acessar uma notícia, tudo isso são informações que estão sendo enviadas sobre como nós pensamos. E a direita vem trabalhando isso, via segmentação. Tudo bem, o mercado já faz isso, há muito tempo. O mercado já se vale de informações que nós fornecemos ou que são estudos da psicologia e agora as redes socais esse mapeamento de dados permite uma organização disso, para envio e para estímulo de mensagens de uma maneira muito segmentada. Então quem gosta mais de ideias radicais vai receber um tipo de mensagem, quem não gosta vai receber outro. Quem é muito conservador, quem não é, enfim, divide-se a humanidade em blocos e a disputa é feita a partir dessa segmentação.

A direita nas redes sociais tem base em informações. Por exemplo, o que é que significa estímulo-resposta? Eu jogo nas redes sociais 30 mensagens. A que tiver mais repasse, mais compartilhamento eu valorizo, é um sinalizador. Isso se faz em segundos. Não é igual no período anterior. Agora em instantes é possível saber qual daquelas 30 mensagens, sobre o mesmo tema teve mais aceitação. E assim se qualifica, melhora-se a mensagem a partir da resposta.

Uma outra questão é sobre a polarização política, e isso não é de hoje. Já na eleição de 2014, a polarização praticamente dividiu o Brasil. Essa polarização, esses dois polos atraindo e puxando a sociedade para se posicionar, constrange as pessoas mais despolitizadas a terem uma opinião. E as redes sociais vêm responder a essa demanda. Porque o sujeito que não entende nada de determinado assunto vai ter nas redes sociais uma fonte de fornecimento de informações rápidas, ágeis. As redes vieram ocupar um espaço que a polarização ajudou a criar.

A polarização politiza a sociedade de uma maneira rápida, mas que politização é essa? É preciso considerar o contexto de extrema despolitização da sociedade brasileira. E por que é assim? São muitos os caminhos para esse problema, vamos por alguns. Uma pessoa que sai de casa 6 da manhã, e volta para casa 7 da noite, e o melhor dela ficou no trabalho, a maioria das vezes esse sujeito quando chega em casa não quer saber política, não quer saber de nada. Mas a polarização exige que ele tenha uma opinião. O debate político ganhou muita projeção, chegou até todo mundo. E aí as redes sociais vão preencher esse espaço. A pessoa não tem tempo para entender aquele problema, para ler sobre aquele problema, então ela vai lá e pega o meme, o card e as explicações simples produzidas pelas redes conservadoras. Pega a imagem. E não checa se aquilo tem lastro, se não tem.

As pessoas estão sendo chamadas a se posicionar, são cobradas por isso, estão sendo estimuladas a isso. Mas esse processo é resultado de uma crise, de uma politização acelerada de uma sociedade despolitizada, entre aspas. Isso é importante observar. O ritmo em que isso tudo se deu não permitiu a politização real, profunda. Então, as notícias falsas, os memezinhos, os vídeozinhos editados, que a direita faz uso de maneira muito inescrupulosa, virou um caminho para enfrentar essa falta de informação e a falta de tempo para isso.

Para adicionar mais um componente: pensemos como é que a gente consumia notícias 10 anos atrás. Se comparava um jornal, uma revista, ligava-se um programa televisivo, ou um programa de rádio. Como é que era a sua relação com aquele instrumento de notícia? Você não podia dizer: “ah, eu vou ligar o Jornal Nacional, e só quero saber de notícia brasileira. Não quero saber de notícia internacional, nem de besteira”. Você não podia editar, não podia segmentar seu jornal. O meio de informação era um pacotão, o sujeito que comparava, que consumia, era espectador e só. Tudo bem, você podia jogar fora a parte que não queria ler, mas estava ali o jornal inteiro, estavam ali os cadernos que você não gostava.

Já nas redes sociais você pode segmentar. Tem rede social de todo tipo. Então eu posso entrar em uma determinada rede social, em um grupo de WhatsApp, ou no Telegram, ou posso participar de grupos abertos no Facebook, grupos fechados sobre um determinado tema da minha escolha. Eu posso me inscrever para receber notícia de um determinado segmento, ou de um determinado assunto. Ou de uma determinada clivagem política. Isso segmenta ainda mais o que as pessoas recebem.

Redes abertas e as perigosíssimas redes fechadas

Há uma diferenciação importante a ser feita sobre a presença da direita nas redes: existem os canais abertos e os fechados. O Twitter, o Facebook, Instagram e seus correlatos, são as chamadas redes abertas. Nessas contas é possível ter um nível de fiscalização. E sabemos que nessas redes tem muita notícia falsa, acusações infundadas, calúnias e absurdos. Mas mesmo assim permite algum tipo de acompanhamento público.

Quem promove notícias falsas, ataques violentos, incitação à violência, discriminação, etc nessas redes a denúncia pode mapear as origens, as “pegadas” virtuais de quem fez e reproduziu para um processo judicial. Existem inclusive várias condenações recentes. Claro que insuficientes, mas existem.

As redes sociais fechadas – como o WhatsApp e o Telegram – são muito mais difíceis de fiscalizar, são o terreno das ilegalidades mais concretas, latentes, explícitas, com muitas dificuldades para apuração e responsabilização. Nesses espaços tem de tudo, tudo o que é crime, inclusive, sem monitoramento. Podemos chamar essas redes de secretas, de obscuras. Não dá nem saber quantos são os grupos existentes. Ali é o cemitério da democracia e qualquer tipo de controle social e público.
Como funcionam os dutos secretos: planejamento, autoritarismo, medo

O que a gente percebe nos estudos feitos coletivamente é que há muita confusão sobre como funcionam essas redes fechadas (Whatsapp, Telegram, Signal e correlatos). Elas aparentam ser espontâneas, mas definitivamente não são. As experiências que uma pessoa aqui outra ali monta grupos de sucesso são minoria.

O principal não é espontâneo, não está democratizado. O principal dessas redes são núcleos que produzem os conteúdos; são espaços, estruturas, produtoras de conteúdo diariamente, 365 dias por ano, que funcionam 24h por dia e 30 dias por mês vertendo material segmentado para abastecer os dutos da ilegalidade. Repisa-se que esses espaços profissionais produzem conteúdos para os segmentos. Não tem nada de espontâneo nessa luta. Estamos falando de uma coisa muito profissional, muito bem-feita.

E não tem escuta, diálogo, troca. A direita não tem grupos de diálogo, não fica debatendo as questões. Os grupos da direita são profundamente autoritários. Ninguém questiona nada. Ninguém problematiza nada. A direita não sabe lidar com o debate político, tanto é que ela é contrária à debates. Esses grupos não têm vida, são só para compartilhar informações, são grupos de guerra mesmo, de orientação, para formar uma visão.

A direita usa o medo, permanentemente. Todo dia é uma ameaça nova. É a ditadura gaysista. É a ditadura feminista. É a ditadura chinesa. É o comunismo batendo na porta. Enfim, é tanta bobagem, que é capaz das pessoas até desacreditarem, pensarem que não é possível que alguém acredite nisso. Sim, acredita. Um monte de gente acredita. É uma mamadeira de piroca por dia. Sempre um medo novo. “Olha o que vão ensinar nas escolas, a sexualidade será estimulada, as crianças…”.

Uma pessoa com medo tende a ter um comportamento mais conservador e tendente a justificar atrocidades terríveis. E esse mecanismo do medo é usado pelas classes dominantes desde os tempos de colônia, quando diziam que aqui ia virar o Haiti, só para um exemplo. Estão sempre estimulando nas pessoas esse estado vigilante de que toda hora tem alguém querendo dar um golpe no Brasil. E sendo que o golpe está sendo feito por eles. Sempre foi feito por eles. Sempre, não é de agora.

E além disso tem um tipo de conteúdo, os conteúdos tabus, que envolvem a sexualidade, os direitos da mulher sobre o próprio corpo, sobre o próprio desejo, que são também manipulados de forma a estimular visões mais atrasadas, desde os séculos passados.

Difusão do conteúdo e ataques de enxame

Como eles fazem para diversificar? Se na produção eles se concentram em grupos profissionais, na difusão isso é feito com muitos grupos, com os perfis mais variados. Sejam os perfis bolados/engraçados, de uma determinada figura pública, perfis de humor, religiosos e de personagens populares. Essa direita estimula uma infinidade de perfis, tem dutos para irradiar isso nas redes públicas.

Além de avessa ao debate, ela também atua de maneiras combinadas em determinados dias, com os chamados “ataque de enxame”. Todo mundo falando de um determinado tema. Vou dar um exemplo recente: os ataques contra Felipe Neto, que do nada passou a ser acusado de pedofilia. Foi um verdadeiro ataque de enxame, em um dia foram mais de 350 mil tweets contra ele.

O robô vai entrar depois. É na replicação, na segmentação, é uma difusão posterior. A primeira difusão é feita no WhatsApp, no Telegram, nos grupos que todo mundo poderia visualizar e compartilhar. É a partir das redes abertas (facebook, twitter, instagram etc) que os robôs entram em cena, e projetam e multiplicam aquilo para dar uma noção de volume e alcance nas redes. Porque cada perfil desse, de robozinho, tem meia dúzia de amigos que são pessoas normais que caíram no canto daquela conversa e viraram seguidores, e vão replicar aquilo. Então a segmentação é como se fosse uma teia, em que o papel estratégico é coordenado por grupos profissionais de direita, gente que entende de big data e operam de maneira muito centralizada.

E nessa teia um conteúdo vai referenciando o outro, “sites” citam perfis que citam outros, e por aí vai, criando uma impressão que há muitas pessoas falando e acreditando em uma história, que pode não ter nenhum lastro na realidade.

A mensagem dessa direita é extremamente simples, ela não está interessada em ajudar a formar opinião. A mensagem tem que ter, na linguagem, na estrutura, e na complexidade, acessibilidade, para todas as pessoas, especialmente as não versadas no tema. Quando a mensagem alcança a pessoa que não entende do tema, alcança o geral.

O presidente Bolsonaro foi menosprezado no tema da política, mas ele é um comunicador importante. A mensagem dele é muito simples. Não tem grandes complexificações, ideias sofisticadas. Tudo é muito binário. E isso não é um menosprezo, é constatar uma forma de comunicação que funciona. Se a gente toma uma pessoa como o Silvio Santos como exemplo, que o Brasil inteiro conhece, constatamos que a comunicação dele é muito simples. E do lado da esquerda temos o Lula, que é uma figura que tem uma forma de comunicar que qualquer pessoa entende.

A direita entende isso e trata de coisas complexas, difíceis, sempre de uma maneira simples. Porque ela não precisa que as pessoas entendam aquilo, formulem sua própria opinião. Ela quer que as pessoas acreditem naquilo e comprem aquela ideia. A direita não tem escrúpulos, não quer ninguém formando juízo próprio, visão crítica da realidade. Ela quer pessoas que acreditam nessas ideias, que não consigam nem as sustentar. E olha que curioso, ela trata a esquerda como arrogante, acusa que a esquerda quer debater, como se isso fosse ruim. A direita valoriza a ignorância. Alguém que consegue articular mais as ideias é criticado. Ela não quer ninguém pensando com a própria cabeça.

Desafios: redes, ruas e muita disputa ideológica

A esquerda não pode cair em uma falsa dicotomia de atuar nas redes ou nas ruas. Os dois são importantes. Nós precisamos ter uma atuação nas redes sociais, sim. Precisamos ocupar esse espaço, com outras regras, com as nossas regras. Não vamos basear a nossa ação em fake news, não vamos desprezar nenhum tipo de opressão, e não vamos potencializar nenhum tipo de opressão. Então são regras que são próprias nossas, é com elas que nós temos que entrar e disputar as redes.

Temos que falar com os tios e tias que estão só recebendo notícia do bolsonarismo, vertedouro de desinformação, preconceito. Nós precisamos ter iniciativa, atuação concreta e precisamos valorizar a necessidade da disputa ideológica.

E nisso a esquerda brasileira precisa fazer uma autocrítica profunda sobre o lugar da luta ideológica na disputa. Em 30 anos, vamos buscar um jornal diário da esquerda? Ou um site de grande impacto? Sou parte do projeto do Brasil de Fato desde o surgimento em 2002, mas nosso alcance é limitado, apenas para dar um exemplo mais concreto.

Precisamos encontrar formas de dialogar com as pessoas, a partir do simples. Primeiro o cotidiano, depois as coisas complexas. Nós precisamos lidar com o senso comum. As pessoas tendem a ter um pensamento conservador, porque a gente não ocupou espaço para mudar isso. Nesse tema estamos sempre apagando incêndios e em desvantagem.

E não é fazer igual a direita faz: dar à pessoa um espelho do que ela pensa. A intenção da direita é conservar, a nossa é que a pessoa mude e transforme o mundo, a vida. Então nós temos que entender como ela pensa para entender também como é que a gente dialoga. Não vamos conseguir dialogar com as pessoas só com as nossas bandeiras, as nossas causas e a nossa forma de ver o Brasil. Precisamos encontrar um meio de dialogar, de escutar as pessoas para poder entender melhor essas questões.

Vamos precisar chegar em milhões. Vamos precisar chegar pela porta que as pessoas nos abrem. Aí Paulo Freire é um guia: nós precisamos entrar pela porta que o povo abre. Pelos problemas que o povo coloca.

A verdade é um problema para a direita. Não adianta ficar o tempo todo iludindo as pessoas com notícias falsas, ou fugindo das causas dos problemas. Para fazer a comunicação de massa, a direita precisa romper a relação entre o problema e a sua causa. Nós não, pelo contrário. Então, se eles têm questões que são vantagens, tendências de vantagens, nós também temos. Nós somos a maioria da sociedade. E nós não temos o problema de falar a verdade sobre nenhum tema. Então isso precisa ser transformado em iniciativa. Precisa ser transformado em ações.

Nós precisamos ocupar as redes, porque ali tem gente querendo saber sobre a vida, buscar construir uma visão sobre a realidade, os problemas do Brasil, do mundo, e nós precisamos disputar.

O trabalho de disputa ideológica não pode se resumir a expor. O povo está cansado de ouvir sobre como deve pensar, viver, se vestir, consumir, gosto musical, etc. A esquerda precisa recuperar métodos que sejam capazes de ouvir, com uma escuta ativa e não apenas para apresentar um rosário de visões.

* Ronaldo T. Pagotto, advogado, integra a Consulta Popular em São Paulo e o Projeto Brasil Popular.

* Artigo redigido a partir da aula “História da ascensão da nova direita nas redes sociais” do curso Comunicação Popular e Redes Sociais, promovido pelo portal Brasil de Fato Pernambuco, em 12 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7PfSfKQqfd0


Notas

[i] Escrevi um artigo sobre isso: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/16/artigo-notas-sobre-o-comunismo-do-brasil.

[ii] Sobre os 100 anos de Florestan: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/22/o-centenario-de-florestan-fernandes-um-teorico-a-servico-da-classe-trabalhadora.

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